A Teatralidade da vida cotidiana
O interesse em observar, analisar e através de
minha pesquisa plástica evidenciar alguns aspectos da representação teatral
presentes na ação da vida cotidiana comum, surge de uma constatação e também obsessão
particular que existe como processo de descoberta para o encaminhamento de meus trabalhos plásticos. Na
maioria das vezes, a finalização destes trabalhos aparecem através da
construção de fotografias, encenações para a foto, instalações e apropriações
de documentos ou objetos que giram em torno deste tema.
Antes de definir a idéia do tema que quero
tratar: a aparente constatação da
teatralidade na vida cotidiana das pessoas; é importante analisar alguns de
meus pensamentos anteriores a este texto, e que posteriormente se concretizaram
plasticamente. Não irei me aprofundar aos trabalhos que já realizei no passado,
porém é necessário lembrar alguns pontos que ajudam a definir o caminho que decido
percorrer agora, além de entender os motivos de seu surgimento.
Ao iniciar minha pesquisa plástica, tomei
consciência de que a relação afetiva de significados existente entre pessoas e
seus objetos pessoais era o ponto de partida para pensar aspectos presentes em
sentimentos atrelados a memória, intimidade, identificação e representação. Todos
estes sentimentos muitas vezes eram encontrados em um único objeto biográfico[1]
de quem o possuía, e que por sua vez sentia-se próximo de algo que lhe
permitisse identificação e conforto. Refiro-me aqui a meus trabalhos
"Retrato 3x4" e "Companhia dos Objetos" realizados no ano
de 2008 (Anexo I e II).
Seqüencialmente a este raciocínio, o universo
de proteção do objeto querido, ampliou-se para o cenário[2]
da casa, onde mais especificamente no espaço íntimo do quarto, o sujeito podia se
encontrar não só com seus objetos queridos, mas principalmente consigo mesmo.
Sob meu particular ponto de vista, a descoberta
do cenário da casa como espaço físico atrelado fortemente a família, proteção,
idealização e afastamento da realidade que existe ao "lado de fora da casa",
possibilitou supor que no interior destes espaços aparentemente protegidos
podia-se experimentar vivencias com maior liberdade de personalização e
ficcionalização: a final, como diz
Gaston Bachelard, "o espaço físico íntimo da casa é uma das maiores forças
de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem[3]."
E importante dizer que a casa como cenário é
uma espécie de equipamento expressivo da representação, evidenciando em suas
próprias estruturas de funcionamento, uma dinâmica que relaciona laços de
memória entre a pessoa e o local.
Muitas são as estruturas de funcionamento
presentes em uma casa, porém uma delas é a que mais me interessa para o
desenvolvimento deste tema: a estrutura estética presente na
arquitetura física da casa, que como diria o sociólogo Erving Goffman seria a "Fachada": o equipamento
expressivo de tipo padronizado intencional ou inconsciente empregado pelo
indivíduo durante sua representação. Goffman descreve: "Primeiro há o cenário,
compreendendo a mobília, a decoração, a disposição física e outros elementos do
pano de fundo que vão constituir o cenário e os suportes do palco para o
desenrolar da ação humana executada diante, dentro ou acima dele[4]"
Independentemente
do modo pelo qual a casa se apresenta, meu foco é observá-la como espaço
cenográfico que possibilita o acolhimento, proteção, realização de desejos,
rituais e a celebração: algo que teoricamente está mais próximo da ficção de
uma "teatralidade" do que a verdade desprotegida da "realidade".
Ao
mesmo tempo, ressalto aqui, que não estou afirmando que a realidade da vida
fora da casa tenha cunhos desastrosos, pois sabemos que no interior da casa há
as mesmas possibilidade contrárias em números e proporções. Este é um assunto
que irei tratar em um próximo momento, pois como o próprio trecho de Goffman
relata, tal representação fictícia presente na estrutura estética da casa, pode
nos apresentar um lado sinistro e possessivo do falseamento das relações e não
somente uma vontade de afastamento da realidade e concretização de belas
idealizações.
Em
meu trabalho "A Casa em Festa" realizado em 2009 (Anexo III), passei
a evidenciar aspectos de celebração presentes nas casas. Para fortalecer o
aspecto teatral e idealizador que me interessava tratar, optei em representar e
cenografar meus próprios auto retratos dando-lhes uma estaticidade e controle
total de uma festa excessivamente ficcionalizada. A foto construída entrou como
recursos conceitual para reforçar este objetivo, pois o ato documental não
cumpriria com o apelo artificial que a imagem necessitava.
Para
além do estatuto estabelecida através da casa, vale entender que a intenção ou
necessidade de teatralidade da vida cotidiana é almejada pelo sujeito muito
anteriormente. Isso porque, a casa, as celebrações, rituais de família, nada
mais são ao meu ver, do que a representação estética refletida por uma utopia
de felicidade, muitas vezes atrelada a proteção e segurança e espelhada na suposta idealização de
uma vida real próxima ao sonho.
Não
é a toa, por exemplo, que os aparatos cênicos (cenário, figurino, iluminação e
música) utilizados durante a passagem do ritual do casamento, sejam em sua
grande maioria das vezes, a repetição estética contida nos finais felizes de
contos de fadas. O que só reforça
minha constatação de que muitas passagens da realidade da vida cotidiana do
homem, embebedam-se não só da representação teatral, como também do desejo de
concretizar suas conseqüências ficcionais.
Meu
interesse por ora não é tomar partido de valor sobre estes "tipos" de
experiências de vida, muito menos julgá-los como infantins ou imaturas, cínicos
ou sinceras. E natural pensar em uma aparente artificialidade presente nestas estruturas, porém apesar
de detonar um afastamento da realidade, é justamente através e por causa dela,
que toda esta dinâmica de fato ocorre.
Em
minha pesquisa plástica, a análise dos elementos estéticos das estrutura
dramático/teatral existentes na encenação da vida cotidiana é o que de fato me interessa,
pois entender a fundo os motivos que ocasionam esta estética, são assuntos para
sociologia e psicologia, aos quais não desejo me aprofundar.
Para
mim o que importa é que a forte relação entre a experiência teatral e a
experiência real está constatada e ao pensar nisso é inegável evitar a leitura
sob a perspectiva de que nestes casos encontramos uma estrutura clara de
sujeito/personagem, intermediados por uma utopia de ação
cotidiana/representação, que estão situados em um cenário/espaço físico.
Gostaria
agora de apresentar algumas definições para aprofundar estas idéias. Para isso
é preciso analisar primeiramente o conceito de teatralidade e na seqüência,
definir a que tipo de teatro me refiro.
Segundo
Josette Féral[5], A condição que
define a teatralidade é a criação de um "espaço outro", dentro do
universo do real, em que a ficção possa surgir. Essa condição é própria do
teatro, mas ao mesmo tempo, não é somente o teatro o único produtor de efeito
de tal teatralidade. Para Féral, a teatralidade presente na peça teatral
repousa sobre o ator movido por um instinto que o instiga a transformar o real
que o circunda. O que se pode deduzir que o conceito de teatralidade está
intimamente ligado entre o sujeito, a ficção e a realidade.
Ao
associar as estruturas de representação do sujeito que se coloca no papel de
personagem quando busca elementos estéticos presentes na atuação de sua vida
cotidiana idealizada, refiro-me ao teatro dramático e a necessidade que o
sujeito tem de dramatizar a sua própria história de vida.
Para
o senso comum, o drama significa um acontecimento comovente ou uma situação de
grande intensidade emocional. O sentido encontrado na definição de senso comum
me interessa muito para a construção deste projeto plástico, porém não posso
deixar de observar que a definição literária e teatral do drama, fortalece este
pensamento.
Como
se sabe, na Grécia Antiga o gênero dramático nasce dos rituais religiosos. Os
homens através destes rituais realizavam a celebração de grandes festas,
procissões, espetáculos públicos, cantavam e dançavam, usavam máscaras, roupas
especiais e tochas. Estes rituais possibilitavam ao homem, através da imitação
e representação, o contato com o êxtase divino.
Deste
modo, a dramatização, como imitação por meio de personagens em ação, só adquire
vida se corporificada em encenação. A encenação dramática é uma criação
híbrida, uma síntese de recursos diversos, envolvendo atores, encenadores ,
cenário, música, figurino, coreografia, etc.[6]
Não
é preciso ir muito longe para esbarrar constantemente com elementos do universo
fantástico e intensões fantásticas em nosso cotidiano. O homem tenta amenizar o
peso da realidade da vida se valendo de estratégias diversas: objetos, cenários
e situações que conversam intimamente com os padrões estéticos artificiais e
idealizados revestem nosso mundo, possibilitando ainda que muitas vezes
temporariamente, misturarmos a realidade da vida com a ficcionalização do sonho.
Como
diria Goffman: "Não é provavelmente um mero acidente histórico que a
palavra "pessoa", em sua acepção primeira, queira dizer máscara. Mas,
antes, o reconhecimento do fato de que todo homem está sempre e em todo lugar,
mais ou menos, conscientemente, representando um papel [...]
São nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; são nesses papéis que nos
conhecemos a nós mesmos. Em certo sentido, e na medida que esta máscara
representa a concepção que formamos de nós mesmos - o papel que nos esforçamos
por chegar a viver -, esta máscara é o nosso mais verdadeiro eu, aquilo que
gostaríamos de ser. Ao final a concepção que temos de nosso papel torna-se uma
segunda natureza e parte integral de nossa personalidade. Entramos no mundo
como indivíduos, adquirimos um caráter e nos tornamos pessoas." [7]
Alguns
de meus trabalhos plásticos mais atuais tentam se debruçar mais especificamente
sobre estas questões. Em um de
meus projetos, ainda sem título definido, apresento uma instalação com uma
centena de páginas de diferentes contos de fadas, ambos obrigatoriamente
apresentando a felicidade em seus finais (Anexo IV). Outro trabalho que passa por esta perspectiva é a instalação
que desenvolvi em 2011 chamada "O caminho que percorri até te encontrar",
uma catalogação de carrosséis na cidade de Paris, que me permitiu observar o
cotidiano real da cidade e reorganizá-la através de uma cartografia incomum.
(Anexo V).
Não
é a toa que muito de meus trabalhos plásticos se valem de apropriações de
objetos infantis, pois na grande maioria das sociedades, durante os primeiros
anos de vida é dada as crianças a maior possibilidade de misturar o sonho com a
vida, ainda que continuemos sonhando com a vida sonhada depois de adultos.
Na
minha opinião, a teatralidade dramática é algo que apesar de ser distante do
real, ter caráter representativo de ações e a aparente artificialidade em seus
meios e recursos, vale-se de seus métodos para inferir na vida cotidiana como
maneira de realização e idealização de situações, o que nos possibilita uma
vivência mais fácil e prazerosa.
Para
finalizar este tema, gostaria de citar um acontecimento real que ilustra na
prática um pouco desta aparente dicotomia que venho tratando até aqui. O
exemplo, por ser extremo e incomum, facilita sua verificação conceitual.
Intitulada
"Família organiza funeral com personagens da Disney para bebê"[8],
a matéria de internet publicada pelo site virgula no dia 07/02/2012, trata de
uma família que resolve prestar homenagens a seu filho morto pelo câncer. Para
homenageá-lo, sua família decidiu se vestir como seus personagens preferidos de
TV durante o funeral. No dia do ritual, Mickey, Minie e seus amigos seguiram o
cortejo.
A
imagem documentada, infinitamente
mais interessante que o motivo que o levou a ser realizada, mostra o impacto
entre a realidade e a clara intenção de dramatização. Ainda que neste exemplo
extremo haja uma forte necessidade da família em fantasiar a realidade que não
poupou seu filho da morte, há uma beleza e uma situação sinistra que em suas
polaridades mediam a situação: As fantasias de teatro infantil, ainda que
próprias da representação, existem como presença e participam verdadeiramente
do cortejo. Já o carro fúnebre, austero e doloroso, carrega o peso real da
morte.
Ainda
que consciente da tragédia, "Mickey" permanece sorrindo em sua
estaticidade de fantasia, a máscara aqui, cumpre seu papel fundamental e o jogo
cênico de representação possibilita que através da máscara haja uma literal e
figurativa fuga da realidade.
Conclusivamente
suponho que Mickey cumpre seu papel e a idealização do ritual torna a família
um pouco mais feliz. Por outro lado, observar a cena de Mickey e seus amigos
sorrindo, diante da tragédia dos outros que são eles próprios, torna o cenário
um quanto bizarro: um deslocamento estranho com a realidade nos torna melancólicos.
" As máscaras são
expressões controladas e ecos admiráveis do sentimento, ao mesmo tempo fiéis,
discretas e supremas. As coisas vivas em contato com o ar devem adquirir uma
cutícula, e não podem argumentar que as cutículas não são corações; contudo
alguns filósofos parecem aborrecidos com as imagens por não serem objetos e com
as palavras por não serem sentimentos. Palavra e imagens são como as conchas,
não menos partes integrantes da natureza do que as substancias que cobrem,
porém melhor dirigidas ao olhar e mais abertas a observação. Não diria que a
substância existe por causa da aparência, ou o rosto por causa da máscara, ou
as paixões por causa da poesia e da virtude. Coisa alguma surge na natureza
devido a qualquer outra coisa; todas essas faces e produtos estão igualmente
envolvidas no ciclo da existência..."
George Santayana[9]
[1] Segundo Ecléa
Bosi no livro O Tempo Vivo Da Memória
(ensaio de psicanálise social), os objetos biográficos são aqueles que
envelhecem com o possuidor e se encorparam a sua vida: o relógio da família, o
album de fotografias, a medalha do esportista, a máscara do etnólogo, etc.
[2] Cenário é o espaço, real ou virtual, onde a história se passa.
Pequeno dicionário da língua portuguesa. Celso Pedro Luft.
[3] Gaston Bachelard. A Poética
do espaço. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
[4] Erving Goffman. A representação do Eu na vida
cotidiana. Ed. Vozes, 2009. pág 29.
[7] Erving Goffman. A representação do Eu na vida cotidiana. Ed. Vozes, 2009. pág 27.
[8] http://virgula.uol.com.br/ver/noticia/inacreditavel/2012/02/06/293745-familia-organiza-funeral-com-personagens-da-disney-para-bebe#2
[9] Soliloquies in England and Later Soliloquies. Nova York: Scribner's, 1922. p 131-132.
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