Glauber Gonçalves de Abreu
Descontinuidade é um conceito que se estabelece a
partir da negação do seu conceito oposto, continuidade. A relação antagônica se
explicita pelo prefixo de origem latina des.
Afirmar por negação, além de uma recorrente estratégia didática em muitas
circunstâncias, é um jogo ideológico complexo que revela, em alguns casos, a
existência condicionada dos fenômenos e coisas, como na música-poema de Lulu
Santos. Som e silêncio, luz e escuridão, falar e calar são forças opostas que
se retrossignificam para potencializar seus sentidos, ou seja, que constroem a
dimensão de sua própria existência pela sua ausência na existência da outra.
Em outros casos, em virtude do contexto histórico e
cultural, um dos pólos dessa estrutura antagônica tende a ser ocultado, produzindo
um sistema hierárquico em que um deles faz sentido e o outro, não; em que um
deles é válido e o outro, não; um serve e o outro, não; um sistema de
normalidades e anormalidades criado historicamente e, por isso, presente em
nosso tempo como herança. É o que ocorre neste caso específico, em que a
percepção – ao menos a ocidental – ficou condicionada ao princípio da
continuidade. Estabeleceu-se uma relação de validação entre sentido, significado,
gosto e continuidade, como se apenas ela pudesse resultar em uma experiência
válida e qualquer iniciativa fora dela resultasse em erro, em impossibilidade.
Continuidade, em linhas gerais, pode ser entendida como
a manutenção de um fluxo, geralmente bipolarizado, em que não se conhece
necessariamente o percurso, mas se localiza com clareza o ponto de partida e de
chegada, o início e o fim. Pressupõe uma lógica cronológica no curso dos
acontecimentos, uma relação de causa e efeito detectável. Essa relação de causa
e efeito, quando transposta para o campo do teatro, influencia fortemente o
espectador durante a fruição de um espetáculo, pois é geradora de expectativas.
O espectador espera que a ação aconteça segundo essa lógica causal apreensível,
mesmo que ele seja surpreendido – o que ele, inclusive, deseja – por uma
reviravolta temática ou de comportamento na ação – o que geralmente acontece no
clímax.
Na cena final do filme O Sexto Sentido, por exemplo, tem-se uma amostragem clara dessa
estrutura. O espectador é surpreendido pela imprevisível (diriam alguns)
revelação de que o protagonista, em realidade, está morto e não passa de mais
um espírito que o garoto médium consegue enxergar e ouvir. O clímax é
surpreendente, mas a estrutura que leva a ele é linear, organizada sob a lógica
da continuidade.
É interessante ver como a sequência final retoma, em
formato de flash-back, vários trechos
que ajudam o espectador a reorganizar o filme temporalmente a partir dessa nova
informação. O flash-back funciona,
assim, para mostrar que nenhum acontecimento está solto do outro, que são
causas de um efeito que não se sabia antes, mas que é dado a conhecer neste
momento. A suposta quebra de linearidade ao final é simplesmente temática e não
causal. Isto para falar em termos de narrativa, pois a continuidade segue
presente de maneira hegemônica na relação entre o figurino e o espaço, a ação e
o gesto, a fala e o movimento etc.
No que chamamos de estrutura clássica, portanto, a
continuidade é um princípio composicional fundante para as obras artísticas. É
a partir desse conceito-lógica que se estabelece a organização dos elementos da
linguagem. No caso do teatro, a narrativa, a ação, a passagem do tempo, a
dinâmica espacial, a relação palco-plateia configuram elementos onde a
continuidade se faz presente de maneira mais explícita, desde Aristóteles.
A
quebra da continuidade, a ruptura no fluxo lógico dos acontecimentos, a
frustração ou suspensão da expectativa causal estabelecida pelas informações
oferecidas anteriormente é o que pode-se definir como descontinuidade. Na
descontinuidade como princípio há uma certa aleatoriedade na organização dos
elementos e nas transições de cena; uma tentativa proposital de subverter a
relação temporal cronológica; uma disjunção entre o que se vê e o que se ouve; uma
impossibilidade lógica de que a ação se dê como está sendo mostrada. Ela pode
se dar na fala, no gesto, no movimento,
na coreografia, na cenografia, na luz, na narrativa e na relação de todos esses
elementos.
No exercício abaixo, uma criação cênica elaborada a
partir dos estudos da obra de Robert Wilson para a disciplina Encenações em Jogo: experimentos de criação
e aprendizagem do teatro contemporâneo, vê-se a utilização da
descontinuidade em diversos planos. Primeiramente, a ação é descontínua porque
não é causal, é aleatória e interdependente, reforçada também pelo princípio da
simultaneidade. O texto não descreve nem revela a ação ou o perfil dos
personagens. Início e fim são apenas ocasiões temporais e não efeitos
dramáticos de um acontecimento. O espaço abstrato contrasta com o figurino
formal e desemboca em estranhas imagens de praia e carnes de prateleira no
telão, outro exemplo claro de descontinuidade que produz como efeito um imenso
precipício de sentido.
Descontinuidade, portanto, deve ser vista como
princípio composicional (ou procedimento), o que é diferente de ser efeito.
Efeito é o impacto que o princípio provoca no espectador e que, neste caso, se
caracteriza, geralmente, por estranhamento, distanciamento, desconforto,
incômodo, curiosidade. Se voltarmos a Brecht, veremos que esse tipo de contato
com a obra desloca o espectador de um envolvimento ilusionista e o leva a pensar:
(...)
um ato artificial de autodistanciamento, de natureza artística, não permite ao
espectador uma empatia total, isto é, uma empatia que acabe por se transformar
em autêntica auto renúncia; cria, muito pelo contrário, uma distancia magnífica
em relação aos acontecimentos. Isso não significa, porém, que se renuncie à
empatia do espectador. É pelos olhos do ator que o espectador vê, pelos olhos
de alguém que observa; deste modo se desenvolve no público uma atitude de
observação, expectante. (2005: 78)
Brecht deseja esse espectador em um mundo devastado
pela guerra. Sua proposição tem caráter histórico. “Como ressaltar aos olhos do
público a confusão de valores que caracteriza essa nossa desgraçada época”?
(idem, 87) Vê-se, aqui, que o foco da utilização do efeito de distanciamento
não está exatamente no sentido - O que isso quer dizer? Qual o significado
dessa ruptura? – mas no movimento provocado na condição do espectador. A mesma
relação se estabelece com a ideia de descontinuidade. A mobilização desse
espectador em termos de efeito é mais interessante do que essa expectativa
ainda causal de sentido e significado.
Se pensarmos nas relações em nosso tempo, na dinâmica
das interações virtuais e na globalização veremos que a linearidade e as
fronteiras (geográficas, de linguagem etc.) se dissolvem. Desse modo, a
inserção da descontinuidade como princípio de composição da obra artística pode
ser, como em Brecht, uma tentativa de posicionar o espectador diante dos
conflitos contemporâneos. Não há, portanto, significado direto necessariamente,
mas efeito. Deleuze e Guattari (2004) farão uma leitura complexa desse contexto
pela metáfora do rizoma, cuja estrutura se organiza de maneira aleatória,
descontínua.
Um
rizoma pode ser rompido, quebrado em qualquer lugar, e também retorna segundo
uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas. (...) Todo rizoma
compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado,
territorializado, organizado, significado, atribuído etc.; mas compreende também
linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. (...) Essas
linhas não param de se remeter umas às outras. É por isto que não se pode
contar com um dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo sob a forma rudimentar do
bom e do mau. (18)
A arte contemporânea, e o teatro contemporâneo, se
confrontam com essa nova perspectiva e incorporam a descontinuidade como
princípio e como discurso em suas criações. É o caso de Bob Wilson, por
exemplo, cujos procedimentos – ao menos alguns e, em especial, a descontinuidade
– foram identificados no exercício acima. É o caso também do cineasta David
Lynch no filme Cidade dos Sonhos. Na
cena abaixo, retirada deste filme, a queda da cantora no meio da apresentação é
um recurso de descontinuidade extremamente potente em que o espectador coloca à
prova sua própria capacidade perceptiva.
Pina Bausch, Companhia dos Atores,
Teatro da Vertigem, Teatro do Concreto fazem parte – para citar alguns – do
grupo de criadores cênicos contemporâneos em cujos trabalhos podemos detectar
fortemente a descontinuidade como procedimento de criação. Por coincidência ou
não, são artistas interessados em pesquisar a linguagem e em problematizar a
relação do espectador com a obra, propondo-lhe um lugar de mais radicalidade e
autoria.
Por fim, é curioso perceber como
este princípio se faz presente também na produção de artistas que se expressam
em outras linguagens. No material abaixo, vê-se e ouve-se o poema dias dias dias de Augusto de Campos lido
por Caetano Veloso. A utilização da descontinuidade é ainda mais radical, pois
altera a estrutura, a grafia e a sonoridade das palavras, unidades de
composição básicas da materialidade do poema. É descontínua também a produção
de voz para a performance, ora cantada, ora falada, ora aguda, colorindo o
texto com diferentes texturas e tons.
Já o artista plástico Virgílio Neto reconduz nossa
relação com a própria linguagem do desenho – e nossa expectativa em relação a
ela como representação – inserindo a descontinuidade como princípio composicional.
Ela está presente nas margens, definidas pelo rasgo aleatório do papel, e na
distribuição caótica, sem continuidade, das formas e personagens no espaço.
Como a ideia de rizoma, é difícil dizer onde começa e onde termina o desenho de
Virgílio, que história ele tem para contar, que polos estabelecem a tensão e o
conflito, qual a relação causal entre as figuras. O traço, descontínuo, liberta
os grilhões da percepção. Muitos espectadores não sabem o que fazer com sua
alforria.
Desenho de Virgílio Neto. |
O princípio da descontinuidade é um princípio avesso ao
impulso primitivo de manutenção e continuidade da vida, entendida geralmente
como a trajetória entre dois polos (o nascimento e a morte). Talvez, por isso,
seja tão estranho vê-lo em performance na obra artística. A grande questão, no
entanto, e isto já afirmam Deleuze e Guattari, não é o impulso contínuo entre vida
e morte, mas os impulsos múltiplos, aleatórios, segmentados e pluridirecionais que
se produzem entre essas duas polaridades supremas. Trata-se de uma inversão na
lógica e na estruturação do pensamento.
Referências
BRECHT, Bertolt. Estudos
sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 1. Rio de Janeiro:
Editora 34, 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário