Verbete: EXPERIÊNCIA
por Rita Pisano
– 2013
A ideia de desenvolver esse
verbete parte da minha pesquisa sobre o estudo que os autores John Dewey e
Jorge Bondía Larrossa fazem sobre a noção de experiência e as relações que
estabeleço a partir desses pensamentos com o fazer artístico e o exercício teatral
(principalmente quando trabalhado em instituições educacionais com não atores),
colocando a experiência como um conceito chave para a compreensão dos processos
criativos.
Para começar desenvolvendo a
reflexão sobre o verbete escolhido acredito ser importante apresentar algumas
definições da palavra em si. Das definições de experiência encontradas no
dicionário Michaelis temos: 1- Ato
ou efeito de experimentar. 2-
Conhecimento adquirido graças aos dados fornecidos pela própria vida. 3- Ensaio prático para descobrir ou
determinar um fenômeno, um fato ou uma teoria; experimento, prova. 4- Conhecimento das coisas pela prática
ou observação. 5- Uso cauteloso e
provisório. 6- Tentativa. 7- Perícia, habilidade que se adquirem
pela prática.
A partir do conhecimento
etimológico da palavra experiência podemos entrar na discussão sobre sua
existência no fazer artístico. O filósofo John Dewey no
livro A
Arte como Experiência - obra que é
fruto de dez conferências ministradas pelo autor com o propósito de falar sobre
arte - distinguiu um tipo especial de experiência, diferente das experiências
comuns. Segundo ele, passamos o tempo todo por diversas experiências mas a
maioria delas são superficiais e incompletas. Dewey, fala que ter uma
experiência singular, significa vivenciar determinado acontecimento até a sua
consumação. Ele afirma que a verdadeira experiência produz uma transformação,
torna-se uma referência e busca outras experiências semelhantes.
Dewey coloca que na experiência artística há dois
fatores importantes a ser considerados. Primeiro: o prazer e a satisfação
envolvidos no fazer; segundo: o total engajamento do artista em relação ao
“produto” que produz, assim como a consciência sobre o seu processo pessoal no
fazer artístico.
Jorge Bondía Larrosa, no artigo Notas
sobre experiência ou o saber da experiência, diz que “a experiência é o que nos passa, o
que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o
que toca”, explicitando que a experiência é um processo pessoal que depende de
uma elaboração subjetiva e não de um conhecimento sistemático.
Por experiência no teatro e principalmente no teatro
feito em instituições educacionais, entendo que o fazer teatral significa o ato
de participar de um processo dinâmico que promove movimentos de
ressignificação, recriação para que cada um possa ‘se dar conta’ que é agente
integrante de um processo criativo, corresponsável e por que não dizer
artista. Os alunos que participam de uma
aula de teatro assim como os atores num processo de ensaio, precisam, apesar do
diretor/professor/orientador, gerenciar seus próprios caminhos e fazer suas
escolhas; para que possam no coletivo, e também individualmente, elaborar sua
própria experiência.
O trabalho com o outro, com o coletivo, a observação e
construção de referências são no teatro instrumentos para vivenciar a
experiência individual. Podemos listar alguns dos possíveis procedimentos
utilizados no trabalho coletivo de teatro: Improviso, jogo dramático,
intervenções no espaço, saídas ao teatro, criação de cenas, leituras
dramáticas, montagens, escrita dramatúrgica, observação e discussão de
exercícios, ocupação do espaço e tantos outros.
Todos esses procedimentos podem ser ferramentas para permitir a vivencia
individual de um processo coletivo e assim permitir que a trajetória de cada
participante seja uma experiência singular.
Nesse sentido, ao pensar que a experiência parte de um
processo subjetivo podemos inclusive nos questionar: como se aprende teatro?
Que saberes são necessários para a construção de um saber teatral? Eugênio
Barba diz que “O ofício do ator é arte que não se ensina, apenas se aprende”; e
como aprender algo que não se ensina? Experienciando, fazendo teatro e relacionando todos os elementos que compõe
sua linguagem. No saber da experiência
não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem sentido
do que nos acontece. E esse saber da experiência tem algumas características
essenciais que o opõem, ponto por ponto, ao que entendemos como conhecimento. (Larrossa
2002)
Larrosa lembra que a experiência é a possibilidade de que algo nos
aconteça ou nos toque e isso só é possível se pudermos parar:
[...] parar para
pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, escutar mais devagar; parar
para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião,
suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o
que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do
encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.” (Larrossa 2002)
Na pesquisa que faço sobre a experiência no fazer
artístico, especialmente sobre o fazer teatral na escola com não atores, me
deparei com o documentário Sonhos em Movimento,
que conta o processo de remontagem do espetáculo Kontkthof. A companhia estreou
esse espetáculo em 1978 e dez anos depois o remontou com senhores e senhoras
idosas de mais de 60 anos. Em 2008 a companhia de Pina Bauch Tanztheater
escolhe trabalhar com adolescentes de 14 a 18 anos das escolas da cidade de
Wuppertal que nunca tinham subido em um palco nem dançado antes. O documentário
retrata esse processo de ensaio.
É muito bonito perceber no documentário, como os
adolescentes vão se apropriando da linguagem da dança e como vão criando um
repertório pessoal a partir do que vivenciam nos ensaios. Os discursos, as
ações e as relações com o grupo e com a observação de si mesmo mudam muito no
decorrer do processo. Acredito que o filme seja um exemplo concreto de não
atores vivenciando uma experiência artística, entendendo os processos descritos
acima de autonomia, percepção e criação. Nesse sentido Dewey coloca a
experiência como o encadeamento das situações vividas, considerando o caráter
emocional envolvido na ação, a organização e o reconhecimento do percurso
vivenciado tornando esse ‘evento’ uma
experiência singular e portanto uma experiência estética.
Na experiência estética, segundo ele, há um fluxo que
vai de um acontecimento para outro que preserva, apesar dessa continuidade, o
valor de cada parte da vivência. Entre
um acontecimento e outro não há buracos, nem junções mecânicas, mas momentos de
pausas e repouso de definem a qualidade do movimento.
A qualidade estética que arredonda e unifica uma
experiência é emocional. “Quando significativas, as emoções são qualidades de
uma experiência complexa que se movimenta e se altera. Digo quando
significativas porque, de outro modo, elas não passam de explosões e irrupções
de um bebê perturbado. (...) A natureza íntima da emoção manifesta-se na
experiência de quem assiste a uma peça no palco ou lê um romance. É
concomitante ao desenvolvimento da trama; e a trama requer um palco, um espaço
para se desenvolver e tempo para se desdobrar. A experiência é afetiva, mas
nela não existem coisas separadas, chamadas emoções.”
O documentário Sonhos em Movimento revela esse
movimento de fluxo de experiências no processo de construção de uma coreografia
já existente. A maneira como os adolescentes se apropriam dos desenhos de cena,
como interagem uns com os outros, como se relacionam com seus corpos e com os
dos outros nos evidenciam esse percurso de significação de uma ação artística.
No meu trabalho de teatro com adolescentes do Ensino
Médio que participam de um curso que culmina numa montagem final o processo de
construção de uma experiência pessoal também é bastante evidente e desafiador
para o professor, visto que proporcionar movimentos e espaços para a criação
dos alunos não é algo simples, exige uma entrega verdadeira e um olhar atento e
artístico para o que está sendo produzido e experimentado. Percebo que muitos
momentos do percurso são, apesar de intensos, pouco claros quanto a sua
significação. O sentido de cada etapa do processo vai sendo descoberto quando
olhamos o percurso inteiro. Muitas vezes apenas depois de uma apresentação ou
da finalização de um trabalho é que o grupo entende as etapas que foram
passadas e posteriormente, num novo trabalho, lidam com essas mesmas etapas
(que muitas vezes trazem inseguranças, dúvidas e canseiras) com mais
propriedade. A propriedade de quem já viveu essa experiência e sabe que existem
momentos diferentes na criação artística, alguns bastante caóticos e outros de
muito prazer, e podem dessa forma contribuir mais significativamente com todo o
processo, tranquilizando os alunos novos e sendo o esteio do coletivo. A Experiência também
pode aparecer quando assistimos a uma apresentação artística, lemos um livro ou
vivenciamos algo marcante.
Na disciplina Encenações em Jogo: Experimentos de
Criação e Aprendizagem do Teatro Contemporâneo, nos foi proposto como trabalho
final do curso a criação de um vídeo a partir de uma ação performativa na cidade
de São Paulo. O meu trabalho tinha como objetivo colocar uma figura estranha na
cidade e observar como seria a interação dos transeuntes. Escolhi a figura de
um bode para ser essa figura. A escolha
dessa imagem específica deu-se pela complexa simbologia que ela carrega. O bode
foi utilizado em sacrifícios religiosos em muitas tradições do mundo, e tinha
um significado divino de libido e fecundação. Os bodes eram identificados então ora com os homens ora com
os deuses. Foi um animal por excelência sacrificado nas festas do deus
Dionísio, sendo identificado nesse sentido com o próprio Deus. Apesar de mencionados na Bíblia e utilizados
pelos Hebreus também nos seus sacrifícios, os bodes foram depois utilizados
pelas autoridades eclesiásticas cristãs da Idade Média como representações do
diabo e do mal. O bode passou então a ser associado às práticas de bruxaria e à
própria luxúria, tornando-se impuro e maléfico.
Imbuída de todo essa simbologia com uma máscara
simples e uma roupa preta fiz algumas andanças por um ponto da cidade de São
Paulo, fui a ponto de ônibus, metro e
percebi como cada pessoa se relacionava de maneira diversa com a figura
estranha ali apresentada. A experiência que eu vivia e a daqueles que interagiam
comigo, ora com palavras, gestos, sustos, suspiros, risadas e principalmente
olhares, formou uma conversa muito rica entre nós que participávamos daquela
ação; posteriormente com a edição do vídeo pude perceber como esse movimento
foi uma experiência significativa para mim e talvez para algum daqueles que
cruzei no caminho.
Bibliografia:
DEWEY, John. Arte como Experiência.
São Paulo, Martins Fontes, 2010.
____________. Vida e Educação.
São Paulo: Edições Melhoramentos, 1952
FÉRAL, Josette. Por uma poética da
performatividade – teatro performativo. Trad. Lígia Borges. Revista Sala
Preta, São Paulo, v.1, n.8, pp. 197-210, 2008.
LARROSSA, Jorge Bondía. Notas
sobre a experiência e o saber de experiência. (Conferência proferida no I
Seminário Internacional de Educação de Campinas, traduzida e publicada, em
julho de 2001, por Leituras SME; Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das
unidades da Rede Municipal de Educação de Campinas/FUMEC. A Comissão Editorial
agradece Corinta Grisolia Geraldi, respon- sável por Leituras SME, a
autorização para sua publicação na Re- vista Brasileira de Educação.)
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro
Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
PUPO, Maria Lúcia. O lúdico e a
construção do sentido. Revista Sala Preta. Departamento de Artes Cênicas,
ECA-USP, pp. 181- 187.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar,
representar - práticas dramáticas e
formação. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
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