O
mundo está cheio de objetos, mais ou menos interessantes;
não
desejo adicionar-lhe mais nenhum.
Prefiro,
simplesmente, declarar a existência de coisas em termos de tempo e
espaço.
Douglas
Huebler
(Los Santos Inocentes, Mapa Teatro)
Este
verbete deseja refletir sobre o tema do real no teatro contemporâneo não desvinculando-o ou opondo-lhe a ideia de ficção
que está intrínseca às camadas de representação que os processos
artísticos evocam. O conceito de 'Anexações do real' procura
indagar-se sobre as possibilidades em que o real/documental pode
também encontrar-se embebido do campo ficcional.
É sobre a necessidade
de uma zona híbrida entre o real e o ficcional que a noção de
teatralidade assume um relevante teor para crítica dedicada à
análise de pesquisas ligadas ao campo das artes cênicas. Silvia
Fernandes, no livro “Teatralidades Contemporâneas” (2010)
retoma os estudos de Patrice Pavis para sustentar que:
“Para
um espectador aberto às experiências da cena contemporânea a
teatralidade pode ser, por exemplo, uma maneira de atenuar o real
para torná-lo estético e erótico; ou o modo de sublinhar esse
real em seu traço obsessivo e repetitivo, que se aplica como
terapia de choque para reconhecer o real e compreender o político;
ou o
embate de regimes ficcionais distintos, mas igualmente potentes, que
impede a cena de estabelecer uma enunciação estável,
construída a partir de um único ponto de vista, e abre múltiplos
focos de olhar em disputa pela primazia de observação do mundo.”
(FERNANDES, 2010: p. 115)
(Marketing/Hamlet/Set, LOT)
Para
pensar os possíveis procedimentos de anexações do real à cena
busca-se melhor compreender os escritos da pesquisadora francesa
Maryvonne Saisson no seu livro “Les théâtres du réel –
Pratiques de la represéntatiton dans le théâtre contemporain”.
Nele a autora estabelece 3 eixos que colaboram para a ampliação da
temática em questão:
-Realidade
revistada
-Morte
da realidade e a busca do real
-Teatros
do Real
Realidade
Revisitada
Ao
refletir sobre a singularidade do fazer teatral Saisson destaca sua
efemeridade ontológica e com isso questiona o que seria específico
na representação teatral. Se representar é a concretização de um
pensamento na música, pintura, escultura, cinemas e artes afins, e
prescinde de uma referência, no teatro a representação só é
possível se ela acontecer em ato.
Com
isso poderia-se substituir a ideia de representação por
apresentação, que envolve a presença em si de seus agentes e seus
receptores, e desta forma já se aproxima dos termos real e realidade
tal é a presença evocada pelo teatro.
Essa
peculiaridade de reativar o acontecimento artístico e não somente
reproduzí-lo é encarado por Saisson como a dimensão política em
si do teatro. O fato do teatro acontecer apenas no encontro com o
público, para e por ele, traz no seu bojo o político.
O
teatro contemporâneo reivindica temas ligados à política não
apenas no seu conteúdo, mas, e principalmente, na sua forma. O
político aqui se inscreve diretamente na apresentação do real.
Real este que se abre para a reflexão do mundo contemporâneo e
para a indagação sobre a própria linguagem.
Morte da realidade e a busca do real
As
ideias apresentadas por Maryvonne Saisson compartilham pontos de
origem comuns aos trabalhados nos estudos de Michel Foucault, no
texto “Outros Espaços”, datado de 1967, no qual aponta a sua
época como a época do espaço. E tal afirmação ainda
encontra argumentos para ser defendida na atualidade por outros
filósofos contemporâneos que continuam a debruçar-se sobre o
tema uma vez que mundo continua a experimentar-se e a desenvolver-se
a partir da noção de rede.
Foucault estabelece que
são as relações de vizinhança entre pontos ou elementos que
contribuem para que a ênfase no espaço seja predominante nas
relações dos homens do século XX, principalmente o saber sobre
as relações que revelam tipos de estocagem, circulação,
localização, e que evidenciam, sobretudo, relações de
posicionamento.
A
partir da ideia de posicionamento, Foucault traz à tona a noção
fundamental de não desconsiderar o valor específico de cada
lugar, uma vez que não se vive em um espaço vazio e homogêneo,
ao contrário, cada espaço está carregado de qualidades
peculiares. Nessa análise não é possível desconsiderar o
entrecruzamento entre tempo e espaço.
É a
partir da intersecção entre as relações de tempo e espaço
que Foucault defende a ideia de heterotopia em oposição a de
utopia:
“Há, inicialmente, as utopias. As utopias são os posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm como espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade, mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais. Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam afetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, heterotopias.” (FOUCAULT, 2006: p.414-415)
A heterotopia teria a
capacidade de produzir lugares fora de todos os lugares, à moda da
experiência mista do espelho, onde ocorre a hibridização do
mítico e do real dentro do mesmo espaço. Elas têm a capacidade
de inquietar o homem, pois aparecem como que deslocadas e
desencaixadas em relação aos demais lugares habitados As
heterotopias têm, em relação ao espaço restante, uma função
de desestabilização.
As
obras da site-specific
art,
instauradas em via pública ou privada, expandem os valores
da criação artística mais convencional, fazendo com que outros
valores, tais quais, a percepção fenomenológica (sensorial),
elementos histórico-simbólicos e políticos do seu lócus de
ação, sejam evidenciados pela ação artística. Miwon Kwon em
“One place
after another: notes on site specificity”
(1997) dedica-se à investigação da site-specific
art,
na qual justamente aprofunda a reflexão sobre a concepção
do lugar, que para os procedimentos de criação se dão não
somente em termos físicos, mas como composição de estrutura
complexa que compõem o bojo estruturante da ação artística.
Neste
contexto as práticas de site-specific
art
devem ser entendidas como práticas
específicas para um contexto, a fim de desconstruir a ideia do
lugar como suporte neutro para a obra e poder o ativá-lo como parte
integrante do trabalho, onde a escolha do lugar é a escolha de uma
localidade e de uma temática de interesse do criador a ser
trabalhado:
“ser
específico em relação a esse lugar (site), portanto, é
decodificar e/ou recodificar as convenções institucionais de
forma a expor suas operações ocultas mesmo que apoiadas –
é
revelar as maneiras pelas quais as instituições moldam o
significado da arte para modular o seu valor econômico e cultural,
e boicotar a falácia da arte.”
(KWON, 2000: p.11)
Teatros
do Real
O entendimento do
presente como fio condutor que entrelaça a experiência do tempo e
do espaço abre a perspectiva para o debate acerca de como a
participação ativa do espectador no entorno dos projetos
artísticos que formulam um novo modo de fruição. O espectador é
estimulado a participar física e criativamente desse processo como
elemento ativador da obra.
É possível refletir sobre a ideia de 'Teatros do Real' a partir de alguns aspectos abordados por Paul Zumthor,
em seu livro “Performance, recepção, leitura” (2006), no qual
o autor destrincha a noção de teatralidade modo a evidenciar que:
“Num
lugar público (o artigo diz: no metrô) alguém fuma; um outro o
agride, arranca seu cigarro ou comete uma outra ação violenta.
Para a multidão que enche o vagão trata-se de um acontecimento.
Mas alguém desta multidão sabe que isso é simplesmente um jogo,
montado por uma associação antitabagística. Há então
teatralidade? Para a multidão não. Mas para o espectador a par do
plano, sim. A teatralidade neste caso parece ter surgido do
espectador, desde que ele foi informado da intenção de teatro em
sua direção. Este saber modificou seu olhar, forçando-o a ver o
espetacular lá onde só havia até então o acontecimento. Ele
transformou em ficção aquilo que parecia ressaltar do cotidiano,
ele semiotizou o espaço, deslocou os signos que ele então pode
ler diferentemente... A teatralidade aparece aqui como estando do
lado do performer e de sua intenção firmada de teatro mas uma
intenção cujo segredo o espectador deve partilhar.”
(ZUMTHOR, 2007: p.40-41)
Podemos refletir que a
condição necessária à emergência de uma teatralidade é a
identificação, pelo espectador, de um outro espaço; a
percepção de uma alteridade espacial. O que implica alguma
ruptura com o real ambiente, e é sobre este ponto de vista
É
fundamental reforçar que tais aspectos convocados pela
teatralidade estão presentes nas mais diversas vertentes da arte
contemporânea. É a partir dessa ideia de fissura do real
apresentada por Zumthor que os códigos de linguagens a
priori
díspares encontram ecos e modos híbridos de criação e
de fruição na produção contemporânea em arte, sobretudo, a
partir do ponto de vista do espectador e suas relações com o real
ou efeitos do real evocados pelas produções artísticas.
Por
fim, ao constatar aspectos performativos e de teatralidade a partir
da análise das matérias e dos espaços presentes em diversos
movimentos e na poética de artistas representantes das várias
linguagens na arte moderna e contemporânea, se evidencia a tensão
entre as matérias e os espaços do cotidiano e as matérias e os
espaços artísticos que revelam e convocam o campo artístico à
sua continua reformulação.
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