sábado, 20 de julho de 2013

Verbete: Palimpsesto

Por Célia Gouvêa

       Do grego palimpsestos, ou raspado de novo: de palin (de novo) mais psestos  (raspado). O termo designa os manuscritos sobre pergaminhos, nos quais se faz desaparecer a escrita, para escrever novamente. Foram os copistas da Idade Média que apagaram, fazendo emergir novos traços sobre o pergaminho. Modernamente, através de processos artísticos, tem sido possível fazer reaparecer em parte os primitivos caracteres: “o primeiro rascunho, à força de rasuras...acabou por ser para mim próprio o mais impenetrável palimpsesto” ( RIBEIRO, 1945, p. 120). É tentar, começar de novo, próprio aos processos criativos.
        Dito de outro modo, nada procede do nada, há um sustentáculo anterior sobre, contra ou com o qual um novo pensamento adquire contornos e vem a se estabelecer. O mesmo processo ocorre nas artes. O que veio antes deixa vestígios, pegadas.
       Antonin Artaud (1896-1950), recorre a Platão ao enunciar um teatro fundamentado no espaço, distante da Literatura: “É porque a cultura não é escrita e, como disse Platão, o pensamento se perdeu no dia em que uma palavra foi escrita. Escrever é impedir o espírito de mover-se, como uma vasta respiração... O verdadeiro teatro, como a cultura, nunca foi escrito” ( ARTAUD, 1971, p. 203). Ao propor um teatro feito no espaço, através de gestos , movimentos e rumores, Artaud propõe que a linguagem de texto seja reenviada aos livros, de onde nunca deveria ter saído.
     Os gregos prezavam a oralidade. Consideravam que os livros os tornariam preguiçosos. Os poucos livros existentes eram decorados. A memória, mais do que a escrita, era cultivada.  Platão recorreu à forma de diálogo em muitas de suas obras, ao considerar a conversa dialética intensa e dinâmica, enquanto a palavra escrita permanece imóvel. A teoria da reminiscência platônica se refere ao Rio Lethe, o rio do esquecimento, no qual os seres se banhavam antes de retornarem à terra para uma nova vida. O rio pode ser associado à invenção da escrita, pois se na oralidade importa a lembrança, já a escrita favoreceria o esquecimento, tornando-se um veneno (fármaco), para o pensamento humano.
     Muitos foram os homens de teatro do século XX habitados pelas visões de Artaud.  Peter Brook (1925), a ele referiu-se enquanto gênio francês iluminado, conduzido por sua imaginação e intuição ao teatro sagrado, que atua como “uma praga, por intoxicação, por infecção, por analogia, por mágica” (BROOK, 1968, p. 55). Um teatro sustentado muito mais pelo jogo e pelo evento do que pelo texto. 
















       Indaga Brook: “Existe uma outra linguagem, além das palavras? Existe uma linguagem de ações, uma linguagem de sons, uma linguagem de palavras como parte do movimento”. (BROOK, p. 55). Genuíno representante do que Peter Brook intitulou teatro sagrado, o visionário Artaud deixou marcas inquestionáveis no teatro do século XX. Para Brook, o polonês Jerzy Grotowski (1933-1999), foi quem mais se aproximou dos ideais do teatro artaudiano. Grotowski fez da pobreza um ideal. Seus atores se abstiveram de tudo, com exceção de seus próprios corpos segundo Brook, oferecendo-se como numa cerimônia, entendida como uma religião sem religião, em que têm lugar tanto a apoteose quanto a derrisão.
   Segundo o próprio Grotowski, cujo emprego da palavra encantação deriva do poeta e conterrâneo Adam Mickiewicz (1798-1855) e não de Antonin Artaud, que só veio a conhecer em 1964, Artaud não realizou, mas pressentiu um teatro que transcendesse a razão discursiva e a psicologia, seguindo uma via “a-lógica, quase invisível e intangível”. (GROTOWSKI, 1971, p.86). O encenador polonês  considera o teatro enquanto ato que se cumpre aqui e agora  no organismo do ator, realizando um ato total, no qual  o ser integrado participa da ação. O ato total nasce “da conjunção de opostos, como a espontaneidade e a disciplina”. (GROTOWSKI, 1971, p. 94).
       Os exemplos citados tratam de confluências, de encontros mais que influências. A assimilação do paradoxo artaudiano implica “mais numa convergência do que numa filiação”( TEMKINE, 1970, p.223). Ainda assim, a escrita cênica, como outras, busca afinidades, interlocutores, que a antecederam; ou desmonta-se o velho para construir o novo, conforme afirmação televisiva dos irmãos gêmeos grafiteiros de origem lituana Otávio e Augusto, que admitiram o gosto na infância em desmontar brinquedos antigos para construir novos.
      O extrato da instalação Chão, de Maria Geralda da Silva com performance de Célia Gouvêa, de 2010, lida concretamente com o elemento barro, desenhando pegadas.


BIBLIOGRAFIA:

ARTAUD, Antonin. Oeuvres Completes. Volume VIII. Paris: Editions Gallimard, 1971.
BROOK, Peter. The Empty Space. Midlesex: Penguin Books, 1968.
GROTOWSKI, Jerzy. Vers un Théâtre Pauvre. Lausanne: La Cité, 1971.
RIBEIRO, A..Lápides Partidas., c. 4 , p. 120, ed. 1945 in Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, vol. 4, por Hamilcar de Garcia e Antenor Nascentes. Rio de Janeiro: Editora Delta S.A., 1958.
TEMKINE, Raymonde. Grotowski. Lausanne: La Cité, 1970.

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