segunda-feira, 29 de julho de 2013

PRESENÇA

 Por Rodrigo Severo

Quando falamos em presença, présence, presence, presencia no teatro, geralmente usamos como uma única acepção, a de corpo alerta, um corpo em estado de prontidão, um corpo aberto para o jogo com o outro, no entanto esse conceito em algumas experiências do teatro brasileiro atual, plural, complexo, aberto a muitas interpretações que precisa ser sempre problematizado a partir da intencionalidade pretendida pelo atuador, pois até na não representação existe presença sendo processada em cena, tomando como ponto de partida os conceitos estéticos e filosóficos heiggeriano. Abordando a presença, no campo do teatro, associada ao corpo do ator, Pavis diz que:
Segundo a opinião corrente entre a gente de teatro, a presença seria o bem supremo a ser possuído pelo ator e sentido pelo espectador. A presença estaria ligada a uma comunicação corporal “direta” com o ator que está sendo objeto da percepção (PAVIS, 2008, p. 305). 

A presença em Pavis, relacionada à dimensão do teatro, parece que se configura como identificação, verossimilhança do espectador com o atuador, ou seja, o conceito de presença citada por Pavis está associado à ideia de simulacro, de ilusão, ficcionalização do corpo do atuador em situação de representação (personagem). Uma vez que, o autor definira representação como tudo aquilo que é visível e audível em cena, mas ainda não foi recebido e decodificado pelo espectador.
“Ter presença”, é, no jargão teatral, saber cativar a atenção do público e impor-se; é, também, ser dotado de um “quê” que provoca imediatamente a identificação* do espectador, dando-lhe a impressão de viver em outro lugar, num eterno presente (PAVIS, 2008, p. 305).  
Ainda segundo ele, “cada ator amina o eu de sua personagem, que é confrontada com as outras (os tu, você). A fim de constituir-se em eu, ela deve apelar para um tu, você, ao qual emprestamos, por identificação (isto é, por identidade de visão), nosso próprio eu” (PAVIS, 2008, p. 307). Mas, na cena contemporânea atual quando não existe atmosfera de ilusão, identificação do espectador com o atuador (como no drama burguês), também quando não há reconhecimento, nem máscara representativa, tampouco a encenação pretende ser uma fatia da vida real, pelo menos nos moldes realistas, isso que dizer que não existe presença sendo processada no presente do acontecimento? Então o corpo sendo a materialidade de nossa existência no mundo, a presença não seria algo consubstancial (mesma natureza, constituição) do sujeito? 
Diante disso, evidencia-se, então, que quando se fala de presença associada ao trabalho do ator, geralmente, ela está relacionada a um corpo pronto para as necessidades da cena, com tônus muscular que modifica o olhar do espectador. É uma “fagulha da vida” que se mantém acesa durante o evento cênico. Em algumas pesquisas teatrais contemporâneas, a presença também pode ser geradora de inúmeros deslocamentos como acontece nas obras de Romeo Castelucci, Frank Castorf, Bob Wilson, Pina Bausch, Taudez Kantor, Jan Lauwers, Robert Lepage, Richard Foreman, Renato Cohen, José Celso Martinez Corrêa, Denise Stokles e Antonio Januzelli
A partir disso, podemos entender a presença como algo material e imaterial, ou melhor, como a junção entre substância material e substância imaterial, na qual o público consegue sentir quando existe alguém em estado de presença, seja na presença representacional, performativa ou pura presença. Na primeira cena do espetáculo Pulsão da Rede de criadores Desvio Coletivo, a simples ação dos atuadores caminharem em direção ao público, faz a plateia perceber que algo está acontecendo e todo o barulho e as conversas feitas pelos espectadores cessam, silenciam a partir da presença pura dos atuadores e a ação de caminhar. Pois não é apenas um corpo que caminha, mas um corpo vivo e tonificado sem tensão desnecessária, mas pronto para o jogo relacional. Então presença pode ser um conceito que está diretamente associado à ação e que a perpassa. O conceito de presença humana ligada à existência é fortemente discutido por Martin Heidegger como veremos logo mais.
A filosofia existencialista Heideggeriana (1991) dirige-se no sentido de superar a tradição clássica, hermenêutica e metafísica propondo um conceito de mundo como fenômeno em constante dinâmica e que se atualiza nas relações instauradas junto à presença (ente).  Ou melhor, ao abdicar a concepção de mundo como substância (res extensas=objeto) que se contrapõe ao mundo (sujeito), porém evidenciando o mundo na sua relação de co-pertenciamento com a presença.
Diante disso, o método fenomenológico utilizado por Heidegger concebe o ser como forma e presença. A filosofia heideggeriana ao elaborar a questão sobre o sentido do Ser (concebido como presença) elege como o ente que será questionado em seu ser. A constituição fundamental da presença é denominada por Heidegger ser-no-mundo (constituição fundamental da presença) que se projeta na existência. Nesse sentido, para Heidegger, não há ser humano destituído de sua presença, pois a substância e a essência do homem é a existência.
Assim, a essência da presença é existência que no seu momento fundamental, ser-no-mundo, seria o homem se relacionando com as coisas (instrumentos), com os outros (demais presenças) e consigo mesmo. E nesta tríade (coisas, outros e a si mesmo), ao se ocupar, seria o primeiro e o principal modo à presença (cotidiana), como existencialidade, projetar-se. Então a presença estaria associada tanto ao conceito heideggeriano de “ocupação” quanto o de ação.
Nesta perspectiva, as ideias de Heidegger parecem decantar nas questões sobre presença levantadas por Gumbrecht, pois ele compreende a possibilidade de uma relação com o mundo fundado na presença (GUMBRECHT, 2010, p. 13), apoiando nas concepções do homem heideggeriano. Gumbrecht na obra Produção da presença: o que o sentido não consegue transmitir (2010), aborda a possibilidade de nos relacionamos com o mundo considerando a materialidade dos objetos sem fundamentalmente conferir-lhes sentido. Nesse sentido, para o autor, “presença refere-se, em primeiro lugar, às coisas (res extensae) que, estando à nossa frente, ocupam espaço, são tangíveis aos nossos corpos e não são apreensíveis, exclusiva e necessariamente, por uma relação de sentido” (GUMBRECHT, 2010, p. 9).
A presença para Gumbrecht é “o que é ‘presente’ para nós”, é o que nos toca, “está à nossa frente”, “ao alcance e tangível para nós” (Idem, p.38), “diante dos olhos e no contato com o corpo” (Idem, p.10), reverberando em efeitos de produção de uma intensa presença. Essa produção de presença caminha para o território da vivência como um fenômeno privilegiado que por meio de experiências estéticas podem nos dar a sensação do estar-no- mundo, atuando e interagindo com ele. Pois a “produção da presença” aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto dos objetos “presentes” sobre corpos humanos (Idem, p.13). Essa perspectiva parece ser uma chave epistemológica para se entender a presença no território das artes, principalmente na esfera do teatro. Assim, neste momento, os “teatros” se apropriam do conceito de presença criando vários subconceitos para ela partir do estudo e da especificidade de cada produção artística teatral: presença pura, presença representacional, presença performativa, presença cênica. 
Todas essas aproximações têm como denominador comum uma concepção filosófica, idealista, mística, ritualística, concreta e até mesmo indefinível seja relacionada à presença como algo existencial ou como energia que emana do corpo do artista que é sentida pelo espectador. Será que se pode explicar o inexplicável, mas se ela é sentida, talvez caminhos possam ser trilhados para se fomentar uma ciência da presença do atuador?
Tendo participado das pesquisas desenvolvidas por Jerry Grotowski, entre 1961 e 1963, Eugenio Barba, 1979, sistematizou a Escola Internacional de Antropologia Teatral (ISTA), a qual estuda o homem em situação organizada de representação. A Antropologia Teatral pode ser compreendida como o estudo do “corpo dilatado” (BURNIER, 2001, p.111), ou como o “estudo do comportamento cênico pré-expressivo que se encontra na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis e das tradições pessoais e coletivas” (BARBA, 1994, p.23).
Deste modo, essa ciência tem como mote investigativo o desenvolvimento do comportamento do ator-bailarino em situação de representação não organizada, centrando suas pesquisas nos elementos que tornam a presença cênica dilatada. Para isso, o estudo da Antropologia Teatral se fundamenta na raiz de diversas técnicas de representação em nível transcultural, buscando princípios técnicos para despertar a presença cênica do intérprete o e seu dinamismo.  Barba defende uma nova corporeidade do ator ao pesquisar os fundamentos de intensificação da presença corporal do ator, buscando um “corpo dilatado”, um “corpo-em-vida”, que pode ser entendido como a presença do ator. É interessante observar que nas concepções de Barba sobre presença cênica, ela parece ser a construção de um corpo fictício produzido a partir de princípios pré-expressivos e energéticos que alimentam a vida do ator-bailarino em estado de representação. Assim, presença para o estudo da Antropologia teatral pode ser compreendida como energia dilatada que emana do corpo ator-bailarino e se projeta no espectador. Neste sentido, a presença é corpo vivo e se ela é corpo vivo, é substância pensante e substância corpórea coexistindo no mesmo instante. Como podemos perceber no trabalho do ator desenvolvido por Antonio Januzelli.
 Antonio Januzelli quando fala “da presença de si” coloca que “é preciso que estejamos sempre ‘presente’ em nosso corpo” (Januzelli, 1992, p.17). Ele remete a uma presença fenomenológica existencial onde o “Ser da Cena” está presente em sua totalidade, resultando no “Estar em Cena”. É o ator centrado em si mesmo, despojado, como afirma Januzelli (1992, p.78). É a presença como corpo que não nega sua existencialidade, mas que estar pleno e aberto para as situações da cena, aceitando suas idiossincrasias, singularidades, descobrindo e atingindo o "si mesmo". 
Se não estivermos inteiros no que fazemos, em cada coisa, a percepção mais profunda da existência não se configura, não se firma, não de torna uma substancia mágica. Viver a vida começa com a comunhão que estabelecemos com cada coisa que fazemos (Januzelli, 1992, p. 18).

            Para Januzelli, somos energia em perpétuo movimento. Então se somos matéria/energia se processando no mesmo instante, é o refinamento da materialidade de energia (o nosso corpo) que se deve trabalhar para que o artista esteja sempre disponível e presente na cena, pois a qualidade deste trabalho, pode também refletir na materialidade da relação estabelecida pelo atuador com os sujeitos (espectadores) e a experiência estética (evento cênico). Considerando o corpo não como um dispositivo mecânico, mas um dispositivo vivo que se reconfigura a partir de sua interação com outros corpos e com o mundo.

 O ator precisa preparar-se primeiro para o “Estar em cena”: gestar um corpo iluminado, elétrico, que interaja com outro e que possua carga para se projetar até a plateia, provocando e prendendo a atenção de cada espectador, formando um campo magnetizado de trocas (Januzelli, 1992, p. 78).

A presença então, também pode ser entendida como choque como colisão que provoca alterações concretas no real, como acontece nos trabalhos desenvolvidos por Marina Abramovic e por Antonio Januzelli. A ideia de presença como algo perturbador pode ser entendida nos estudos do ator desenvolvido por Grotowski e Artaurd. Pavis afirma que em Eugenio Barba e Moriaki Watanabe fazem da presença contradição e o oxímoro do ator: Ser marcadamente presente e, no entanto, nada apresentar, é, para um ator, um oxímoro, uma verdadeira contradição, [...] o ator de pura presença [é um] ator representado sua própria ausência (Bouffonneries apud Pavis, 2008, p. 305).
Desse modo, a experiência corpórea do atuador está intimamente ligada à sua capacidade geradora de estado-presença que se modifica e se atualiza a partir de sua relação com os objetivos presentes no acontecimento. Ela nem sempre se processa exclusivamente por meio de características físicas do indivíduo, pois alguns atuadores apresentam uma energia tão irradiante, cujos efeitos sentimos antes mesmo que o ator tenha agido, no vigor de estar ali (PAVIS, 2004). Sendo assim, a presença como existencialidade real no acontecimento cênico faz com que estejamos sempre em fluxo, em “produção de presença” que acontece pela interação como coloca Gumbrecht. Assim, podemos também entender presença próxima do conceito de “metafísica em atividade” como é colocado no teatro artudiano, que abre novos modos de percepção e outras dimensões de realidade (QUILICI, 2004):
A palavra “metafísica”, utilizada aqui numa acepção muito particular, tende a dissipar essa conotação meramente utilitária associada à magia. Ao mesmo tempo, a expressão “em atividade” é colocada para burlar nossa identificação imediata entre metafísica e abstração (Idem, 2004, p. 39).

A presença é provocadora de múltiplas dimensões de experiência. Ela não está só ligada à subjetividade e à virtualidade, mas também a presença-presente do corpo vivo, carnal do atuador e em constante fluxo no aqui agora da cena, que é vista e sentida pelo espectador, pois a presença é existência. Então se ela é existência, ela existe até quando a intenção é não ter presença. Pois o que pode ser mensurado é a qualidade da presença e não se ela existe ou não.
          A presença, no teatro, não está apenas ligada à característica inata do indivíduo, ao dom, ao talento, à magia, pois já que presença é algo que está associado à ação, como declara Heidegger, pode ser trabalhada e construída, como um elemento ritualístico (teatro artaudiano). E, procurando sempre manter a totalidade corpórea com suas idiossincrasias mesmo quando a cena apresenta uma pluralidade fragmentária, uma pulverização de códigos e signos abertos, uma multiplicidade de formas e referencias como é observado na cena contemporânea atual, nos “teatros do real” (FERNANDES, 2011).
Assim podemos compreender a presença do atuador sem estar ligada à construção de uma máscara representativa, pois ela pode se efetivar sem existir transformação simbólica, sem ter metamorfose do ator em personagem, ou seja, o atuador não representa e não interpreta nada, entretanto o estado de presença sempre existirá no aqui agora da cena, com corpos vivos e presentificados que podem gerar identificação, distanciamento ou estranhamento pelo simples fato de estar no espaço, com “centelha da vida”. Esse corpo pode não expressar nenhum sentimento, nenhuma reação, contudo está “presente” e aberto para ação e reação do público. Pode ser um corpo de até na tentativa de sua ausência gera “presenças”. Nesse sentido, não podemos falar em presença como um termo singular, mas “presenças” que se dimensionam e se redefinem a partir do contato com o público.
Essa presença, seja na identificação, no distanciamento ou estranhamento pode tocar em categorias perceptivas e territórios emocionais no público, pois latências estão sendo processadas no corpo do atuador e percebidas pelo espectador. Então, ela é físico, crível e visível, pois ela é também a materialidade corpórea exacerbadamente real. Assim a presença não é uma operação metafísica de valorização substancial, algo etéreo, transcendental por mais que tenha um halo de misticismo.
Portanto, a presença é literal, pois ela é substância pensante e substância corpórea, física e mental atuando no mesmo instante até mesmo sem mediação, pois ela se realiza a partir da corporeidade do atuador.  Então, entendemos a presença, como real e concretus que designa a existência humana em oposição à abstração. "concreto é o homem neste mundo" (Sartre), talvez no “teatros” contemporâneo não podemos falar de presença, mas de "presenças" como termo plural e multifacetado que é determinada a partir do processo criativo de cada artista, gerando no espectador uma “percepção multi-estável” como coloca Érika Fischer-Lichte(2007).

 REDE DE CRIADORES DESVIO COLETIVO
ESPETÁCULO "PULSÃO" (2013)  

"THE ARTIST IS PRESENT" (2010)
MARINA ABRAMOVIĆ 

PERPLEXIDADE (2013)
COM RODRIGO SEVERO, GIL DUARTE E PATRICIA BERTUCCI

ESPETÁCULO O PORCO (2004) 
COM DIREÇÃO DE ANTONIO JANUZELLI E ATUAÇÃO DE HENRIQUE SACHFER


Referencias

BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: Dicionário de Antropologia Teatral. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
BROOK, Peter. A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.
FERNANDES, Silvia. Teatralidade e Performatividade na cena contemporânea. In Revista Repertório nº 16, p. 11-23, 2011.
FISCHER-LICHTE, Erika. Reality and Fiction in Contemporary Theatre. In: BOROWSKI, Mateusz; SUGIERA, Malgorzata (org). Fictional Realities/Real Fictions: Contemporary Theatre in Search of a New Mimetic Paradigm. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2007.
JANUZELLI, Antonio. A aprendizagem do ator. São Paulo, Editora Ática, 1992.
______________. O caminho do homem ao ator e o retorno. InRevista OlharesSão PauloEscola Superior de ArtesCélia Helena, n. 1, p. 35-38, 2009.
______________. Práticas do ator (uma ciência do corpo sutil): Brasil e América Latina. Sala Preta (USP), São Paulo, v. 2, p. 39-45, 2002.
GUMBRECHT, H.U. Produção da presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto Editora PUC-Rio, 2010.
HEIDEGGER, Martin. Conferencias e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2006.

QUILICI, Cassiano Sydom. Antonin Artaud: Teatro e Ritual. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004.

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