TREINAMENTO: AIKIDO E CAPOEIRA - Renata Mazzei Batista

TREINAMENTO: AIKIDO E CAPOEIRA

Quando falamos em treinamento logo nos remetemos às práticas que visam preparar determinada pessoa para uma função específica. O treinamento pressupõe o aprendizado de uma técnica visando a execução de uma atividade com maior destreza.

O que seria então o treinamento com relação ao trabalho do ator? Eugênio Barba, Grotowski e tantos outros pesquisadores do teatro já discorreram a respeito explicando como se pode treinar o ator e qual a importância e, de todos eles, apreendemos que o tipo de treinamento variará de acordo com o tipo de trabalho que se pretende desenvolver.

No presente caso pretendemos discorrer a respeito do treinamento sistematizado a partir das artes marciais Aikido e Capoeira. No que diz respeito às artes marciais, facilmente estabelecemos conexão entre estas práticas e a terminologia ora em discussão. O ato de treinar, nestes casos, diz respeito à melhora do condicionamento físico e da flexibilidade, à apropriação dos movimentos de defesa e de ataque e da prontidão, a fim de usar o movimento mais adequado às circunstâncias. O treinamento nestes casos exige apropriação de técnicas de modo que a execução delas envolva o corpo todo no tempo certo, como um contra-golpe ou uma defesa no momento apropriado para afastar um ataque.

Mas o que tudo isto diz respeito ao treinamento do ator?

Quando se pretende treinar o ator foca-se em procedimentos que prepare o corpo, deixando-o disponível e pronto para o trabalho cênico e, inclusive, contribuindo para a ampliação de seu repertório técnico e artístico. Jerzy Grotowski em suas investigações dispõe a respeito do estabelecimento de “certos estados de ser” cujo paralelo com o estado do ator é evidente. O ator em cena precisa estar munido de técnicas e informações que o tire do estado cotidiano e prepare seu corpo para o estado cênico. Eugênio Barba que também trata do treinamento do ator dispõe acerca da transposição do estado cotidiano para o cênico por meio do aprendizado de técnicas que trabalhem o equilíbrio, a oposição dos impulsos e a energia envolvida na realização de um movimento. O que procuraremos abordar aqui é a transposição do corpo cotidiano para um corpo cênico por meio das técnicas e princípios do Aikido e da Capoeira.

        

Fotos do monólogo separação de corpos, resultante da pesquisa O Aikido e o Corpo do Ator contemporâneo. 

Convém esclarecer que o termo "corpo", neste caso, está sendo considerado tanto a parte física como a psíquica, ou seja, o ser humano em sua totalidade, com suas emoções, suas memórias, seus gestos, sua voz, seus pensamentos, as informações absorvidas durante sua vida, sem divisões ou fragmentações. Quando eu penso, meu corpo inteiro pensa, quando algo me afeta emocionalmente, todo o aparato físico reage como uma unidade, assim como um simples gesto, provoca uma afetação interna correspondente. Por esta razão, é conveniente dizer que penso com meu corpo todo. Merleau-Ponty explica que “estou em meu corpo, ou antes sou meu corpo [grifo nosso] (...) Nós mesmos somos aquele que mantém em conjunto esses braços e essas pernas, aquele que ao mesmo tempo os vê e os toca” (MERLEAUPONTY,1999, p. 208). Ferracini, corroborando essa ideia, fala do termo “corpo em vida” explicando que “não é simplesmente seu corpo, mas seu ‘corpo-em-vida’, como diz Eugênio Barba. Um ‘corpo-em-vida’ é um corpo em constante comunicação com os recantos mais escondidos, secretos, belos, demoníacos e líricos de nossa alma. É o receptáculo da poesia do teatro. O ator é um ‘atleta afetivo’, como diz Artaud” (FERRACINI, 2003, p. 37).  Peter Brook complementando esse raciocínio diz que “ser sensível para um ator significa estar permanentemente em contato com a totalidade de seu corpo.” (BROOK. 2002, p. 17).

Assim, a partir do exposto, discorreremos sobre um treinamento envolvendo as citadas artes marciais que afetem técnica e artisticamente o corpo como um todo.

 A capoeira é uma arte marcial criada pelos escravos negros do Brasil com o objetivo de defesa contra seus senhores, acompanhada de toques e cantigas que conferem a esta luta características da dança. O Aikido é uma arte marcial japonesa criada por Morihei Ueshiba e tem como característica principal, o contra-golpe a partir da absorção da energia do ataque  com movimentos suaves, circulares, uso do quadril e base estável.

Antes de abordarmos o que estas artes podem conjuntamente contribuir para o treinamento do ator, trataremos delas separadamente para então estabelecermos a conexão.

O Aikido é uma arte marcial de contra-golpe onde o nage ou tori (terminologia que define a pessoa que recebe um ataque) se defende, com o corpo estável, centrado e relaxado, absorvendo a energia do ataque e redirecionando-a para um movimento que imobilize o uke (aquele de desferiu o ataque) ou lance-o para longe de sua esfera pessoal. As técnicas envolvem torções, lançamentos, imobilizações, dentre outras. Como esta arte se caracteriza pela conexão entre as dinâmicas do uke e do nage que, embora se complementem, ocupam funções opostas, percebemos que estão envolvidas nessa prática os seguintes elementos:

- variação de energia, que vai de pesada como um chute ou soco a leve como uma esquiva sobre uma base estável;

- de equilíbrio que varia da total estabilidade como a encontrada no kamae (base inicial do nage) até a total desestabilidade configurada pela queda do uke ao ser lançado;

- trajetória do movimento que pode ser direta, como em um ataque reto, a flexível, como numa torção que normalmente é realizada pelo nage contra o uke ou em um deslocamento esférico promovido pelo nage ao se esquivar de um ataque;

- conexão entre uke e nage que é o que promove a completude do Aikido, já que a relação entre eles exige flexibilidade, “escuta” do parceiro, prontidão e conexão entre os parceiros no momento da prática.

- respiração, elemento importante desta arte, uma vez que potencializa os ataques e as defesas.

- conexão corpo-mente para que a defesa seja desferida no momento certo, sem dispersão ou retardo.

A Capoeira, conforme já foi dito, é uma arte marcial que envolve cantigas e toques de instrumentos como agogô, atabaque e pandeiro em conexão com os movimentos realizados no meio da roda, composta por pessoas que seguem o ritmo da cantiga com palmas. Nesta arte trabalha-se o corpo como um todo, desenvolvendo os seguintes aspectos:

- níveis, uma vez que existe no extenso repertório técnicas de ataque e de esquiva que variam dos níveis alto ao baixo;

- tônus, já que o envolvimento muscular da capoeira é sempre bastante intenso o que faz com que os movimentos sejam firmes;

-flexibilidade, uma vez que o corpo, para esta prática precisa ser, além de forte, flexível, a fim de que o movimento seja belo e eficiente;

- jogo, que é um dos elementos mais importantes, tendo em vista que todo o treinamento da capoeira tem como objetivo a boa desenvoltura durante uma roda. No jogo se trabalha a improvisação, a prontidão e a ampliação da percepção do todo na medida em que se aprende a “ler” o corpo do parceiro, antecipando assim a reação;

- tempo-ritmo na medida em que a cadência da jinga e dos golpes segue o que for indicado pelas cantigas e pelos toques.

Tendo sido explicitado sucintamente aspectos relevantes da capoeira e do Aikido, convém neste ponto, estabelecer uma conexão mais direta com o trabalho do ator.

O ator para estar pronto para a criação cênica, conforme já foi dito, necessita de uma preparação psíco-fisica que amplie a sua conscientização corporal e que enriqueça seu repertório técnico e artístico ampliando suas possibilidades de criação. Em relação a isso, as artes marciais indicadas podem fornecer importantes e eficientes ferramentas para o ator, já que tem como base a respiração, o auto-conhecimento, a flexibilidade física e a mobilização do corpo como um todo por meio de movimentos que extrapolam o registro cotidiano, exigindo o envolvimento das partes do corpo de maneira diferenciada. Este estado a que Grotowski se refere e que buscamos com o treinamento pode ser nomeado de diversas formas. Eugênio Barba se refere a este estado como pré-expressividade. Segundo este diretor “o nível pré-expressivo...é um nível operativo: não um nível que pode ser separado da expressão, mas uma categoria pragmática, uma práxis, cujo objetivo, durante o processo é fortalecer o bios cênico do ator”.

Todavia, quando pensamos nessa preparação, não podemos nos ater apenas na preparação individual, mas temos que lembrar que o ator, assim como qualquer ser humano, existe sempre na relação com o outro.  

É correto afirmar que o artista quando cria, o faz a partir de si mesmo. Todavia, isto não é um processo isolado, já que o ser humano não existe sozinho, mas existe também no contato com as pessoas e coisas que o circunda. Nesse contato vai se revelando. Dessa forma, podemos dizer que o ser humano não “é” simplesmente, mas “vai sendo” no desenvolver das relações que ele se envolve, como um processo de contínua interação. Yoshi Oida escreveu em “Um Ator Errante” que “a verdadeira comunicação não se dá apenas pelo contato físico ou através das palavras. Ela vem de um nível mais profundo e poderíamos descrevê-la como o encontro entre duas almas”. Assim, entende-se que a forma como essas relações afetam o ser e a forma como ele reage ao que o circunda são também partes integrantes desse corpo.

Neste ponto, o Aikido e a Capoeira podem conjuntamente contribuir para a preparação do ator, uma vez que fornecem meios para que a relação entre os atores seja potencializada, conforme será explicado a seguir.

Durante a prática do Aikido, o Aikidoista só produz um movimento quando há outro vindo em sua direção para que este interaja. Neste caso acontecem o golpe e o contra-golpe. Para esta arte japonesa, a completude só acontece quando existe os dois movimentos. No Aikido a conexão entre os parceiros e a emissão de energia de um para outro afetará diretamente o que será realizado na sequência. Esta conexão tão importante nesta arte marcial também tem grande importância no teatro, recebendo muitos nomes como comunhão, comunicação, interação, sintonia, dentre outros.

Da mesma forma que o Aikido, a Capoeira tem seu foco na relação entre os parceiros, uma vez que se completa no "jogo na roda" estimulado por cantigas, toques e acompanhamento de palmas dos participantes. O que acontece dentro da roda, está diretamente ligado à disponibilidade dos praticantes que estão jogando e ao que se realiza em volta. Nesse conjunto, aspectos como qualidade de movimento, formas de reações, variações de energia, tempo-ritmo, prontidão, uso do espaço e relações entre as esferas pessoais são trabalhados durante o jogo.  

Todos os conceitos aqui expostos são elementos fundamentais a serem trabalhados para que o estado criativo do ator e sua presença sejam potencializados e fortalecidos. A fim de corroborar o que aqui foi apresentado, considero pertinente a descrição de um exemplo prático que se realizou no bojo da pesquisa de doutorado iniciada por mim em Janeiro de 2013, intitulada “O Aikido e a Capoeira como fontes de inspiração para o ator” sob orientação do Prof. Dr. Armando Sérgio da Silva, no programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação e Artes na Universidade de São Paulo (ECA-USP). Após um aquecimento composto de exercícios das duas artes marciais, focando alongamento, fortalecimento, trabalho aeróbico e respiração, as três atrizes comprometidas com esta pesquisa (Larissa Hupalo, Nathalia Amadei, Carolina Loreiro) foram disponibilizadas pelo espaço e, ao som da música, começaram a se movimentar utilizando como referência o repertório experimentado em outros treinamentos. Era importante que no momento que a movimentação se iniciasse, elas se relacionassem entre elas a partir dos seguintes comandos extraídos das artes marciais citadas: impulsionar a parceira tocando-a em alguma parte específica do corpo e receber como reação outro impulso (impulso e contra-impulso); conectarem-se apenas com o olhar como se estivessem se empurrando ou se puxando e desenhando trajetórias esféricas pelo espaço; reagirem a um movimento da parceira imediatamente após seu início como uma resposta; explorando níveis altos e baixos e, avançando sobre a esfera pessoal da parceira, preencher com as pernas e os braços os espaços vazios deixados pelo corpo em movimento; movimentarem-se como se os quadris estivessem ligados por um fio invisível, dentre outros comandos. Percebemos com essas práticas que houve uma ampliação da percepção das atrizes e o fortalecimento da relação entre elas. Logo na sequencia iniciamos uma improvisação tendo como ponto de partida aspectos do texto "Inferno" de Dante Alighieri e as referências técnicas experimentadas no treinamento. Como resultado criaram uma poética particular combinando as características das duas artes marciais, conforme o que se pretendia desde o início do projeto.

BIBLIOGRAFIA

BARBA, Eugênio e SAVARESE, Nicola.  A ARTE SECRETA DO ATOR:DICIONÁRIO DE ANTROPOLOGIA TEATRAL. Campinas: ed. da Unicamp, 1995

FERRACINI, Renato. A ARTE DE NÃO INTERPRETAR COMO POESIA CORPÓREA DO ATOR. Campinas: Editora da Unicamp

LABAN, Rudolf. DOMÍNIO DO MOVIMENTO. Trad. Anna Maria Barros de Vecchi e Maria Silvia Mourão Netto, 4 ed., São Paulo: Summus, 1978

MERLEAU-PONTY, Maurice. FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. Ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999

OIDA, Yoshi. O ATOR ERRANTE. Trad. Marcelo Gomes. Ed. Via Lettera, 2012

Video 1: experimentação Pça 14 bis. Aikido x Capoeira

http://www.youtube.com/watch?v=HxWAPY86BaI

Vìdeo 2: Caminhada de camisola
http://www.youtube.com/watch?v=HxWAPY86BaI

Autora: Renata Mazzei Batista

Disciplina: Encenações em Jogo

Professor: Marcos Bulhões

Autora: Renata Mazzei Batista

Disciplina: Encenações em Jogo

Professor: Marcos Bulhões