Quando falamos em presença,
présence, presence, presencia no teatro, geralmente usamos
como uma única acepção, a de corpo alerta, um corpo em estado de prontidão, um
corpo aberto para o jogo com o outro, no entanto esse conceito em algumas experiências
do teatro brasileiro atual, plural, complexo, aberto a muitas interpretações
que precisa ser sempre problematizado a partir da intencionalidade pretendida
pelo atuador, pois até na não representação existe presença sendo processada em
cena, tomando como ponto de partida os conceitos estéticos e filosóficos
heiggeriano. Abordando a presença, no campo do teatro, associada ao corpo do
ator, Pavis diz que:
Segundo a opinião corrente
entre a gente de teatro, a presença seria o bem supremo a ser possuído pelo
ator e sentido pelo espectador. A presença estaria ligada a uma comunicação
corporal “direta” com o ator que está sendo objeto da percepção (PAVIS, 2008,
p. 305).
A presença em Pavis,
relacionada à dimensão do teatro, parece que se configura como identificação,
verossimilhança do espectador com o atuador, ou seja, o conceito de presença
citada por Pavis está associado à ideia de simulacro, de ilusão,
ficcionalização do corpo do atuador em situação de representação (personagem).
Uma vez que, o autor definira representação como tudo aquilo que é visível
e audível em cena, mas ainda não foi recebido e decodificado pelo espectador.
“Ter presença”, é, no
jargão teatral, saber cativar a atenção do público e impor-se; é, também, ser
dotado de um “quê” que provoca imediatamente a identificação* do espectador,
dando-lhe a impressão de viver em outro lugar, num eterno presente (PAVIS,
2008, p. 305).
Ainda segundo ele, “cada
ator amina o eu de sua personagem, que é confrontada com as outras (os
tu, você). A fim de constituir-se em eu, ela deve apelar para um tu,
você, ao qual emprestamos, por identificação (isto é, por identidade de
visão), nosso próprio eu” (PAVIS, 2008, p. 307). Mas, na cena
contemporânea atual quando não existe atmosfera de ilusão, identificação do
espectador com o atuador (como no drama burguês), também quando não há
reconhecimento, nem máscara representativa, tampouco a encenação pretende ser
uma fatia da vida real, pelo menos nos moldes realistas, isso que dizer que não
existe presença sendo processada no presente do acontecimento? Então o corpo
sendo a materialidade de nossa existência no mundo, a presença não seria algo
consubstancial (mesma natureza, constituição) do sujeito?
Diante disso, evidencia-se,
então, que quando se fala de presença associada ao trabalho do ator,
geralmente, ela está relacionada a um corpo pronto para as necessidades da
cena, com tônus muscular que modifica o olhar do espectador. É uma “fagulha da
vida” que se mantém acesa durante o evento cênico. Em algumas pesquisas
teatrais contemporâneas, a presença também pode ser geradora de inúmeros
deslocamentos como acontece nas obras de Romeo
Castelucci, Frank Castorf, Bob
Wilson, Pina Bausch, Taudez Kantor, Jan Lauwers,
Robert Lepage, Richard Foreman, Renato Cohen, José
Celso Martinez Corrêa, Denise Stokles e Antonio
Januzelli.
A partir disso, podemos
entender a presença como algo material e imaterial, ou melhor, como a junção
entre substância material e substância imaterial, na qual o público consegue
sentir quando existe alguém em estado de presença, seja na presença
representacional, performativa ou pura presença. Na primeira cena do espetáculo
Pulsão da Rede
de criadores Desvio Coletivo, a simples ação dos atuadores
caminharem em direção ao público, faz a plateia perceber que algo está
acontecendo e todo o barulho e as conversas feitas pelos espectadores cessam,
silenciam a partir da presença pura dos atuadores e a ação de caminhar. Pois
não é apenas um corpo que caminha, mas um corpo vivo e tonificado sem tensão
desnecessária, mas pronto para o jogo relacional. Então presença pode ser um
conceito que está diretamente associado à ação e que a perpassa. O conceito de
presença humana ligada à existência é fortemente discutido por Martin Heidegger
como veremos logo mais.
A filosofia existencialista
Heideggeriana (1991) dirige-se no sentido
de superar a tradição clássica, hermenêutica e metafísica propondo um conceito
de mundo como fenômeno em constante dinâmica e que se atualiza nas relações
instauradas junto à presença (ente). Ou
melhor, ao abdicar a concepção de mundo como substância (res extensas=objeto)
que se contrapõe ao mundo (sujeito), porém evidenciando o mundo na sua relação
de co-pertenciamento com a presença.
Diante disso, o método fenomenológico
utilizado por Heidegger concebe o ser como forma e presença. A filosofia
heideggeriana ao elaborar a questão sobre o sentido do Ser (concebido como
presença) elege como o ente que será questionado em seu ser. A constituição
fundamental da presença é denominada por Heidegger ser-no-mundo (constituição
fundamental da presença) que se projeta na existência. Nesse sentido, para
Heidegger, não há ser humano destituído de sua presença, pois a substância e a
essência do homem é a existência.
Assim, a essência da
presença é existência que no seu momento fundamental, ser-no-mundo, seria o
homem se relacionando com as coisas (instrumentos), com os outros (demais
presenças) e consigo mesmo. E nesta tríade (coisas, outros e a si mesmo), ao se
ocupar, seria o primeiro e o principal modo à presença (cotidiana), como
existencialidade, projetar-se. Então a presença estaria associada tanto ao
conceito heideggeriano de “ocupação” quanto o de ação.
Nesta perspectiva, as
ideias de Heidegger parecem decantar nas questões sobre presença levantadas por
Gumbrecht, pois ele compreende a possibilidade de uma relação com o mundo
fundado na presença (GUMBRECHT, 2010, p. 13), apoiando nas concepções do
homem heideggeriano. Gumbrecht na obra Produção da presença: o que o sentido
não consegue transmitir (2010), aborda a possibilidade de nos
relacionamos com o mundo considerando a materialidade dos objetos sem
fundamentalmente conferir-lhes sentido. Nesse sentido, para o autor, “presença
refere-se, em primeiro lugar, às coisas (res extensae) que, estando à nossa
frente, ocupam espaço, são tangíveis aos nossos corpos e não são apreensíveis,
exclusiva e necessariamente, por uma relação de sentido” (GUMBRECHT, 2010, p. 9).
A presença para Gumbrecht é
“o que é ‘presente’ para nós”, é o que nos toca, “está à nossa frente”, “ao
alcance e tangível para nós” (Idem, p.38), “diante dos olhos e no contato com o
corpo” (Idem, p.10), reverberando em efeitos de produção de uma intensa
presença. Essa produção de presença caminha para o território da vivência como
um fenômeno privilegiado que por meio de experiências estéticas podem nos dar a
sensação do estar-no- mundo, atuando e interagindo com ele. Pois a “produção
da presença” aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia
ou se intensifica o impacto dos objetos “presentes” sobre corpos humanos
(Idem, p.13). Essa perspectiva parece ser uma chave epistemológica para se
entender a presença no território das artes, principalmente na esfera do
teatro. Assim, neste momento, os “teatros” se apropriam do conceito de presença
criando vários subconceitos para ela partir do estudo e da especificidade de
cada produção artística teatral: presença pura, presença representacional,
presença performativa, presença cênica.
Todas essas aproximações
têm como denominador comum uma concepção filosófica, idealista, mística,
ritualística, concreta e até mesmo indefinível seja relacionada à presença como
algo existencial ou como energia que emana do corpo do artista que é sentida
pelo espectador. Será que se pode explicar o inexplicável, mas se ela é
sentida, talvez caminhos possam ser trilhados para se fomentar uma ciência da
presença do atuador?
Tendo participado das
pesquisas desenvolvidas por Jerry Grotowski, entre 1961 e 1963, Eugenio Barba,
1979, sistematizou a Escola Internacional de Antropologia Teatral (ISTA),
a qual estuda o homem em situação organizada de representação. A Antropologia
Teatral pode ser compreendida como o estudo do “corpo dilatado” (BURNIER, 2001, p.111), ou
como o “estudo do comportamento cênico pré-expressivo que se encontra na base
dos diferentes gêneros, estilos e papéis e das tradições pessoais e coletivas”
(BARBA, 1994, p.23).
Deste modo, essa ciência
tem como mote investigativo o desenvolvimento do comportamento do
ator-bailarino em situação de representação não organizada, centrando suas
pesquisas nos elementos que tornam a presença cênica dilatada. Para isso, o
estudo da Antropologia Teatral se fundamenta na raiz de diversas técnicas de
representação em nível transcultural, buscando princípios técnicos para
despertar a presença cênica do intérprete o e seu dinamismo. Barba defende uma nova corporeidade do ator
ao pesquisar os fundamentos de intensificação da presença corporal do ator,
buscando um “corpo dilatado”, um “corpo-em-vida”, que pode ser entendido como a
presença do ator. É interessante observar que nas concepções de Barba sobre
presença cênica, ela parece ser a construção de um corpo fictício produzido a
partir de princípios pré-expressivos e energéticos que alimentam a vida do
ator-bailarino em estado de representação. Assim, presença para o estudo da
Antropologia teatral pode ser compreendida como energia dilatada que emana do
corpo ator-bailarino e se projeta no espectador. Neste sentido, a presença é
corpo vivo e se ela é corpo vivo, é substância pensante e substância corpórea
coexistindo no mesmo instante. Como podemos perceber no trabalho do ator
desenvolvido por Antonio Januzelli.
Antonio Januzelli quando fala “da presença de
si” coloca que “é preciso que estejamos sempre ‘presente’ em nosso corpo”
(Januzelli, 1992, p.17). Ele remete a uma presença fenomenológica existencial
onde o “Ser da Cena” está presente em sua totalidade, resultando no “Estar em
Cena”. É o ator centrado em si mesmo, despojado, como afirma Januzelli (1992,
p.78). É a presença como corpo que não nega sua existencialidade, mas que estar
pleno e aberto para as situações da cena, aceitando suas idiossincrasias,
singularidades, descobrindo e atingindo o "si mesmo".
Se não estivermos inteiros
no que fazemos, em cada coisa, a percepção mais profunda da existência não se
configura, não se firma, não de torna uma substancia mágica. Viver a vida
começa com a comunhão que estabelecemos com cada coisa que fazemos (Januzelli,
1992, p. 18).
Para Januzelli, somos
energia em perpétuo movimento. Então se somos matéria/energia se processando no
mesmo instante, é o refinamento da materialidade de energia (o nosso corpo) que
se deve trabalhar para que o artista esteja sempre disponível e presente na
cena, pois a qualidade deste trabalho, pode também refletir na materialidade da
relação estabelecida pelo atuador com os sujeitos (espectadores) e a
experiência estética (evento cênico). Considerando o corpo não como um
dispositivo mecânico, mas um dispositivo vivo que se reconfigura a partir de
sua interação com outros corpos e com o mundo.
O ator precisa preparar-se primeiro para o “Estar
em cena”: gestar um corpo iluminado, elétrico, que interaja com outro e que
possua carga para se projetar até a plateia, provocando e prendendo a atenção
de cada espectador, formando um campo magnetizado de trocas (Januzelli, 1992,
p. 78).
A presença então, também
pode ser entendida como choque como colisão que provoca alterações concretas no
real, como acontece nos trabalhos desenvolvidos por Marina Abramovic e por
Antonio Januzelli. A ideia de presença como algo perturbador pode ser entendida
nos estudos do ator desenvolvido por Grotowski e Artaurd. Pavis
afirma que em Eugenio Barba e Moriaki Watanabe fazem da presença contradição e
o oxímoro do ator: Ser marcadamente presente e, no entanto, nada apresentar,
é, para um ator, um oxímoro, uma verdadeira contradição, [...] o ator de pura
presença [é um] ator representado sua própria ausência (Bouffonneries apud
Pavis, 2008, p. 305).
Desse modo, a experiência
corpórea do atuador está intimamente ligada à sua capacidade geradora de
estado-presença que se modifica e se atualiza a partir de sua relação com os
objetivos presentes no acontecimento. Ela nem sempre se processa exclusivamente
por meio de características físicas do indivíduo, pois alguns atuadores
apresentam uma energia tão irradiante, cujos efeitos sentimos antes mesmo que o
ator tenha agido, no vigor de estar ali (PAVIS, 2004). Sendo assim, a presença
como existencialidade real no acontecimento cênico faz com que estejamos sempre
em fluxo, em “produção de presença” que acontece pela interação como coloca
Gumbrecht. Assim, podemos também entender presença próxima do conceito de “metafísica
em atividade” como é colocado no teatro artudiano, que abre novos modos de
percepção e outras dimensões de realidade (QUILICI, 2004):
A palavra “metafísica”,
utilizada aqui numa acepção muito particular, tende a dissipar essa conotação
meramente utilitária associada à magia. Ao mesmo tempo, a expressão “em
atividade” é colocada para burlar nossa identificação imediata entre metafísica
e abstração (Idem, 2004, p. 39).
A presença é provocadora de
múltiplas dimensões de experiência. Ela não está só ligada à subjetividade e à
virtualidade, mas também a presença-presente do corpo vivo, carnal do atuador e
em constante fluxo no aqui agora da cena, que é vista e sentida pelo
espectador, pois a presença é existência. Então se ela é existência, ela existe
até quando a intenção é não ter presença. Pois o que pode ser mensurado é a
qualidade da presença e não se ela existe ou não.
A presença, no teatro,
não está apenas ligada à característica inata do indivíduo, ao dom, ao talento,
à magia, pois já que presença é algo que está associado à ação, como declara
Heidegger, pode ser trabalhada e construída, como um elemento ritualístico
(teatro artaudiano). E, procurando sempre manter a totalidade corpórea com suas
idiossincrasias mesmo quando a cena apresenta uma pluralidade fragmentária, uma
pulverização de códigos e signos abertos, uma multiplicidade de formas e
referencias como é observado na cena contemporânea atual, nos “teatros do real” (FERNANDES, 2011).
Assim podemos compreender a presença do atuador sem estar ligada à
construção de uma máscara representativa, pois ela pode se efetivar sem existir
transformação simbólica, sem ter metamorfose do ator em personagem, ou seja, o
atuador não representa e não interpreta nada, entretanto o estado de presença
sempre existirá no aqui agora da cena, com corpos vivos e presentificados que
podem gerar identificação, distanciamento ou estranhamento pelo simples fato de
estar no espaço, com “centelha da vida”. Esse corpo pode não expressar nenhum
sentimento, nenhuma reação, contudo está “presente” e aberto para ação e reação
do público. Pode ser um corpo de até na tentativa de sua ausência gera
“presenças”. Nesse sentido, não podemos falar em presença como um termo
singular, mas “presenças” que se dimensionam e se redefinem a partir do contato
com o público.
Essa presença, seja na identificação, no distanciamento ou estranhamento
pode tocar em categorias perceptivas e territórios emocionais no público, pois
latências estão sendo processadas no corpo do atuador e percebidas pelo
espectador. Então, ela é físico, crível e visível, pois ela é também a
materialidade corpórea exacerbadamente real. Assim a presença não é uma
operação metafísica de valorização substancial, algo etéreo, transcendental por
mais que tenha um halo de misticismo.
Portanto, a presença é literal, pois ela é substância pensante e
substância corpórea, física e mental atuando no mesmo instante até mesmo sem
mediação, pois ela se realiza a partir da corporeidade do atuador. Então, entendemos a presença, como real e
concretus que designa a existência humana em oposição à abstração.
"concreto é o homem neste mundo" (Sartre), talvez no “teatros”
contemporâneo não podemos falar de presença, mas de "presenças" como
termo plural e multifacetado que é determinada a partir do processo criativo de
cada artista, gerando no espectador uma “percepção multi-estável” como coloca
Érika Fischer-Lichte(2007).
REDE
DE CRIADORES DESVIO COLETIVO
ESPETÁCULO "PULSÃO" (2013)
"THE ARTIST IS PRESENT" (2010)
MARINA ABRAMOVIĆ
ESPETÁCULO O PORCO (2004)
COM DIREÇÃO DE ANTONIO JANUZELLI E
ATUAÇÃO DE HENRIQUE SACHFER
Referencias
BARBA,
Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: Dicionário de
Antropologia Teatral. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
BROOK,
Peter. A porta aberta: reflexões sobre a interpretação
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BURNIER,
Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas:
Editora da Unicamp, 2001.
PAVIS,
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FERNANDES, Silvia. Teatralidade
e Performatividade na cena contemporânea. In
Revista Repertório nº 16, p. 11-23, 2011.
FISCHER-LICHTE, Erika. Reality and Fiction in Contemporary
Theatre. In: BOROWSKI, Mateusz; SUGIERA, Malgorzata (org). Fictional
Realities/Real Fictions: Contemporary Theatre in Search of a New Mimetic
Paradigm. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing,
2007.
JANUZELLI,
Antonio. A aprendizagem do ator. São Paulo, Editora Ática,
1992.
______________. O
caminho do homem ao ator e o retorno. In: Revista Olhares, São
Paulo, Escola Superior de Artes. Célia Helena, n. 1, p.
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______________. Práticas
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GUMBRECHT,
H.U. Produção da presença: o que o sentido não consegue transmitir.
Rio de Janeiro: Contraponto Editora PUC-Rio, 2010.
HEIDEGGER,
Martin. Conferencias e escritos filosóficos. São Paulo: Nova
Cultural, 1991.
HEIDEGGER,
Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2006.
QUILICI, Cassiano
Sydom. Antonin Artaud: Teatro e Ritual. São Paulo: Annablume;
Fapesp, 2004.
Estar presente e viver o momento.
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