quinta-feira, 2 de agosto de 2012

DESCONTINUIDADE


Glauber Gonçalves de Abreu

Descontinuidade é um conceito que se estabelece a partir da negação do seu conceito oposto, continuidade. A relação antagônica se explicita pelo prefixo de origem latina des. Afirmar por negação, além de uma recorrente estratégia didática em muitas circunstâncias, é um jogo ideológico complexo que revela, em alguns casos, a existência condicionada dos fenômenos e coisas, como na música-poema de Lulu Santos. Som e silêncio, luz e escuridão, falar e calar são forças opostas que se retrossignificam para potencializar seus sentidos, ou seja, que constroem a dimensão de sua própria existência pela sua ausência na existência da outra.


Em outros casos, em virtude do contexto histórico e cultural, um dos pólos dessa estrutura antagônica tende a ser ocultado, produzindo um sistema hierárquico em que um deles faz sentido e o outro, não; em que um deles é válido e o outro, não; um serve e o outro, não; um sistema de normalidades e anormalidades criado historicamente e, por isso, presente em nosso tempo como herança. É o que ocorre neste caso específico, em que a percepção – ao menos a ocidental – ficou condicionada ao princípio da continuidade. Estabeleceu-se uma relação de validação entre sentido, significado, gosto e continuidade, como se apenas ela pudesse resultar em uma experiência válida e qualquer iniciativa fora dela resultasse em erro, em impossibilidade.

Continuidade, em linhas gerais, pode ser entendida como a manutenção de um fluxo, geralmente bipolarizado, em que não se conhece necessariamente o percurso, mas se localiza com clareza o ponto de partida e de chegada, o início e o fim. Pressupõe uma lógica cronológica no curso dos acontecimentos, uma relação de causa e efeito detectável. Essa relação de causa e efeito, quando transposta para o campo do teatro, influencia fortemente o espectador durante a fruição de um espetáculo, pois é geradora de expectativas. O espectador espera que a ação aconteça segundo essa lógica causal apreensível, mesmo que ele seja surpreendido – o que ele, inclusive, deseja – por uma reviravolta temática ou de comportamento na ação – o que geralmente acontece no clímax.

Na cena final do filme O Sexto Sentido, por exemplo, tem-se uma amostragem clara dessa estrutura. O espectador é surpreendido pela imprevisível (diriam alguns) revelação de que o protagonista, em realidade, está morto e não passa de mais um espírito que o garoto médium consegue enxergar e ouvir. O clímax é surpreendente, mas a estrutura que leva a ele é linear, organizada sob a lógica da continuidade.


É interessante ver como a sequência final retoma, em formato de flash-back, vários trechos que ajudam o espectador a reorganizar o filme temporalmente a partir dessa nova informação. O flash-back funciona, assim, para mostrar que nenhum acontecimento está solto do outro, que são causas de um efeito que não se sabia antes, mas que é dado a conhecer neste momento. A suposta quebra de linearidade ao final é simplesmente temática e não causal. Isto para falar em termos de narrativa, pois a continuidade segue presente de maneira hegemônica na relação entre o figurino e o espaço, a ação e o gesto, a fala e o movimento etc.

No que chamamos de estrutura clássica, portanto, a continuidade é um princípio composicional fundante para as obras artísticas. É a partir desse conceito-lógica que se estabelece a organização dos elementos da linguagem. No caso do teatro, a narrativa, a ação, a passagem do tempo, a dinâmica espacial, a relação palco-plateia configuram elementos onde a continuidade se faz presente de maneira mais explícita, desde Aristóteles.

A quebra da continuidade, a ruptura no fluxo lógico dos acontecimentos, a frustração ou suspensão da expectativa causal estabelecida pelas informações oferecidas anteriormente é o que pode-se definir como descontinuidade. Na descontinuidade como princípio há uma certa aleatoriedade na organização dos elementos e nas transições de cena; uma tentativa proposital de subverter a relação temporal cronológica; uma disjunção entre o que se vê e o que se ouve; uma impossibilidade lógica de que a ação se dê como está sendo mostrada. Ela pode se dar na fala, no gesto, no movimento, na coreografia, na cenografia, na luz, na narrativa e na relação de todos esses elementos.

No exercício abaixo, uma criação cênica elaborada a partir dos estudos da obra de Robert Wilson para a disciplina Encenações em Jogo: experimentos de criação e aprendizagem do teatro contemporâneo, vê-se a utilização da descontinuidade em diversos planos. Primeiramente, a ação é descontínua porque não é causal, é aleatória e interdependente, reforçada também pelo princípio da simultaneidade. O texto não descreve nem revela a ação ou o perfil dos personagens. Início e fim são apenas ocasiões temporais e não efeitos dramáticos de um acontecimento. O espaço abstrato contrasta com o figurino formal e desemboca em estranhas imagens de praia e carnes de prateleira no telão, outro exemplo claro de descontinuidade que produz como efeito um imenso precipício de sentido.


Descontinuidade, portanto, deve ser vista como princípio composicional (ou procedimento), o que é diferente de ser efeito. Efeito é o impacto que o princípio provoca no espectador e que, neste caso, se caracteriza, geralmente, por estranhamento, distanciamento, desconforto, incômodo, curiosidade. Se voltarmos a Brecht, veremos que esse tipo de contato com a obra desloca o espectador de um envolvimento ilusionista e o leva a pensar:

(...) um ato artificial de autodistanciamento, de natureza artística, não permite ao espectador uma empatia total, isto é, uma empatia que acabe por se transformar em autêntica auto renúncia; cria, muito pelo contrário, uma distancia magnífica em relação aos acontecimentos. Isso não significa, porém, que se renuncie à empatia do espectador. É pelos olhos do ator que o espectador vê, pelos olhos de alguém que observa; deste modo se desenvolve no público uma atitude de observação, expectante. (2005: 78)

Brecht deseja esse espectador em um mundo devastado pela guerra. Sua proposição tem caráter histórico. “Como ressaltar aos olhos do público a confusão de valores que caracteriza essa nossa desgraçada época”? (idem, 87) Vê-se, aqui, que o foco da utilização do efeito de distanciamento não está exatamente no sentido - O que isso quer dizer? Qual o significado dessa ruptura? – mas no movimento provocado na condição do espectador. A mesma relação se estabelece com a ideia de descontinuidade. A mobilização desse espectador em termos de efeito é mais interessante do que essa expectativa ainda causal de sentido e significado.

Se pensarmos nas relações em nosso tempo, na dinâmica das interações virtuais e na globalização veremos que a linearidade e as fronteiras (geográficas, de linguagem etc.) se dissolvem. Desse modo, a inserção da descontinuidade como princípio de composição da obra artística pode ser, como em Brecht, uma tentativa de posicionar o espectador diante dos conflitos contemporâneos. Não há, portanto, significado direto necessariamente, mas efeito. Deleuze e Guattari (2004) farão uma leitura complexa desse contexto pela metáfora do rizoma, cuja estrutura se organiza de maneira aleatória, descontínua.

Um rizoma pode ser rompido, quebrado em qualquer lugar, e também retorna segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas. (...) Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. (...) Essas linhas não param de se remeter umas às outras. É por isto que não se pode contar com um dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do mau. (18)

A arte contemporânea, e o teatro contemporâneo, se confrontam com essa nova perspectiva e incorporam a descontinuidade como princípio e como discurso em suas criações. É o caso de Bob Wilson, por exemplo, cujos procedimentos – ao menos alguns e, em especial, a descontinuidade – foram identificados no exercício acima. É o caso também do cineasta David Lynch no filme Cidade dos Sonhos. Na cena abaixo, retirada deste filme, a queda da cantora no meio da apresentação é um recurso de descontinuidade extremamente potente em que o espectador coloca à prova sua própria capacidade perceptiva.




 As criações mais recentes de Zé Celso, no Teatro Oficina, também apresentam descontinuidade como princípio composicional. Em Macumba Antropófaga (2011), por exemplo, a narrativa não é linear, os personagens se constroem e desconstroem todo o tempo, e o espaço é aberto pra improvisações e participação do público. Em determinado momento, por exemplo, os atores convidam a plateia para uma ciranda onde todos dançam nus. Uma ação não leva necessariamente à outra. Não há vínculo causal entre esta cena  da ciranda e a próxima ou um comprometimento dela com o sentido da fábula – que, inclusive, não há –, mas o efeito provocado na plateia e sua potência discursiva alcançam altíssimas intensidades.

Pina Bausch, Companhia dos Atores, Teatro da Vertigem, Teatro do Concreto fazem parte – para citar alguns – do grupo de criadores cênicos contemporâneos em cujos trabalhos podemos detectar fortemente a descontinuidade como procedimento de criação. Por coincidência ou não, são artistas interessados em pesquisar a linguagem e em problematizar a relação do espectador com a obra, propondo-lhe um lugar de mais radicalidade e autoria.

Por fim, é curioso perceber como este princípio se faz presente também na produção de artistas que se expressam em outras linguagens. No material abaixo, vê-se e ouve-se o poema dias dias dias de Augusto de Campos lido por Caetano Veloso. A utilização da descontinuidade é ainda mais radical, pois altera a estrutura, a grafia e a sonoridade das palavras, unidades de composição básicas da materialidade do poema. É descontínua também a produção de voz para a performance, ora cantada, ora falada, ora aguda, colorindo o texto com diferentes texturas e tons.




Já o artista plástico Virgílio Neto reconduz nossa relação com a própria linguagem do desenho – e nossa expectativa em relação a ela como representação – inserindo a descontinuidade como princípio composicional. Ela está presente nas margens, definidas pelo rasgo aleatório do papel, e na distribuição caótica, sem continuidade, das formas e personagens no espaço. Como a ideia de rizoma, é difícil dizer onde começa e onde termina o desenho de Virgílio, que história ele tem para contar, que polos estabelecem a tensão e o conflito, qual a relação causal entre as figuras. O traço, descontínuo, liberta os grilhões da percepção. Muitos espectadores não sabem o que fazer com sua alforria.

Desenho de Virgílio Neto.

O princípio da descontinuidade é um princípio avesso ao impulso primitivo de manutenção e continuidade da vida, entendida geralmente como a trajetória entre dois polos (o nascimento e a morte). Talvez, por isso, seja tão estranho vê-lo em performance na obra artística. A grande questão, no entanto, e isto já afirmam Deleuze e Guattari, não é o impulso contínuo entre vida e morte, mas os impulsos múltiplos, aleatórios, segmentados e pluridirecionais que se produzem entre essas duas polaridades supremas. Trata-se de uma inversão na lógica e na estruturação do pensamento.

Referências

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004. 

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