quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A Teatralidade da vida cotidiana. Flávia Junqueira


A Teatralidade da vida cotidiana

O interesse em observar, analisar e através de minha pesquisa plástica evidenciar alguns aspectos da representação teatral presentes na ação da vida cotidiana comum, surge de uma constatação e também obsessão particular que existe como processo de descoberta  para o encaminhamento de meus trabalhos plásticos. Na maioria das vezes, a finalização destes trabalhos aparecem através da construção de fotografias, encenações para a foto, instalações e apropriações de documentos ou objetos que giram em torno deste tema.

Antes de definir a idéia do tema que quero tratar: a aparente constatação da teatralidade na vida cotidiana das pessoas; é importante analisar alguns de meus pensamentos anteriores a este texto, e que posteriormente se concretizaram plasticamente. Não irei me aprofundar aos trabalhos que já realizei no passado, porém é necessário lembrar alguns pontos que ajudam a definir o caminho que decido percorrer agora, além de entender os motivos de seu surgimento.

Ao iniciar minha pesquisa plástica, tomei consciência de que a relação afetiva de significados existente entre pessoas e seus objetos pessoais era o ponto de partida para pensar aspectos presentes em sentimentos atrelados a memória, intimidade, identificação e representação. Todos estes sentimentos muitas vezes eram encontrados em um único objeto biográfico[1] de quem o possuía, e que por sua vez sentia-se próximo de algo que lhe permitisse identificação e conforto. Refiro-me aqui a meus trabalhos "Retrato 3x4" e "Companhia dos Objetos" realizados no ano de 2008 (Anexo I e II).


Seqüencialmente a este raciocínio, o universo de proteção do objeto querido, ampliou-se para o cenário[2] da casa, onde mais especificamente no espaço íntimo do quarto, o sujeito podia se encontrar não só com seus objetos queridos, mas principalmente consigo mesmo.

Sob meu particular ponto de vista, a descoberta do cenário da casa como espaço físico atrelado fortemente a família, proteção, idealização e afastamento da realidade que existe ao "lado de fora da casa", possibilitou supor que no interior destes espaços aparentemente protegidos podia-se experimentar vivencias com maior liberdade de personalização e ficcionalização: a final,  como diz Gaston Bachelard, "o espaço físico íntimo da casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem[3]."

E importante dizer que a casa como cenário é uma espécie de equipamento expressivo da representação, evidenciando em suas próprias estruturas de funcionamento, uma dinâmica que relaciona laços de memória entre a pessoa e o local.

Muitas são as estruturas de funcionamento presentes em uma casa, porém uma delas é a que mais me interessa para o desenvolvimento deste tema:  a  estrutura estética presente na arquitetura física da casa, que como diria o sociólogo Erving Goffman seria a  "Fachada": o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconsciente empregado pelo indivíduo durante sua representação. Goffman descreve: "Primeiro há o cenário, compreendendo a mobília, a decoração, a disposição física e outros elementos do pano de fundo que vão constituir o cenário e os suportes do palco para o desenrolar da ação humana executada diante, dentro ou acima dele[4]"

Independentemente do modo pelo qual a casa se apresenta, meu foco é observá-la como espaço cenográfico que possibilita o acolhimento, proteção, realização de desejos, rituais e a celebração: algo que teoricamente está mais próximo da ficção de uma "teatralidade" do que a verdade desprotegida da "realidade".

Ao mesmo tempo, ressalto aqui, que não estou afirmando que a realidade da vida fora da casa tenha cunhos desastrosos, pois sabemos que no interior da casa há as mesmas possibilidade contrárias em números e proporções. Este é um assunto que irei tratar em um próximo momento, pois como o próprio trecho de Goffman relata, tal representação fictícia presente na estrutura estética da casa, pode nos apresentar um lado sinistro e possessivo do falseamento das relações e não somente uma vontade de afastamento da realidade e concretização de belas idealizações.

Em meu trabalho "A Casa em Festa" realizado em 2009 (Anexo III), passei a evidenciar aspectos de celebração presentes nas casas. Para fortalecer o aspecto teatral e idealizador que me interessava tratar, optei em representar e cenografar meus próprios auto retratos dando-lhes uma estaticidade e controle total de uma festa excessivamente ficcionalizada. A foto construída entrou como recursos conceitual para reforçar este objetivo, pois o ato documental não cumpriria com o apelo artificial que a imagem necessitava.






Para além do estatuto estabelecida através da casa, vale entender que a intenção ou necessidade de teatralidade da vida cotidiana é almejada pelo sujeito muito anteriormente. Isso porque, a casa, as celebrações, rituais de família, nada mais são ao meu ver, do que a representação estética refletida por uma utopia de felicidade, muitas vezes atrelada a proteção e segurança  e espelhada na suposta idealização de uma vida real próxima ao sonho.

Não é a toa, por exemplo, que os aparatos cênicos (cenário, figurino, iluminação e música) utilizados durante a passagem do ritual do casamento, sejam em sua grande maioria das vezes, a repetição estética contida nos finais felizes de contos de fadas.  O que só reforça minha constatação de que muitas passagens da realidade da vida cotidiana do homem, embebedam-se não só da representação teatral, como também do desejo de concretizar suas conseqüências ficcionais.

Meu interesse por ora não é tomar partido de valor sobre estes "tipos" de experiências de vida, muito menos julgá-los como infantins ou imaturas, cínicos ou sinceras. E natural pensar em uma aparente artificialidade  presente nestas estruturas, porém apesar de detonar um afastamento da realidade, é justamente através e por causa dela, que toda esta dinâmica de fato ocorre.

Em minha pesquisa plástica, a análise dos elementos estéticos das estrutura dramático/teatral existentes na encenação da vida cotidiana é o que de fato me interessa, pois entender a fundo os motivos que ocasionam esta estética, são assuntos para sociologia e psicologia, aos quais não desejo me aprofundar.

Para mim o que importa é que a forte relação entre a experiência teatral e a experiência real está constatada e ao pensar nisso é inegável evitar a leitura sob a perspectiva de que nestes casos encontramos uma estrutura clara de sujeito/personagem, intermediados por uma utopia de ação cotidiana/representação, que estão situados em um cenário/espaço físico.

Gostaria agora de apresentar algumas definições para aprofundar estas idéias. Para isso é preciso analisar primeiramente o conceito de teatralidade e na seqüência, definir a que tipo de teatro me refiro.

Segundo Josette Féral[5], A condição que define a teatralidade é a criação de um "espaço outro", dentro do universo do real, em que a ficção possa surgir. Essa condição é própria do teatro, mas ao mesmo tempo, não é somente o teatro o único produtor de efeito de tal teatralidade. Para Féral, a teatralidade presente na peça teatral repousa sobre o ator movido por um instinto que o instiga a transformar o real que o circunda. O que se pode deduzir que o conceito de teatralidade está intimamente ligado entre o sujeito, a ficção e a realidade. 

Ao associar as estruturas de representação do sujeito que se coloca no papel de personagem quando busca elementos estéticos presentes na atuação de sua vida cotidiana idealizada, refiro-me ao teatro dramático e a necessidade que o sujeito tem de dramatizar a sua própria história de vida.

Para o senso comum, o drama significa um acontecimento comovente ou uma situação de grande intensidade emocional. O sentido encontrado na definição de senso comum me interessa muito para a construção deste projeto plástico, porém não posso deixar de observar que a definição literária e teatral do drama, fortalece este pensamento.

Como se sabe, na Grécia Antiga o gênero dramático nasce dos rituais religiosos. Os homens através destes rituais realizavam a celebração de grandes festas, procissões, espetáculos públicos, cantavam e dançavam, usavam máscaras, roupas especiais e tochas. Estes rituais possibilitavam ao homem, através da imitação e representação, o contato com o êxtase divino.
Deste modo, a dramatização, como imitação por meio de personagens em ação, só adquire vida se corporificada em encenação. A encenação dramática é uma criação híbrida, uma síntese de recursos diversos, envolvendo atores, encenadores , cenário, música, figurino, coreografia, etc.[6]

Não é preciso ir muito longe para esbarrar constantemente com elementos do universo fantástico e intensões fantásticas em nosso cotidiano. O homem tenta amenizar o peso da realidade da vida se valendo de estratégias diversas: objetos, cenários e situações que conversam intimamente com os padrões estéticos artificiais e idealizados revestem nosso mundo, possibilitando ainda que muitas vezes temporariamente, misturarmos a realidade da vida com  a ficcionalização do sonho.

Como diria Goffman: "Não é provavelmente um mero acidente histórico que a palavra "pessoa", em sua acepção primeira, queira dizer máscara. Mas, antes, o reconhecimento do fato de que todo homem está sempre e em todo lugar, mais ou menos, conscientemente, representando um papel [...] São nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; são nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmos. Em certo sentido, e na medida que esta máscara representa a concepção que formamos de nós mesmos - o papel que nos esforçamos por chegar a viver -, esta máscara é o nosso mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos de ser. Ao final a concepção que temos de nosso papel torna-se uma segunda natureza e parte integral de nossa personalidade. Entramos no mundo como indivíduos, adquirimos um caráter e nos tornamos pessoas." [7]

Alguns de meus trabalhos plásticos mais atuais tentam se debruçar mais especificamente sobre estas questões.  Em um de meus projetos, ainda sem título definido, apresento uma instalação com uma centena de páginas de diferentes contos de fadas, ambos obrigatoriamente apresentando a felicidade em seus finais (Anexo IV).  Outro trabalho que passa por esta perspectiva é a instalação que desenvolvi em 2011 chamada "O caminho que percorri até te encontrar", uma catalogação de carrosséis na cidade de Paris, que me permitiu observar o cotidiano real da cidade e reorganizá-la através de uma cartografia incomum. (Anexo V).




Não é a toa que muito de meus trabalhos plásticos se valem de apropriações de objetos infantis, pois na grande maioria das sociedades, durante os primeiros anos de vida é dada as crianças a maior possibilidade de misturar o sonho com a vida, ainda que continuemos sonhando com a vida sonhada depois de adultos.

Na minha opinião, a teatralidade dramática é algo que apesar de ser distante do real, ter caráter representativo de ações e a aparente artificialidade em seus meios e recursos, vale-se de seus métodos para inferir na vida cotidiana como maneira de realização e idealização de situações, o que nos possibilita uma vivência mais fácil e prazerosa.

Para finalizar este tema, gostaria de citar um acontecimento real que ilustra na prática um pouco desta aparente dicotomia que venho tratando até aqui. O exemplo, por ser extremo e incomum, facilita sua verificação conceitual.

Intitulada "Família organiza funeral com personagens da Disney para bebê"[8], a matéria de internet publicada pelo site virgula no dia 07/02/2012, trata de uma família que resolve prestar homenagens a seu filho morto pelo câncer. Para homenageá-lo, sua família decidiu se vestir como seus personagens preferidos de TV durante o funeral. No dia do ritual, Mickey, Minie e seus amigos seguiram o cortejo.

A imagem documentada,  infinitamente mais interessante que o motivo que o levou a ser realizada, mostra o impacto entre a realidade e a clara intenção de dramatização. Ainda que neste exemplo extremo haja uma forte necessidade da família em fantasiar a realidade que não poupou seu filho da morte, há uma beleza e uma situação sinistra que em suas polaridades mediam a situação: As fantasias de teatro infantil, ainda que próprias da representação, existem como presença e participam verdadeiramente do cortejo. Já o carro fúnebre, austero e doloroso, carrega o peso real da morte.
Ainda que consciente da tragédia, "Mickey" permanece sorrindo em sua estaticidade de fantasia, a máscara aqui, cumpre seu papel fundamental e o jogo cênico de representação possibilita que através da máscara haja uma literal e figurativa fuga da realidade.

Conclusivamente suponho que Mickey cumpre seu papel e a idealização do ritual torna a família um pouco mais feliz. Por outro lado, observar a cena de Mickey e seus amigos sorrindo, diante da tragédia dos outros que são eles próprios, torna o cenário um quanto bizarro: um deslocamento estranho com a realidade nos torna melancólicos.



" As máscaras são expressões controladas e ecos admiráveis do sentimento, ao mesmo tempo fiéis, discretas e supremas. As coisas vivas em contato com o ar devem adquirir uma cutícula, e não podem argumentar que as cutículas não são corações; contudo alguns filósofos parecem aborrecidos com as imagens por não serem objetos e com as palavras por não serem sentimentos. Palavra e imagens são como as conchas, não menos partes integrantes da natureza do que as substancias que cobrem, porém melhor dirigidas ao olhar e mais abertas a observação. Não diria que a substância existe por causa da aparência, ou o rosto por causa da máscara, ou as paixões por causa da poesia e da virtude. Coisa alguma surge na natureza devido a qualquer outra coisa; todas essas faces e produtos estão igualmente envolvidas no ciclo da existência..."

George Santayana[9]




[1] Segundo Ecléa Bosi no livro O Tempo Vivo Da Memória (ensaio de psicanálise social), os objetos biográficos são aqueles que envelhecem com o possuidor e se encorparam a sua vida: o relógio da família, o album de fotografias, a medalha do esportista, a máscara do etnólogo, etc.
[2] Cenário é o espaço, real ou virtual, onde a história se passa. Pequeno dicionário da língua portuguesa. Celso Pedro Luft.

[3] Gaston Bachelard. A Poética do espaço. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
[4] Erving Goffman. A representação do Eu na vida cotidiana. Ed. Vozes, 2009. pág 29.
[5] Feral, J. A cerca de la Teatralidad. Caderno de Teatro XXI. Buenos Aires. Nueva Geracion, 2003.
[6]
[7] Erving Goffman. A representação do Eu na vida cotidiana. Ed. Vozes, 2009. pág 27.
[8] http://virgula.uol.com.br/ver/noticia/inacreditavel/2012/02/06/293745-familia-organiza-funeral-com-personagens-da-disney-para-bebe#2
[9] Soliloquies in England and Later Soliloquies. Nova York: Scribner's, 1922. p 131-132.



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