Eleonora Fabião
Desde meados do século XX, a
performance tem se constituído como um
campo transdisciplinar refletido pela antropologia, pela psicologia, pela
sociologia, pela linguística, pelos estudos de folclore, de raça, de gênero, além de ter atravessado ao
longo das últimas décadas o amplo espectro das artes (o teatro, o cinema, o
vídeo, a dança, as artes plásticas, a literatura)[2] e ainda se firmado, a
partir dos anos 70, como uma linguagem artística autônoma, bastante
diversificada. Segundo o antropólogo e pesquisador da USP John C. Dawsey,
Há
algo de não resolvido nesse conceito que resiste às tentativas de definições
conclusivas ou delimitações disciplinares. Aquém ou além de uma disciplina, ou
até mesmo de um campo interdisciplinar, os estudos de performance se configuram
como uma espécie de antidisciplina.[3]
O teórico norte-americano Marvin
Carlson lembra que performance é um
conceito essencialmente contraditório, sendo capaz de abrigar fenômenos
totalmente díspares e competitivos[4]. Ele levanta duas noções
correntes de performance. Na primeira
delas, o termo designa a demonstração de habilidades específicas empreendida por
esse sujeito que é o performer, quase
sempre marcadas por algum tipo de virtuosismo. É o caso do engolidor de facas, dos
acrobatas, dos artistas de rua em geral, dos mágicos, dos próprios atores,
músicos no palco e de quem quer que se coloque a prova diante de uma audiência.
Na segunda acepção elencada por Carlson, a performance
é tomada de modo mais abrangente como um “comportamento restaurado” - noção advinda
dos chamados estudos da performance (Performance
Studies) encabeçados pelo diretor teatral e professor da New York
University (NYU) Richard Schechner. Nesta perspectiva, toda e qualquer ação
humana – e não apenas demonstrações públicas de habilidades - onde se guarda “uma
certa distância entre o self e o
comportamento”[5]
é performance. O professor dando
aula, o padre celebrando uma missa, o garçom servindo um café, o automobilista
pilotando seu carro, o xamã empreendendo uma cura (e seus respectivos papéis
complementares: o aluno prestando atenção, o fiel recebendo o sermão, o cliente
esperando seu café, etc), todos estes estão, no instante da ação, empreendendo
uma performance. Agem mais ou menos
de acordo com o que determinado papel social lhes prescreve, quer dizer,
restauram no presente aqueles comportamentos modelares de professor, aluno, padre,
fiel, garçom, cliente, automobilista, etc. A performance, à luz dos Performance
Studies, compreende um campo em constante expansão, no qual a chamada arte da performance ocupa apenas uma
pequena parcela.
Etimologicamente, o termo performance deriva do francês antigo, parfournir, que significa “completar”,
“realizar inteiramente”[6], definição limitada se
pensarmos na aplicação do termo ao contexto da arte atual, onde tem sido usado para
designar obras/espetáculos processuais, inacabados ou participativos. Mesmo nesse
âmbito - e mesmo hoje, passados mais de 50 anos das primeiras expressões
artísticas “performáticas” - a performance
ainda se apresenta como um campo aberto, mandálico, em permanente mutação, o
que dificulta, ou mesmo impossibilita, a construção de um discurso sólido sobre
ela. Segundo RoseLee Goldberg,
a
performance pode ser uma série de gestos íntimos ou uma manifestação teatral
com elementos visuais em grande escala, e pode durar de alguns minutos a muitas
horas; pode ser apresentada uma única vez ou repetida várias vezes, com ou sem
um roteiro preparado; pode ser improvisada ou ensaiada ao longo de meses.[7]
Alguns, como Goldberg, remontam a história da performance às vanguardas artísticas do começo do século XX (Futurismo,
Dadaísmo, Surrealismo, Construtivismo Russo, a Bauhaus). É que tais movimentos
já traziam em suas obras e manifestos muito daquilo que seria desenvolvido como
performance no pós-guerra, sobretudo,
um interesse radical em abolir a aura da obra de arte e os parâmetros de sua
apreciação estética. Outros afirmariam que a performance nasceu bem antes disso, com o homem primitivo, sendo tão antiga quanto o
rito. Nesse particular, Antonin Artaud - uma das figuras mais reveladoras para
o teatro no século XX - termina por ser um dos mais importantes antecessores do
campo da performance, ao reclamar
para o corpo do ator suas pulsões mais primitivas e cruéis[8],
e propor um retorno do teatro às suas origens rituais.
De qualquer modo, enquanto gênero artístico, tal como a conhecemos hoje,
a performance desponta mesmo em fins
dos anos 50 - ainda sem essa denominação - como um território híbrido e
fronteiriço. Era praticada por artistas que vinham de diversas modalidades
(poesia, música, teatro, dança, pintura, escultura), que passaram a utilizar ao
longo das décadas seguintes suas próprias vidas como matéria e seus corpos como
mídia das mais diversas experimentações e contestações[9].
No bojo da contracultura, realizavam experiências que envolviam dor, risco
físico, automutilação, modificação corporal (tendência que ficaria conhecida
como body art); provocavam moralmente
o público; levantavam questões existenciais e políticas relacionadas a gênero,
raça, sexualidade, nacionalidade; protestavam; forçavam os limites entre os
campos artísticos instituídos; questionavam o mercado de arte e as instituições
artísticas; problematizavam as noções de Bom e Belo e todas as convenções
estéticas forjadas pelo ideário moderno, não raro, recuperando ritos e
manifestações primitivas; apagavam as fronteiras entre arte e vida, etc. Em
meio a isso, o que se convencionou chamar de performance art parece ser (ainda hoje) apenas uma tendência
específica marcada pela influência da arte
conceitual e do minimalismo, e que
difere bastante de uma vasta porção de espetáculos multimídia[10]
do mesmo período, não menos performáticos, ligados (mesmo em ruptura) às
convenções do teatro, da música e da dança, numa radical transformação da ideia
wagneriana de “Obra de Arte Total” (Gesamtkunstwerk)[11].
Num sentido amplo, a performance
esteve associada em suas origens a um movimento maior de contestação filosófica
e política do capitalismo e do paradigma racionalista da modernidade, cujo
projeto aquela geração de artistas viu resultar em duas grandes guerras e no perigo
eminente de destruição total da vida. Hoje, a performance tem se tornado ainda mais híbrida enquanto linguagem, fazendo
uso das novas tecnologias, adentrando novos territórios não-artísticos, testando
espaços cada vez mais inusitados e questionando sua própria história. Para
Eleonora Fabião,
...a performance, por sua natureza de difícil
comercialização e seu caráter marginal (margens: habita um espaço relativo
entre as artes – plásticas, cênicas e fílmicas – e, entre arte e não-arte),
muitas vezes abjeto (corpos desarticulados, levados a condições psicofísicas
extremas, brutalidade poética) e socialmente discrepante (formas sexuais
múltiplas, humor fino e grotesco, práticas existenciais e corporais [12]excêntricas
e irônicas) define-se como forma de resistência, como força contestatória, como
prática política. A performance gera e apresenta corpos e situações em que a
normatividade ocidental contemporânea – marcadamente consumista, mecanicista,
logocêntrica, racista, homofóbica, descorporalizada – é pensada.[13]
Notas:
[1] Entrevista concedida
ao Caderno 3, do Diário do Nordeste. Data 09-07-2009. Disponível em: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=652907
[2] Érika Fischer-Lichte chama
atenção para uma virada performativa (“performavive turn”) que abrange todas as
linguagens artísticas a partir de meados do século passado, redefinindo radicalmente
o papel de seus interlocutores. FISCHER-LICHTE,
Erika. The Transformative Power of
Performance: a new aesthetics. New York: Routledge, 2008.
[3] DAWSEY, John C.
Sismologia da performance: Ritual, drama e play na teoria antropológica. In: Revista de Antropologia. São Paulo: ed.
USP, 2007, v. 50, nº 2, p. 530 e 531.
[4] A rigor, Carlson diz
tomar emprestada a afirmação de Mary Strine, Beverly Long e Mary Hopkins de que
a performance é “um conceito essencialmente contestado”. CARLSON, Marvin A. Performance: uma introdução crítica.
Belo Horizonte: ed. UFMG, 2009, p. 11.
[5]
Ibidem., p. 14.
[6] DAWSEY, John C, op. cit., p. 532.
[7] GOLDBERG, Roselee. A Arte da performance: do futurismo ao
presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 8.
[8] Segundo Ricardo Cezar
Cardoso, a despeito das abordagens vulgares que o termo possa ter, associado às
ideias de perversão e violência extrema, “crueldade” em Artaud significa “antes
de tudo, a desmistificação da representação como única forma válida para o
pensamento.” CARDOZO, Ricardo Cezar. Antonin
Artaud: por uma metafísica do cruel. Dissertação de Mestrado. UERJ: 2006.
Disponível em: http://www.empiricae.com.br/artigos/a_guisa_de_introducao.pdf
[9] Dentre inúmeros nomes, destacam-se Jackson
Pollock; Robert Rauschenberg; John Cage; Merce Cunningham; Grupo Gutai; Ives
Klein; Piero Manzoni; Joseph Beuys; Vito Acconci; Chris Burden; Marina
Abramovic; Grupo Fluxos; Günter Brus, Otto Mühl, Hermann Nitsch e Rudolf
Schwarzkogler (grupo que ficou conhecido como Viennese Actionism); Claes Oldenburg; Orlan; Gilbert & George;
Living Theatre;Yoko Ono; Bruce Nauman; Gina Pane; Bas Jan Ader; Ana Mendieta;
Guillermo Gomez-Peña; Regina Galindo; Frank B; Ron Athey. No Brasil, Roberto
Aguillar, Paulo Bruscky, Letícia Parente, Paulo Herkenhoff, Geraldo Anhaia
Mello, Antônio Manuel, Guto Lacaz, Otavio Donasci, Lucio Agra, Renato Cohen,
Maria Beatriz Medeiros e o Corpos
Informáticos, Grupo Empreza, Brigida Baltar, Lia Chaia, Guilherme Peters,
Artur Matuck, Paula Garcia, Marco Paulo Rolla, Maurício Ianês, Shima, Berna
Reale. Além destes, deixaram para a performance
brasileira importantes contribuições Oswald de Andrade, Flávio de Carvalho,
Lygia Clark e Helio Oiticica.
[10] Robert Wilson, La
Fura dels Baus, Pina Bausch, Richard Schechner, Richard Foreman e o Ontological-Hysteric Theater, Robert
Lepage, Jan Fabre, Romeo Castellucci e a Societas
Raffaello Sanzio, e boa parte daquilo que Hans-Thies Lehmann tem chamado de
Teatro Pós-dramático (LEHMANN, Hans-Thies. Teatro
pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007). No
Brasil, o Teat(r)o Oficina, sob
direção de José Celso Martinez Corrêa, e o Teatro
da Vertigem podem ser considerados, sob diversos aspectos, performativos.
[11] Segundo Cohen, a performance é muitas vezes uma espécie de
Anti-Gestamsuntwerk, pois seu sentido de totalidade é fragmentário,
desarmônico, regido por justaposições, tendo a collage como estrutura. COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2002.
[13] Entrevista com
Eleonora Fabião in Relâche: Revista
eletrônica da Casa Hoffmann – Centro de Estudos do Movimento. Por Cristiane
Bouger. Curitiba: 2004.
A sérvia Marina Abramovic é hoje uma das artistas de performance mais populares do mundo. (Rhytm 0, 1974) |
O artista baiano Jayme Fygura é conhecido pelo uso constante de armaduras e por não mostrar o rosto há mais de três décadas. |
Cena do espetáculo "Macumba Antropófaga", do Tea(r)o Oficina. São Paulo, 2012. Foto: Claire Jean. |
poderia ser ampliado no que se refee as citações faltam refeencias em video, falta texto conclusivo, aguardamos nova postagem
ResponderExcluir