quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Cenografia Experiencial

Verbete: Cenografia Experiencial
Por: Francis Wilker
Disciplina: Encenações em Jogo
Professor: Marcos Bulhões


Cenografia Experiencial

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra


O verbete proposto – Cenografia Experiencial - surge a partir da análise de algumas obras da diretora e coreógrafa Pina Bausch onde se pode identificar um procedimento recorrente em relação à cenografia ou ao modo de organizar o espaço da cena. Em peças como Sagração da Primavera (1975), Café Müller (1978), Árias (1979) e Cravos (1982), apenas para citar algumas obras mais conhecidas de Pina e o Tanztheater Wuppertal, são utilizados objetos e/ou elementos que intencionalmente ultrapassam o seu aspecto simbólico ou usual, seja no sentido básico de situar o “lócus” onde as ações ocorrem (essa ação se passa no mar ou num rio) ou da própria destinação primária do objeto (uma cadeira é usada para se sentar) e potencializam o aspecto experiencial da cena na relação que os dançarinos estabelecem com a cenografia proposta. Aqui, cabe destacar os nomes de Rolf Borzik e Peter Pabst, que, em diferentes momentos, colaboraram com Pina na criação de suas peças.
 Café Müller[1]


Sagração da Primavera[2]



Árias[3]




Cravos[4]



Como pode ser observado nas imagens acima, a terra utilizada em Sagração da Primavera, as cadeiras em Café Müller, a água em Árias e os inúmeros cravos no espetáculo também denominado Cravos, instauram novas significações poéticas para esses espaços que vão além de sua própria materialidade. A presença desses elementos provoca outros modos de estar em cena para o dançarino, são como “obstáculos” que se impõe à sua movimentação. Possivelmente a palavra obstáculo, associada à ideia de empecilho ou barreira, não seja a mais apropriada, pois não se trata aqui de ultrapassar ou vencer esse obstáculo, a sua função poética parece se situar mais no campo da geração de experiência para o dançarino. Vejamos alguns comentários acerca dessa relação:

“O espetáculo é encenado num palco coberto de terra, o que faz com que os bailarinos terminem a apresentação contaminados pelo cenário.” (CYPRIANO, 2005, p.29).

“Pina Bausch, ao levar para o palco água e terra, troncos de árvores e folhas secas, milhares de cravos ou dezenas de cadeiras, instaura um novo modelo espacial para a dança, até então inédito. (...) Dançar na água ou na lama certamente não é  o mesmo que dançar num chão de madeira uniforme. O espaço transforma-se e, com ele, também o movimento-imagem dos corpos dançantes. (...) O mérito desse processo está na compreensão de que a partir de novos dados cenográficos há importante transformação na estrutura coreográfica.” (CALDEIRA, 2009, p.18).

 A noção de Cenário Experiencial parte de duas referências conceituais de áreas distintas e resulta da inquietação provocada pelos trabalhos de Pina, bem como de outras dezenas de espetáculos onde essa relação com o cenário se estabelece de modo similar. Estando a cenografia diretamente ligada à ideia de espaço, me interessava pensar conceitualmente espaço e também encontrar uma qualificação para essa cenografia capaz de expressar a sua “atuação” na cena. No processo de pesquisa, chamou atenção reflexões do geógrafo chinês Yi-Fu Tuan que, ao discutir teoricamente espaço e lugar, como categorias do meio ambiente intimamente relacionada, ressalta a perspectiva experiencial que marca a relação entre os seres humanos e o espaço. Em linhas gerais, o autor aponta que um espaço ao qual atribuímos valor se configura como lugar. Entende-se que essa atribuição de valor se dá a partir das experiências do homem com o espaço.

“Na experiência, o significado de espaço freqüentemente se funde com o de lugar. “Espaço “ é mais abstrato que “lugar”. O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. (...) Na extensa literatura sobre qualidade ambiental, relativamente poucas obras tentam compreender o que as pessoas sentem sobre espaço e lugar, considerar as diferentes maneiras de experienciar (sensório-motora, tátil, visual, conceitual) e interpretar espaço e lugar como imagens de sentimentos complexos – muitas vezes ambivalentes.” (TUAN,1983, p.6 e 7).

A “Perspectiva Experiencial” de Yi-Fu Tuan para pensar a relação do homem com o espaço parece dialogar de modo bastante convergente com os apontamentos da pesquisadora Eleonora Fabião ao discutir o trabalho do ator/performer no campo artístico:

“...a experiência implica a capacidade de aprender a partir da própria vivência. Experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele. (...) Para experienciar no sentido ativo, é necessário aventurar-se no desconhecido e experimentar o ilusório e o incerto. Para se tornar um experto, cumpre arriscar-se a enfrentar os perigos do novo. (idem. p.10).

“Em Do Ritual ao Teatro, o antropologista Victor Turner entrelaça diferentes linhas etimológicas do vocábulo experiência e esclarece: etimologicamente a palavra inclui os sentidos de risco, perigo, prova, aprendizagem por tentativa, rito de passagem. Ou seja, uma experiência, por definição, determina um antes e um depois, corpo pré-experiência e corpo pós-experiência. Uma experiência é necessariamente transformadora, ou seja, um momento de trânsito da forma, literalmente, uma (trans)forma. As escalas de transformação são tão variadas quanto relativas, oscilam entre um sopro e um renascimento.” (FABIÃO, 2011, p.240).

Essa dimensão experiencial que a cenografia propõe ao dançarino parece se estabelecer uma vez que a sua relação com os objetos/elementos influencia o seu estar em cena no que diz respeito à movimentação, tônus, fisicalidade, emoção, ou, num sentido mais amplo como aponta Fabião, “experimentar estados psicofísicos alterados”. A bailarina Ruth Amarante ao falar sobre processos de repetição no trabalho com Pina, em entrevista à pesquisadora Ciane Fernandes, traz na sua fala a imagem de uma parede com a qual realiza uma seqüência de movimentos, embora esse elemento cenográfico não esteja no foco de sua descrição é possível notar como a presença do mesmo colabora para o sentido de experiência explorado acima.

“Na peça, tenho que fazer isso no segundo ato, durante uns vinte minutos, o tempo todo. [...]. Ah... é louco. Começa bem, é uma sensação boa; acaba sendo bem depressivo, porque [...] uma pessoa que está o tempo todo se batendo na parede e cai no chão e levanta e vai de novo para a parede e cai de novo no chão...são as coisas de que ela gosta [...] porque o bailarino [...] não fica a mesma pessoa que começou quando repete os movimentos [...]e ela gosta de ver essa mudança com o mesmo tipo de movimento...” (FERNANDES, 2000. P.46)


Referências Bibliográficas

CALDEIRA, Solange Pimentel. O lamento da Imperatriz: a linguagem em trânsito e o espaço urbano em Pina Bausch. São Paulo: Annablume: Belo Horizonte: Fapemig, 2009.
CYPRIANO, Fabio. Pina Bausch. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
FABIÃO, Eleonora. Performance e Teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Próximo Ato: Teatro de Grupo. Org. ARAÚJO, et al, São Paulo: Itaú Cultural, 2011.
FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-teatro: repetição e transformação. São Paulo: Hucitec, 2000.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência; tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: DIFEL, 1983.

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