Do grego palimpsestos, ou raspado de novo: de palin (de novo) mais psestos (raspado). O termo designa os manuscritos
sobre pergaminhos, nos quais se faz desaparecer a escrita, para escrever
novamente. Foram os copistas da Idade Média que apagaram, fazendo emergir novos
traços sobre o pergaminho. Modernamente, através de processos artísticos, tem
sido possível fazer reaparecer em parte os primitivos caracteres: “o primeiro
rascunho, à força de rasuras...acabou por ser para mim próprio o mais
impenetrável palimpsesto” ( RIBEIRO, 1945, p. 120). É tentar, começar de novo,
próprio aos processos criativos.
Dito de outro modo, nada procede do
nada, há um sustentáculo anterior sobre, contra ou com o qual um novo
pensamento adquire contornos e vem a se estabelecer. O mesmo processo ocorre
nas artes. O que veio antes deixa vestígios, pegadas.
Antonin Artaud (1896-1950), recorre a
Platão ao enunciar um teatro fundamentado no espaço, distante da Literatura: “É
porque a cultura não é escrita e, como disse Platão, o pensamento se perdeu no
dia em que uma palavra foi escrita. Escrever é impedir o espírito de mover-se,
como uma vasta respiração... O verdadeiro teatro, como a cultura, nunca foi
escrito” ( ARTAUD, 1971, p. 203). Ao propor um teatro feito no espaço, através
de gestos , movimentos e rumores, Artaud propõe que a linguagem de texto seja
reenviada aos livros, de onde nunca deveria ter saído.
Os
gregos prezavam a oralidade. Consideravam que os livros os tornariam preguiçosos.
Os poucos livros existentes eram decorados. A memória, mais do que a escrita,
era cultivada. Platão recorreu à forma
de diálogo em muitas de suas obras, ao considerar a conversa dialética intensa
e dinâmica, enquanto a palavra escrita permanece imóvel. A teoria da
reminiscência platônica se refere ao Rio Lethe, o rio do esquecimento, no qual
os seres se banhavam antes de retornarem à terra para uma nova vida. O rio pode
ser associado à invenção da escrita, pois se na oralidade importa a lembrança,
já a escrita favoreceria o esquecimento, tornando-se um veneno (fármaco), para o pensamento humano.
Muitos foram os homens de teatro do século
XX habitados pelas visões de Artaud.
Peter Brook (1925), a ele referiu-se enquanto gênio francês iluminado, conduzido
por sua imaginação e intuição ao teatro sagrado, que atua como “uma praga, por
intoxicação, por infecção, por analogia, por mágica” (BROOK, 1968, p. 55). Um
teatro sustentado muito
mais pelo jogo e pelo evento do que pelo texto.
Indaga Brook: “Existe
uma outra linguagem, além das palavras? Existe uma linguagem de ações, uma
linguagem de sons, uma linguagem de palavras como parte do movimento”. (BROOK,
p. 55). Genuíno representante do que Peter Brook intitulou teatro sagrado, o visionário Artaud deixou marcas inquestionáveis
no teatro do século XX. Para Brook, o polonês Jerzy Grotowski (1933-1999), foi
quem mais se aproximou dos ideais do teatro artaudiano. Grotowski fez da
pobreza um ideal. Seus atores se abstiveram de tudo, com exceção de seus
próprios corpos segundo Brook, oferecendo-se como numa cerimônia, entendida
como uma religião sem religião, em que têm lugar tanto a apoteose quanto a
derrisão.
Segundo o próprio Grotowski, cujo emprego da
palavra encantação deriva do poeta e
conterrâneo Adam Mickiewicz (1798-1855) e não de Antonin Artaud, que só veio a
conhecer em 1964, Artaud não realizou, mas pressentiu um teatro que
transcendesse a razão discursiva e a psicologia, seguindo uma via “a-lógica,
quase invisível e intangível”. (GROTOWSKI, 1971, p.86). O encenador
polonês considera o teatro enquanto ato
que se cumpre aqui e agora no organismo do ator, realizando um ato total,
no qual o ser integrado participa da
ação. O ato total nasce “da conjunção de opostos, como a espontaneidade e a
disciplina”. (GROTOWSKI, 1971, p. 94).
Os exemplos citados tratam de confluências,
de encontros mais que influências. A assimilação do paradoxo artaudiano implica
“mais numa convergência do que numa filiação”( TEMKINE, 1970, p.223). Ainda
assim, a escrita cênica, como outras, busca afinidades, interlocutores, que a
antecederam; ou desmonta-se o velho para construir o novo, conforme afirmação
televisiva dos irmãos gêmeos grafiteiros de origem lituana Otávio e Augusto,
que admitiram o gosto na infância em desmontar brinquedos antigos para
construir novos.
O extrato da
instalação Chão, de Maria Geralda da Silva com performance de Célia
Gouvêa, de 2010, lida concretamente com o elemento barro, desenhando pegadas.
BIBLIOGRAFIA:
ARTAUD,
Antonin. Oeuvres Completes. Volume
VIII. Paris :
Editions Gallimard, 1971.
GROTOWSKI,
Jerzy. Vers un Théâtre Pauvre. Lausanne : La Cité , 1971.
RIBEIRO, A..Lápides
Partidas., c. 4 , p. 120, ed. 1945 in Dicionário
Contemporâneo da Língua Portuguesa, vol. 4, por Hamilcar de Garcia e
Antenor Nascentes. Rio de Janeiro: Editora Delta S.A., 1958.
TEMKINE, Raymonde. Grotowski.
Lausanne: La Cité ,
1970.
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