segunda-feira, 22 de julho de 2013

VIDEOPERFORMANCE

Por Renato Sergio Sampaio


Para compreender o termo videoperformance é importante entender primeiramente os conceitos de performance, videoarte e artemidia. Depois, entender quando o vídeo documenta uma performance e quando o vídeo é uma videoperformance.

1 Performance
Para Paul Zumthor, performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, não apenas pela ação do intérprete de uma obra, sua voz, todo o seu corpo, sua gestualidade, respiração, transpiração, efeitos vocais e mais, mas também a função do receptor, os meios e condições de transmissão da mensagem. Mesmo que silenciosa e distante, a performance exige um receptor que acate a mensagem e reaja a ela e em virtude deste diálogo, o receptor de alguma forma, torna-se co-autor da comunicação poética. (ZUMTHOR, 2000)

O território da performance, por excelência, é sem dúvida o corpo em ação. Por sua natureza interdisciplinar e multimidiática, geralmente tem no corpo do artista seu ponto de partida e seu limite. Para Hugo Fortes, é a partir do corpo que o artista recebe as informações sensoriais com as quais elabora sua poética e é através do corpo que ele a expressa. Se na performance não há limites para a utilização de mídias, técnicas, materiais ou objetos, talvez o único denominador comum que reúna os  artistas performáticos sob uma mesma classificação seja a utilização do corpo em ação. (FORTES, 2008)

No caso da videoperformance, intérprete e ouvinte/espectador não se encontram fisicamente presentes no mesmo instante em que esta se realiza. A performance mediatizada tecnicamente necessita, pois, de aparatos técnicos para a emissão da mensagem ou ainda, para a emissão e recepção, simultaneamente. É o caso do cinema, do vídeo, da internet, dos microfones de amplificação, da transmissão radiofônica e todas as mídias.

No âmbito das artes visuais, a autora Regina Melim esclarece que:

Nas artes visuais, sempre que ouvimos a palavra “performance”, é comum nos remetermos de imediato à utilização do corpo como parte constitutiva da obra, e nossas principais referências têm sido frequentemente os anos 1960 e 1970. Muitas vezes, também, somos levados a pensar em um único formato, baseado no artista em uma ação ao vivo, visto por um público, num tempo e espaço específicos. (MELIM, 2008, p. 7)
A participação do espectador diante da reavaliação do objeto era imprescindível, estabelecendo ao artista a condição de um propositor de ações, que seriam levadas a termo pelo espectador-participador. Obras como as de Hélio Oiticica ou Lígia Clark, diante das quais o espectador era sempre solicitado a usá-las ou manipulá-las, pois a mera contemplação não bastava para revelar seu sentido. (MELIM, 2008, p. 57)

Para Renato Cohen, autor do livro Performance como Linguagem, o artista plástico dos anos 1950 visava valorizar o momento da criação e desta maneira, a performance é, antes de tudo, uma expressão cênica. Um quadro sendo exibido não caracteriza uma performance, mas alguém pintando esse quadro, ao vivo, já poderia caracterizá-la. Numa classificação topológica, a performance se colocaria no limite das artes plásticas e das artes cênicas, sendo uma linguagem híbrida que guarda características da primeira enquanto origem (o artista não é oriundo do teatro e ele é o sujeito e objeto de sua arte) e da segunda enquanto finalidade (o artista transforma-se em atuante, agindo como um performer - artista cênico).
O performer trabalha em cima de suas habilidades, sejam elas físicas (dança, malabarismo, canto) ou até totalmente intelectuais. Sua criação tem um vocabulário próprio, interessando uma marca pessoal ou do grupo. Só que há uma acentuação muito maior do instante presente, do momento da ação (o que acontece no tempo real). Isso cria a característica de rito com o público, não sendo mais só espectador, e sim, estando numa espécie de comunhão. No próprio processo de propaganda do espetáculo vai se veicular a figura do artista e não alguma coisa que ele vai representar. Anuncia-se uma performance de Aguillar, de Ivald Granatto, de Denise Stocklos, e não das personagens ou da peça que eles possam fazer.

Na performance geralmente se trabalha com persona e não personagens. A persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico (exemplo: o velho, o jovem, o urso, o diabo, a morte, etc). A personagem é mais referencial. Uma persona é uma galeria de personagens [...] O trabalho do performer é “levantar” sua persona. (COHEN, 2011, p.107)

A busca do desenvolvimento pessoal é um dos princípios centrais da arte da performance. Não se vê a atuação performática somente como uma profissão, mas também como um palco de experiência ou de tomada de consciência para utilização na vida, não havendo assim uma separação rígida entre arte e vida. A persona está para o performer assim como o personagem está para o ator.

2 Videoarte
Entre os críticos, há um consenso de que o vídeo visto como meio para expressão estética surge oficialmente no Brasil em 1975, a partir de duas grandes mostras de videoteipe brasileiros, uma em São Paulo e outra na Filadélfia (EUA). No Brasil, toda a primeira geração, “geração dos pioneiros”, de criadores de vídeo era constituída de nomes em geral já consagrados no universo das artes plásticas ou em processo de consagração, como foram os casos de Antônio Dias (Corpo e Alma), Anna Bela Geiger (Passagens N° 1), José Roberto Aguilar (Anavedave), Ivens Machado, Letícia Parente (Marca Registrada), Sônia Andrade, Regina Silveira, Júlio Plaza, Paulo Herkenhoff, Regina Vater, Fernando Cocciaralle, Mary Dritschel, Paulo Bruscky e tantos outros. A título de exemplo, num dos trabalhos mais perturbadores dos anos 1970, a artista Letícia Parente em Marca Registrada bordou a palavra MADE IN BRASIL sob a própria planta dos pés, apontada para a câmera num big close up.
Segundo Arlindo Machado (1997), o vídeo nasceu integrado ao projeto de expansão das artes plásticas, como um meio entre outros, mas no processo criativo do artista, ele nunca chegou a ser encarado com exclusividade. Às vezes, era mesmo difícil compreender os trabalhos de videoarte fora do conjunto da obra do autor. Não se buscava ainda explorar possibilidades de linguagem próprias do vídeo, a não ser em um ou outro caso isolado, as vezes até de forma acidental. Essa situação só seria modificada um pouco mais tarde, quando uma nova geração, mais comprometida como a exploração dos recursos retóricos da imagem eletrônica, finalmente entrasse em cena.
Ninguém melhor que Rafael França (Obra como testamento) deu continuidade ao projeto estético dos pioneiros (simplicidade formal, uso moderado de tecnologia, inserção ‘narcísica’ do próprio realizador na imagem, auto-exposição pública). Como acontecia em quase toda a obra da primeira geração, o personagem principal dos vídeos de França é quase sempre ele mesmo, seja figurado, pessoalmente como protagonista, seja se fazendo projetar no outro. França praticava a videoarte especulando seus próprios conflitos interiores, de cunho bastante pessoal, como a indignação dramática sobre a questão da homossexualidade e sobretudo, sua obsessão maior, a fatalidade da morte. França morreu de AIDS aos 33 anos de idade e praticou videoarte até o final de sua vida.

Com a tecnologia digital, a videoarte começa uma fase de desenvolvimento tão importante quando o acesso aos sistemas de edição nos anos 70. As realidades artificiais invadem o pensamento do videoartista, que passa a manipular esse dado extra em seu trabalho. Os efeitos especiais proliferam e dão ao artista a capacidade de manipular os códigos visuais após a gravação. (FRANÇA,1997, p.101)

A evolução de equipamentos trouxe mudanças nos modos de produção e estilo da videoarte.

3 Artemídia
Arlindo Machado (2007) explica que o vocábulo “ARTEMÍDIA”, forma aportuguesada do inglês “MEDIA ARTS”, tem-se generalizado nos últimos anos para designar formas de expressão artística que se apropriaram de recursos tecnológicos das mídias e da indústria do entretenimento em geral, ou intervém em seus canais de difusão, para propor alternativas qualitativas. Scrictu Senso, o termo compreende, portanto, as experiências de diálogo, colaboração e intervenção crítica nos meios de comunicação de massa. Mas, por extensão, abrange também quaisquer experiências artísticas que utilizem os recursos tecnológicos recentemente desenvolvidos, sobretudo nos campos da eletrônica, da informática e da engenharia biológica. Incluímos portanto, no âmbito da artemídia, não apenas os trabalhos realizados com mediação tecnológica em áreas mais consolidadas, como as artes visuais e audiovisuais, literatura, música e artes performáticas, mas também aqueles que acontecem em campos ainda não inteiramente mapeados, como a criação colaborativa baseada em redes, as intervenções em ambientes virtuais ou semivirtuais, aplicação de recursos de hardware e software para a geração de obras interativas, probabilísticas, potenciais, acessíveis remotamente etc. Nesse sentido, “artemídia” engloba e extrapola expressões anteriores, como “arte & tecnologia”, “artes eletrônicas”, “arte-comunicação”, “poéticas tecnológicas” etc.










Figura 1 - Dick Higgins, [Fluxus Chart], 1981. Ink on Paper, 45.7 x 58.4 cm.

Na figura 1 Dick Higgins demonstra uma inter-relação entre linguagens artísticas e a possibilidade de novas linguagens surgirem, sendo que esta intermídia pode expressar uma única linguagem de arte: fusão conceitual. Interações humanas descentralizadas e baseadas principalmente nas necessidades específicas de um determinado corpo, neste caso artistas. O gráfico mostra intersecções entre trabalho fluxus e afins e não faz nenhuma tentativa de cronologia linear. Fluido na forma, o gráfico mostra círculos concêntricos e sobrepostos que aparecem para se expandir e contrair em relação ao "Intermedia", quadro que os engloba. É uma estrutura aberta que convida a um jogo.

4 Vídeo ou Performance?
Fernando Cocciaralle, através de entrevista concedida a André Parente (PARENTE, 2007) nos conta que nos anos 1970 as performances (que ninguém chamava de performance, eram happenings[1] ou intervenções) tinham por característica um certo desdobramento temporal, que precisava ser registrado, digamos, apenas como memória, ou havia um fotógrafo que pegava a sequência, ou alguém com uma Super-8, uma 36mm etc. Então, o vídeo é suscitado por uma demanda muito séria, que se dá no campo da experiência artística, que é pensar agora o tempo e o espaço como valores articulados.
Portanto, tem-se a performance documentada em vídeo ou fotografia, e a performance feita para o vídeo, para ser expressa em vídeo. Mas cremos no modo de olhar o vídeo com o olhar da videoperformance, bem como na aceitação de que esta provavelmente surgiu da percepção do corpo do artista na videoarte. Pouquíssimos trabalhos dos pioneiros da videoarte eram encarados como performance. Muitas vezes a câmera funde uma imagem de um corpo com outro, só com o movimento – isso é uma performance, mas é uma performance da câmera. Se não houvesse a câmera, o artista não poderia fazer. O sentido dela é ser vista em vídeo. Interessante a visão de Cocciaralle a seguir:

Há um equívoco nesta discussão de linguagem, até porque eu não acho nem que hoje em dia se deva falar de linguagem. Nos voltamos para uma neopolitécnia, que está no Photoshop, que está no sintetizador. Ficar falando de linguagem hoje em dia é bullshit, mas se as pessoas acham que a linguagem do vídeo é filmar em close, editar, colocar efeitos, eu diria que é também uma possibilidade do vídeo registrar simplesmente uma performance. Muito mais importante é a situação poética. Como é que uma performance de Letícia Parente botando esparadrapos nos olhos e desenhando seus olhos poderia ser vista tão em close, com tanta intimidade, se não fosse um vídeo? Como é que as pessoas veriam ao vivo se estivessem a dez metros de distância? Iriam ver um olhinho bem pequeno ou nem veriam, porque o próprio corpo de Letícia, provavelmente, seria um obstáculo. Então aquilo que eu vejo ali é vídeo, mas há uma performance, uma ação direta do artista. (COCCIARALLE in: PARENTE, 2007, p.68)


5 Videoperformance
O vídeo se potencializou como linguagem a partir do contato com outras linguagens: diálogos do vídeo com a música, a dança, o teatro, a performance, a literatura, com ambientes arquitetônicos e urbanos, com a pintura etc. Meios expressivos da arte sendo contaminados pelo conglomerado sígnico que representa o vídeo.

É a lógica do vídeo +, ou o vídeo que soma seus sentidos aos sentidos de outras linguagens (como no vídeoclip, na vídeodança, no vídeoteatro, na videoperformance, na vídeocarta, na vídeopoesia, na vídeoinstalação e nas intervenções midiáticas no espaço público) de tal forma que uma linguagem não pode ser mais lida dissociada da outra. (MELLO, p. 137)

Percebe-se então que há um diálogo entre o vídeo e a performance, onde ambos mantém seus atributos particulares, mas na manifestação dialógica manifesta-se uma nova linguagem, como uma filha da “união amorosa” entre o vídeo e a performance.
Esse é o caso dos diálogos entre vídeo e performance promovidos nas videoperformances em tempo real, como Marca Registrada (1975) de Letícia Parente; e entre o vídeo e a dança, como na vídeodança Corpo Provisório, de 1997, concebida por Adriana Varella.
Para a videoperformance, o corpo cria significados por intermédio de sua mediação com mecanismos de registro de imagem – nesse caso com a câmera videográfica. Os artistas que introduzem a arte do vídeo no Brasil revelam a presença crítica do corpo em muitos dos seus trabalhos. Apresentam, em sua grande maioria, práticas performáticas, captadas em tempo real e criadas especialmente para o meio videográfico, não podendo ser consideradas meros registros da ação performática. Nessas manifestações a câmera não registra meramente a ação, ela possui outra função nesses trabalhos.

Na medida em que não existe interatividade com o público, com audiência, ou com o outro, a interatividade do corpo do artista é produzida no enfrentamento com a própria câmera de vídeo. Desse modo, tais tipos de manifestações são frutos do diálogo contaminado entre a linguagem do corpo e a linguagem do vídeo, gerando uma síntese ou a chamada videoperformance. (MELLO, p.144)

Na videoperformance o corpo é agente do gesto performático, sendo que este corpo está em diálogo constante com a câmera num embate não-hierárquico, mas híbrido de corpo e tecnologia, corpo e máquina, corpo e câmera, corpo e vídeo.


Abaixo uma videoperformance de minha autoria.


TRANSFORMAS DO HÍBRIDOATOR Videoperformance, 7', 2013.


Videoperformance realizada no Elevado/Minhocão da cidade de São Paulo, próximo à estação Marechal Deodoro do Metro. Criação e música de Renato Sergio Sampaio e assistência de Daniela Danica, a gravação foi feita em uma câmera de telefone celular. Versa sobre três formas compreendidas pelo autor durante as aulas que obteve de Marcos Bulhões na ECA USP no ano de 2013. A primeira forma - figurino azul - representa Pina Bausch; a segunda - figurino amarelo - é baseada em Bob Wilson; e a terceira - figurino preto - em La Fura Dels Baus. O professor Marcos pediu que a obra devesse ser realizada em transitáveis conhecidos, naturais e corriqueiros da cidade de São Paulo e que tivesse contido nela aprendizagens referentes às suas aulas dadas.




BIBLIOGRAFIA
COHEN, Renato. Performance como linguagem. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
COSTA, Helouise (org.). Sem Medo da Vertigem: Rafael França. São Paulo: Paço das Artes, 1997.
FORTES, Hugo. Performance: territórios conquistados e negociações de fronteiras. Revista Cultura Visual: Salvador, Nº 11, novembro/2008 – p. 125.
FRANÇA, Rafael. Videoarte. In: COSTA, Helouise (org.). Sem Medo da Vertigem: Rafael França. São Paulo: Paço das Artes, 1997.
HIGGINS, Dick. Synesthesia and Intersenses: Intermedia. Dick Higgins with an Appendix by Hannah Higgins 1965, Originally published in Something Else Newsletter 1, No. 1 (Something Else Press, 1966).
MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
___________. Uma experiência radical de videoarte. In: COSTA, Helouise (org.). Sem Medo da Vertigem: Rafael França. São Paulo: Paço das Artes, 1997.
MELIM, Regina. Performance nas arte visuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Editora SENAC, 2008.
________.“Extremidades do Vídeo”. In: Arte em Pesquisa: especificidades. ANPAP: Brasília, 2004, p. 63-69.
PARENTE, André (Org.). Preparações e tarefas. Letícia Parente. São Paulo: Paço das Artes, 2007.
SAMPAIO, Renato Sergio. Compreendendo o Ensino/Aprendizagem daVideoperformance – relato de uma experiência. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
ZANINI, Walter. A arte de comunicação telemática: a interatividade no ciberespaço. ARS (São Paulo) vol.1 no.1 São Paulo,  2003.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2000.



[1] Happening: linguagem que incorpora elementos de espontaniedade e improvisação, nunca se repetindo da mesma maneira a cada nova apresentação. Apesar da semelhança com a performance, o happening é imprevisível e livre. O artista leva somente sua intenção inicial e depois improvisa com interações do público. Já a performance tem começo, meio e fim determinados e não propõe a mesma integração social do happening.

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