domingo, 5 de agosto de 2012

O papel do espectador no teatro contemporâneo Ana Flávia Chrispiniano

                         



"A relação do espectador com o teatro está intimamente relacionada com a maneira, própria a cada época, de ver-sentir-pensar o mundo.”, como afirma Flávio Desgranges.           


Desta forma, para refletir sobre o papel do espectador no teatro contemporâneo, parece fundamental trazer à tona alguns aspectos da sociedade atual e diferentes modos de participação propostos ao espectador ao longo da história do teatro que, potencialmente, exercem influência sobre a recepção teatral em nossos dias.
No drama burguês, o espectador era convidado a se identificar com o protagonista e embarcar no fluxo de uma ação dramática contínua, de acontecimentos encadeados logicamente entre si, como se observasse aqueles momentos através de um buraco de fechadura.A encenação contribuía para que estes efeitos se processassem, buscando manter ao máximo a ilusão de realidade daquele universo representado no palco.
Estas opções se relacionam com os ideais burgueses como, por exemplo, a valorização dos interesses privados.  E diante do surgimento da necessidade de tratar de questões sociais, coletivas, esta forma dramática fechada começa a entrar em crise. Os novos assuntos exigem uma nova forma e, assim, surge a necessidade de extrapolar o diálogo e interromper a ação dramática, incluindo elementos épicos nos textos e na encenação.
Tais recursos cênicos propõem um movimento de aproximação e distância do espectador em relação à ação dramática, ao revelar a artificialidade do teatro, ou seja, romper com o efeito ilusionista do drama burguês.
A intenção é que o espectador não perca a consciência de si e da realidade social enquanto assiste à cena e realize constantemente esta reflexão crítica sobre a atitude das personagens a partir dos recursos cênicos de distanciamento propostos por Bertolt Brecht.   
No teatro pós-dramático, o espectador se depara com um objeto artístico a ser completado por ele, e não com uma obra fechada, como analisa Desgranges no artigo “Teatralidade Tátil:alterações no ato do espectador”, no volume 8 da Revista Sala Preta :

“Em sua relação com a cena pós-dramática, o espectador não encontra orientação de leitura a seguir, que lhe indique pistas para o entendimento da obra e do mundo. De modo que, acompanhando o direcionamento do autor, possa tecer relações racionais, associações lógicas e fechar interpretações. A frustração marca esse movimento de leitura na proposta não dramática, e, ao mesmo tempo, o estímulo à concepção de percursos próprios, em sua relação com o texto cênico e na relação deste com a vida social. (...) O espectador não se pergunta “o que isto quer dizer?”, mas sim “o que está acontecendo comigo?”, o que lhe solicita disponibilidade para participar de um jogo que se apresenta de modo inesperado e sem uma seqüência preestabelecida, porque se propõe como experiência, e, enquanto tal, só se efetiva plenamente se o próprio espectador se dispuser a constituí-lo enquanto joga. A atitude autoral proposta ao espectador pelo drama moderno se vê radicalizada na cena pós-dramática, já que o ato de leitura, para se constituir, a partir de então, solicita uma atitude francamente artística do espectador – tomado como atuante –, que define o próprio percurso de sua leitura, em função da seleção e elaboração dos variados elementos de significação com os quais se relaciona.”
           
 As palavras “frustração” e “disponibilidade” presentes nesta citação trazem à tona a seguinte questão: numa sociedade baseada na contemplação passiva - em que o indivíduo encontra-se bombardeado por uma avalanche de recursos tecnológicos, imagens e informações – como se efetiva esta proposta da arte teatral contemporânea para o espectador?Qual a disponibilidade e a resistência a esta proposta de participação ativa na construção da cena?
Esta reflexão sobre o espectador contemporâneo parece fundamental para compreender o lugar que o teatro ocupa na sociedade atual. Se a questão “O teatro é necessário?”, proposta por Denis Guènon no título de seu livro, permeasse as experiências estéticas dos espectadores e artistas do teatro contemporâneo, qual seria a resposta?           A partir da citação abaixo, que relaciona tal passividade a interesses políticos e sociais de manutenção do status quo, a resposta seria “Sim, o teatro é extremamente necessário”:

“As análises mais críticas sobre a relação entre a televisão e a sociedade colocam sobretudo em evidência a contemplação passiva e isolada a que conduzem os meios eletrônicos. Para além dos conteúdos, o espectador está sempre condenado a olhar o que fazem os outros, sem ter nenhum poder sobre a própria vida. O que caracteriza a televisão não é o fato de simplesmente olhar, mas de somente olhar, o olhar imóvel, a contemplação inerte: é isto que caracteriza a televisão e faz dela a expressão de uma sociedade na qual tudo é espetáculo, como disse Debord (...)Mas esta contemplação não é fruto de uma preguiça ontológica, mas o resultado de uma ordem social que vive graças à passividade.”




Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1993.
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978.
DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2003
____________________Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo.São Paulo: Hucitec,2006.
GUÉNON, Denis.O teatro é necessário?São Paulo: Perspectiva,2004.
LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro Pós-Dramático. São Paulo, Cosac Naify, 2007.

NOVAES, Adauto (org). Muito além do espetáculo. São Paulo: Ed.Senac São Paulo, 2005.
PAVIS, Patrice.Dicionário de Teatro. São Paulo; Perspectiva, 2001.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. SP: Perspectiva, 2002.

Nenhum comentário:

Postar um comentário