terça-feira, 31 de julho de 2012


Verbete: Pedagogia Pós-dramática.
                                                                                              Marcelo Gianini

Ao propor o termo pós-dramático para definir a prática cênica desenvolvida a partir dos anos 1970, Hans-Thies LEHMAN (2007) “designa um teatro que se vê impelido a operar para além do drama, em um tempo ‘após’ a configuração do paradigma do drama no teatro”.  Desta forma, a utilização do termo pós não carrega em si a proposição de negação ou de superação do drama ou de formas anteriores, mas “o que está em questão é apenas o nível, a consciência, o caráter explícito e o tipo específico dessa relação” (LEHMAN). Visto sob este ângulo, o teatro pós-dramático convive contemporaneamente com o Drama Burguês, com o Teatro Épico e com outras formas cênicas tradicionais. Concorde-se ou não com a conceituação proposta, a questão que se coloca é o que o pós-dramático tem a ensinar a arte educadores e a seus alunos. Seria pertinente a recorrência a estas formas e procedimentos no ensino de iniciação ao teatro? É válido trabalhar nos limites da linguagem teatral no ensino de teatro para leigos?
Tentemos responder afirmativamente a estas questões sob dois pontos de vista. O primeiro, a partir do objeto de estudo, o teatro e a História da Arte. As referências aos artistas do modernismo, bem ou mal, já foram incorporadas ao chamado cânone Ocidental. Suas obras são estudadas nas escolas, servem como referência nos vestibulares, faz-se programas televisivos sobre estes artistas, comemoram-se datas de nascimentos ou rememoram-se datas de falecimento. O Modernismo está aceito e catalogado. E os chamados pós-modernos? A crítica genética Cecília SALLES (2007) afirma que: “Não há criação sem tradição: uma obra não pode viver nos séculos futuros se não se nutriu dos séculos passados.” Ora, qual nossa tradição hoje senão também a dos chamados “artistas de invenção”, expressão cunhada pelo poeta Ezra Pound em meados do século XX. James Joyce publicou seu Ulysses em 1914 e introduziu o conceito de work in progres com seu Finnegans Wake na década de 30 do século passado, oitenta anos atrás! A gesantkunstwerk de Bob Wilson foi apresentada ao mundo na década de 1970. E entre Joyce e Wilson, vivemos a experiência do minimalismo, da pop arte, da arte cinética, do concretismo, da arte da performance, dos happenings e de um longo etc. Não fariam parte esses artistas e suas invenções formais de uma tradição da arte ocidental a ser estudada, seguida, negada, enfim, aceita como “tradição da invenção”? Artistas vinculados a uma possível “tradição das vanguardas”?
Um segundo ponto de vista sugerido para se pensar esta questão é a partir do sujeito do aprendizado, o aluno de iniciação ao teatro. Inicialmente vale notar que muitos dos experimentos “de ponta” e de “vanguarda” realizados a partir da segunda metade do século XX, hoje estão assimilados pelas artes de massa, como as colagens sonoras dos DJs, dos rappers, das músicas eletrônicas; as sequências aleatórias de imagens dos vídeo-clipes; a ausência de linearidade em muitas narrativas cinematográficas; a desestruturação do espaço euclidiano na incorporação das gravuras de Escher às artes gráficas, e por aí vamos. O mundo fragmentário está muito mais próximo de nossa experiência do real do que o formato tradicional Aristotélico da unidade de ação. São obras que remetem à ideia não de uma sequência à procura de unidade, mas de uma rede à procura da multiplicidade. Os fragmentos podem ser colados em diversas formalizações, até aleatoriamente e, assim, reveladas novas formas de percepção. Ora, rede é a forma privilegiada de comunicação no mundo contemporâneo. Nossa percepção contemporânea do mundo está mais próxima da colagem de fragmentos do que de uma visão cronológica linear e sequencial, assim como o teatro pós-dramático.
Trabalhar com formas e procedimentos do pós-dramático no ensino de teatro para leigos é trabalhar com liberdade estética. Se partirmos do princípio de que o foco do arte educador é o desenvolvimento do aluno através da apropriação da linguagem teatral, quanto mais amplos e livres de preconceitos forem os horizontes estéticos deste educador, mais ampla a visão de mundo compartilhada com os educandos. Aqui o que menos importa são as formalizações, mas os caminhos trilhados para se chegar a elas. “Fazer o mapa, não o decalque”, diriam DELEUZE e GUATTARI (1995). Conhecendo os caminhos trilhados, podemos refazê-los, questioná-los ou simplesmente abandoná-los. Isto significa a possibilidade de se fazer um novo “lance” no quadro das regras estabelecidas, como diria LYOTARD (2006):

A ênfase deve ser colocada de agora em diante sobre o dissentimento. O consenso é um horizonte, jamais ele é atingido. [...] É preciso supor um poder que desestabilize as capacidades de explicar e que se manifeste pela regulamentação de novas normas de inteligência ou, se se prefere, pela proposição de novas regras para o jogo de linguagem científico, que irão circunscrever um novo campo de pesquisa.

Sob este ponto de vista, as formas e os procedimentos do teatro pós-dramático tornam-se aberturas de possibilidades em lugar de opções estéticas fechadas. É a opção de trabalhar com a multiplicidade, com o excesso, com simultâneos pontos de vista, com um olhar histórico e com um olhar psicológico. Passar por esta experiência de ensino é abrir-se para o mundo, não um mundo distante, visto da periferia com câmeras focadas nas Metrópoles mundiais, mas para o nosso mundo cotidiano. Pensemos no exemplo do adolescente em frente de seus aparelhos eletrônicos de comunicação. Este mundo prosaico pode e deve ser transformado esteticamente. E transformá-lo em arte é, com certeza, questioná-lo por diversos ângulos, refazê-lo, reconstruí-lo, sempre de maneira crítica, distanciando-nos dos perigos de nos tornarmos reféns dos apelos instantâneos de uma “indústria cultural” que, segundo EFLAND (2005), “impõe formas e ideologias culturais a fim de integrar audiências numa ordem social existente”. A apropriação desta Indústria cultural, que deve ser concretizada de maneira crítica, é a função do educador. “Uma arte educação pós-moderna enfatiza a habilidade de se interpretar obras de arte sob o aspecto do seu contexto social e cultural como principal resultado da instrução” (EFLAND).
A Pedagogia Pós-dramática, porém, não pode ser imposta pelo arte educador, nem vista como pré-condição ao trabalho, mas sim como consequência do processo de construção do conhecimento desenvolvido com o grupo de alunos. A aproximação a estas estéticas mais radicais deve acontecer através do diálogo entre professor e alunos, teatro e mundo. O “novo” não pode ser enfiado pela goela abaixo dos alunos, mas se estabelecer como solução para os problemas estéticos e pedagógicos surgidos na construção do conhecimento. Segundo Ingrid KOUDELA (1996), o educador deve se apresentar como parceiro de jogo e não como “dono da verdade”. Nas palavras de Paulo FREIRE (2006):

Embora diferentes entre si, quem forma se forma ao ser formado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.

Assim, se não chega a ser necessário (ainda que recomendável) que o educador contemporâneo esteja “ligado” nas últimas criações europeias e norte-americanas, é imprescindível que esteja dialogando com seus alunos e com seu tempo. É como Paulo FREIRE afirma: “ensinar exige respeito aos saberes do educando. [...] O dever de não só respeitar [...] mas também [...] discutir com os alunos a realidade concreta a que se deve associar a disciplina cujo conteúdo se ensina.”
A introdução de procedimentos da arte contemporânea no ensino do teatro para leigos torna-se necessária porque estas novas formas dialogam com o nosso cotidiano. Um teatro de hoje para o mundo de hoje. Cabe a nós, educadores, a função de propor este diálogo entre mundo e teatro. Pode-se fazê-lo ao não abdicarmos de nossos pontos de vista artísticos; pontos de vista que reelaborem a visão de mundo a partir de termos estéticos. Ao não abrir mão desta percepção estética, mostra-se ao leigo, através do exemplo e de modelos artísticos, que há outras formas de se ler o mundo para além daquelas privilegiadas pelas instituições de ensino ou pela mídia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs – Vol. 1. Tradução: Aurélio Guerra Neto, Célia Pinto Costa. Editora 34, Rio de Janeiro, 1995.

EFLAND, Arthur D. Cultura, Sociedade, Arte e Educação num Mundo Pós-Moderno. In: O Pós-Modernismo, GUINSBURG, J. e BARBOSA, Ana Mae (org.), São Paulo, Ed. Perspectiva, 2005. p. 173-188.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo, Paz e Terra, 2006.

GIANINI, Marcelo. João, Artur e Alice: brincando de fazer teatro na contemporaneidade. Dissertação de mestrado. ECA-USP, 2009.

KOUDELA, Ingrid Dormien. Texto e Jogo: Uma Didática Brechtiana. São Paulo, Perspectiva/Fapesp, 1996.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind. São Paulo, Cosac Naify, 2007.

LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Tradução de Ricardo C. Barbosa. Rio de Janeiro, José Olympio, 2006.

SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado. Ed. Annablume/FAPESP. São Paulo, 2007.

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