Dispositivo de criação coletiva que se tornou prática recorrente entre os grupos de teatro de São Paulo a partir dos anos 1990. Um dos objetivos principais desse procedimento de construção de linguagem cênica é abrir espaço para a autoria dramatúrgica de todos os envolvidos no processo de criação, sobretudo os atores e as atrizes através de improvisações individuais e workshops coletivos, frequentemente deflagrados por depoimentos pessoais.
O dispositivo não configura um “método” com normas rígidas e apresenta variações expressivas conforme é colocado em prática por diferentes companhias paulistanas com linhas de pesquisa e rotinas de trabalho muito distintas. Coletivos cênicos acabam formando uma espécie de “personalidade plural” com idiossincrasias, paladar estético, militâncias e visões de mundo muito diferenciadas, o que logicamente vai se refletir nas formas de condução dos processos colaborativos.
Um grupo, por exemplo, como o Teatro da Vertigem, que atua fora dos edifícios teatrais, quase sempre em atrito com a urbanidade, aposta somente em processos colaborativos com a presença de um dramaturgo, por mais que por vezes sejam convidados escritores distantes da prática dramatúrgica propriamente dita para participar da criação coletiva. A genialidade inóspita do encenador Antonio Araújo só se realiza em sua plenitude em conflito com o espaço urbano, sob o risco do real. Sua obsessão por uma porosidade permanente ao inesperado está até mesmo na escolha de autores não familiarizados com as tradições e rupturas características da escritura cênica para atuar como dramaturgos nos instigantes e inflamados processos colaborativos da companhia.
Já num coletivo como a Companhia São Jorge, outro grupo com profundo apreço por uma atuação fora dos palcos convencionais, em atrito mas também em comunhão com a urbanidade (no último espetáculo, Barafonda, os moradores do bairro da Barra Funda, zona oeste de São Paulo, foram incorporados à encenação de maneira inovadora e comovente), a presença de um dramaturgo não é condição sine qua non: os próprios atores e atrizes constroem suas falas e a escritura cênica se torna uma espécie de colagem de todas essas improvisações no processo de criação coletiva.
Na Companhia Livre, por sua vez, todos que participam do processo colaborativo acabam realizando workshops, não apenas o elenco, como, por exemplo, a cenógrafa, diretora de arte e figurinista Simone Mina, Alessandra Domingues, responsável pela criação de luz, e a diretora Cibele Forjaz, o “núcleo duro” do coletivo, que conta ainda com a atriz Lúcia Romano e o ator Edgar Castro.
O escritor, roteirista e dramaturgo Fernando Bonassi pode ser considerado um dos exemplos mais bem-sucedidos de atuação nos processos colaborativos da cena paulistana: deixou saudades no Teatro da Vertigem (Apocalipse 1.11, 1999) e na Companhia Livre (Arena Conta Danton, 2004). Após a experiência com Bonassi, ambos os grupos enfrentaram dificuldades com outros dramaturgos em processos colaborativos por motivos diferentes. No caso do Teatro da Vertigem, parte do elenco resistiu à imposição de um texto trazido pelo escritor Bernardo Carvalho em BR-3, espetáculo histórico da companhia que foi encenado em quase cinco quilômetros do rio Tietê, em São Paulo, em 2006. Alguns integrantes do grupo não se identificaram com a tragédia shakespeariana engendrada por Bernardo Carvalho e queriam uma participação mais autoral na escritura dramatúrgica. No que diz respeito à Companhia Livre, alguns membros reivindicaram uma presença mais sistemática do dramaturgo Newton Moreno no processo de criação de Vem Vai – O Caminho dos Mortos (2007). Arte presencial por excelência, a participação intensa e permanente de um dramaturgo nos processos colaborativos tende a facilitar as coisas, sobretudo no que diz respeito a saciar a ansiedade do elenco em participar da autoria da escritura cênica do espetáculo.
Cada dramaturgo acaba adotando uma “metodologia” própria para a condução dos trabalhos em processos colaborativos. Luis Alberto de Abreu, por exemplo, autor do texto de O Livro de Jó (1995), um dos mais importantes espetáculos do Teatro da Vertigem, não interagiu diretamente com o elenco da companhia, mas com o diretor Antonio Araújo. Em criações coletivas, Abreu trabalha com canovaccios, ou seja, com roteiros de ações que, em muitos momentos, funcionam como ponto de partida para as improvisações do elenco.
Há casos de processos colaborativos que envolvem textos já escritos, como, por exemplo, em Memória da Cana, do grupo Os Fofos Encenam, com direção de Newton Moreno. Tudo começou com fotos de crianças e de pessoas idosas da própria família trazidas a pedido do encenador pelos integrantes com raízes nordestinas da companhia. Em seguida, essas imagens foram sensorializadas e se tornaram figuras cênicas, depois reunidas numa instalação dramática no TUSP. Newton Moreno inseriu então essas figuras nos personagens de Álbum de Família, de Nelson Rodrigues. O objetivo foi resgatar as raízes nordestinas do grande dramaturgo “carioca”, mas que nasceu no Recife. O próximo passo foi o seguinte: o expressionismo de Nelson foi colocado à luz do canavial do sociólogo Gilberto Freyre, com direito a elementos do maracatu rural. Foi encenada uma “obra em progresso” no Itaú Cultural antes da estreia do espetáculo na sede da companhia em julho de 2009. A principal semeadura do processo colaborativo em Memória da Cana foram principalmente essas camadas sensoriais trazidas pelo elenco a partir da própria memória afetiva e de depoimentos pessoais que decantaram nos personagens de Nelson Rodrigues.
Todo processo colaborativo envolve prós e contras. A vitalidade e a efervescência da cena paulistana contemporânea estão com toda certeza respaldadas nesse dispositivo de criação coletiva que se tornou uma prática cada vez mais frequente entre os grupos da cidade, como já foi dito. No entanto, por outro lado, há momentos de estagnação, sobretudo em processos sem a presença de um dramaturgo, em que se enfrenta um tedioso bate-cabeça de workshops de atores e atrizes, além de uma constatação cruel, mas verdadeira: nem todos os integrantes dos coletivos têm uma percepção mais abrangente, conceitual e dramatúrgica, sob o ponto de vista autoral, do espetáculo como um todo. Muitos querem personagens minimamente esboçados para que possam exteriorizar o próprio talento interpretativo.
Livremente inspirado no método de trabalho do encenador Robert Wilson, o professor e também diretor Marcos Bulhões aponta um caminho que talvez possa funcionar como uma solução para esses problemas: a preparação de roteiros cênicos. Todos que fazem parte do processo podem e talvez devam escrever uma sequência de três cenas para os próprios workshops, com indicações das ações, palavras e pontuações musicais, além de três quadros desenhados pela própria pessoa para cada uma das cenas com o objetivo de materializar em imagens o que está na cabeça daquele determinado membro da equipe. Trata-se de um primeiro esboço de três planos que talvez possa ser bem eficiente nos processos colaborativos, sobretudo entre os integrantes mais confusos com relação ao que querem experimentar em suas criações individuais, logicamente sem jamais perder o frescor do inesperado que irrompe em improvisações calcadas em depoimentos pessoais.
Participei como dramaturgo em dois espetáculos construídos a partir de processos colaborativos: Kastelo, com o Teatro da Vertigem, e Satyricon, com a companhia Os Satyros, que acabou se transformando num tríptico cênico: além de Satyricon, uma primeira parte, Trincha, instalação dramática que antecedia o espetáculo propriamente dito, e Suburra, uma rave performativa que fechava a trilogia no final da noite.
Em Kastelo, na verdade, inicialmente participei da criação coletiva como cineasta e produzi imagens e sons para o futuro visagismo audiovisual do espetáculo. Após oito meses de ensaios, o grupo e o dramaturgo romperam a parceria e fui então chamado para elaborar uma escritura dramatúrgica a um mês da estreia, em janeiro de 2010. O desafio da empreitada era grande: Kastelo era todo encenado em andaimes do lado de fora do terceiro andar do Sesc Paulista, em pleno cartão-postal da cidade: a Avenida Paulista. Não é tarefa fácil criar ações em espaços tão exíguos e envolvendo uma logística e uma operacionalidade muito complexas. Aceitei o desafio e, ao perceber a carência de todos por texto, por algum tipo de escritura cênica engendrando ações e palavras para que todos pudessem empunhar durante os ensaios, acabei entrevistando individualmente cada ator e cada atriz, além dos personagens que todos haviam criado. Produzi oito textos diferentes para cada um dos oito integrantes do grupo que estavam participando do processo com tudo que haviam improvisado nos workshops. Foi uma espécie de exercício de alteridade: mergulhei no depoimento pessoal de cada um e nos personagens criados, e depois devolvi tudo em forma de texto. Essa etapa inicial na minha atuação como dramaturgo foi mais que uma devolução: na verdade, a intenção foi fazer uma espécie de acareação de todos com as figuras cênicas que haviam criado. Depois jogamos tudo fora e começamos a escrever uma primeira versão da dramaturgia. Foram ao todo nove, até duas semanas após a estreia. No início do processo, o grupo queria fazer uma adaptação livre do romance O Castelo, de Franz Kafka, e ainda discutir a sociedade do espetáculo contemporânea. Ainda atuando como cineasta na confecção do visagismo audiovisual da encenação, produzimos muitas imagens com esses pontos de partida. No entanto, quando assumi a dramaturgia, o grupo deu uma guinada: queria focalizar o trabalho na sociedade contemporânea, e o romance de Kafka havia ficado para trás. Ciente de que tínhamos uma dívida moral com o grande autor de A Metamorfose e O Processo (afinal, por que então chamar o espetáculo de Kastelo?), por sugestão de Antonio Araújo, que estava atuando nesse processo como dramaturgista (a direção foi de Eliana Monteiro), resgatei as narrativas surrealistas e angustiadas do livro Sonhos, de Kafka, com algumas imagens muito potentes, como, por exemplo, o corpo humano sendo tratado como uma máquina. Como dramaturgo, acabei jogando fora todo o material audiovisual que havia produzido como cineasta, pois não via mais organicidade de todas aquelas imagens com os novos rumos tomados pelo processo de criação do espetáculo. O interessante é que o material audiovisual não era mais orgânico na encenação, mas caiu como uma luva no filme que fiz posteriormente a partir do registro do espetáculo e que também foi batizado de Kastelo. Mistérios da linguagem do cinema. Essas imagens também deixaram camadas sensoriais no processo de criação dos atores e das atrizes da encenação Kastelo propriamente dita. Utilizando duas traquitanas cinematográficas (uma microcâmera de segurança e um body-cam, espécie de colete no qual uma câmera maior era fixada numa barra de alumínio, ambos acoplados aos corpos dos integrantes do elenco), pedi a todos que documentassem a urbanidade na pele dos personagens que haviam criado. Foi uma experiência muito interessante como processo, além de ter gerado imagens bonitas e inusitadas, sempre com o movimento do corpo de quem estava documentando e ao mesmo tempo performando na cidade. Num estúdio, projetamos essas imagens da urbanidade captadas pelo elenco no próprio corpo dos atores e das atrizes, utilizando a pele de todos como suporte de projeção. E aí filmamos o resultado. Felizmente esse rico material audiovisual, por mais que tenha ficado de fora do espetáculo, encontrou o seu lugar no filme Kastelo, híbrido de teatro, cinema, videoarte e intervenção urbana.
Por fim, minha segunda experiência como dramaturgo em processos colaborativos: o antes mencionado espetáculo Satyricon. Essa segunda experiência foi mais tranquila, pois tive muito mais tempo de maturar a escritura cênica ao longo dos meses, sem uma estreia premente no mês seguinte. No entanto, o processo envolvia um elenco muito numeroso, que crescia e diminuía, mas que no final mobilizou mais de 20 pessoas em cena. O tríptico Satyros’ Satyricon estreou em março de 2012 no Festival de Teatro de Curitiba. Um aprendizado maravilhoso guiado por duas bússolas: a minha presença constante no processo de criação coletiva e o permanente exercício de alteridade, respeito pelo “outro”, pela criação do “outro”, por mais que depois tudo aquilo acabaria sendo descartado. Em processos colaborativos, é muito importante que atores e atrizes vejam suas improvisações, workshops e criações materializados em escritura dramatúrgica. Todos se sentem respeitados e participando intensamente do processo de criação coletiva. Esse é um cuidado que os dramaturgos precisam ter: uma generosa apropriação de tudo que é criado por todos. Depois, em novas versões, os excessos vão sendo descartados, mas a ideia de uma autoria coletiva é preservada. O teatro, como já foi enfatizado, é uma arte presencial por excelência e, em processos colaborativos, essa presença constante do dramaturgo é condição sine qua non, o que gera um respeito entre todos os membros da equipe, principalmente o elenco. Processos colaborativos são por vezes árduos, mas, ao mesmo tempo, são caminhos extremamente bem-sucedidos para as criações coletivas. Trata-se de um dos pilares da experimentação e da potência da cena paulistana contemporânea.
Para finalizar, o verbete Processo Teatral do livro Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis (1999, p. 306):
As ações
ou acontecimentos encenados são processos quando se mostra seu caráter
dialético, o perpétuo movimento e a dependência de fatos anteriores ou
exteriores. Processo opõe-se a estado ou a situação fixada; é o corolário de uma visão transformadora do homem
“em processo”, pressupõe um esquema global dos movimentos psicológicos e
sociais, um conjunto de regras de transformação, e de interação: eis por que
esse conceito é empregado sobretudo numa dramaturgia aberta, dialética e até
mesmo marxista (P. Weiss. B. Brecht).
Referências
GUINSBURG, J., FARIA, João Roberto e LIMA, Mariangela Alves de. (orgs) Dicionário do Teatro Brasileiro. São Paulo: Perspectiva: SESC São Paulo, 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário