segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Storyboard/Roteiro "Sturm Und Drang"





(COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea: criação, encenação e recepção. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 52-57)





1999 - Roteiro (Protocolo 6)

(MARTINS, Marcos Bulhões. Encenação em jogo: experimento de aprendizagem e criação do teatro. São Paulo: Hucitec, 2004, p. 148)

1999 - Programa do espetáculo


(MARTINS, Marcos Bulhões. Encenação em jogo: experimento de aprendizagem e criação do teatro. São Paulo: Hucitec, 2004, p. 226-227)

TEATRO DE GRUPO

A paisagem teatral brasileira modificou-se signi­ficativamente com o fenômeno das práticas cole­tivas durante as décadas de 1990 e 2000. Centenas de núcleos surgiram ou foram revitalizados nos centros urbanos em consequência de políticas públicas mínimas para o segmento, fruto da mo­bilização dos artistas. São grupos que, invariavel­mente, realizam treinamento e pesquisa contínuos na preparação do intérprete, da cena, do texto e dos demais elementos constitutivos do espetácu­lo. A maioria mantém sede própria ou alugada, com sala ou galpão onde ensaia, se apresenta ou abre as portas para seminários e debates.
Coexistem modos de organização e de produ­ção que valorizam o percurso criativo prático e a base teórica em detrimento da obra como fim em si mesmo. O trabalho em equipe costuma ser bem-sucedido quando dimensões estéticas e éti­cas convergem para uma poética. Para atingi-Ias, os artistas vão à luta por recursos e chamam o Es­tado a cumprir seu papel, como ocorre em paises desenvolvidos. A França, por exemplo, de tradi­ção no subsídio à arte, também vive uma explo­são de coletivos de teatro na década de 1990. São os "bandos", conforme a designação do ensaísta [ean-Pierre THIBAUDAT, que sublinha a condi­ção marginal de atrizes, atores e diretores em ar­tigo traduzido e publicado pela revista Camarim, da Cooperativa Paulista de Teatro. "Não é espan­toso observar, para concluir, que é nesse teatro dos bandos que se encontrou ou reencontrou­-se o fermento político abandonado pela maioria de seus antecessores', escreve Thibaudat, citando núcleos como Radeau, Royal de Luxe e Machine (2008: 56-61).
No Estado de São Paulo, uma das iniciativas demarcatórias dessa fase é o Encontro Brasilei­ro de Teatro de Grupo, organizado pela equipe do Fora do Sério na cidade de Ribeirão Preto. Com ênfase em espetáculos, o projeto atrai de­zenas de equipes em suas duas edições, em 1991 e 1993. Concomitante, em Belo Horizonte, des­ponta a Associação Movimento Teatro de Gru­po de Minas Gerais, em 1991. Mas é na capital paulista que a urgência de políticas públicas para as artes cênicas ganha o centro das discussões. O movimento arte contra a barbárie" catalisa artis­tas, produtores e pensadores a partir de 1998. O primeiro manifesto vem à luz em maio do ano seguinte e salienta alguns parâmetros:
1) O teatro é uma forma de arte cuja especifi­cidade a torna insubstituível como registro, difu­são e reflexão do imaginário de um povo;
2) É inaceitável a mercantilização imposta à cultura no País, na qual predomina uma políti­ca de eventos. É fundamental a existência de um processo continuado de trabalho e pesquisa ar­tística;
3) Nosso compromisso ético é com a função social da arte;
4) A atual política oficial, que transfere a res­ponsabilidade do fomento da produção cultural para a iniciativa privada, mascara a omissão que
transforma os órgãos públicos em meros inter­mediários de negócios;
5) A cultura é o elemento de união de um povo que pode fornecer-lhe dignidade e o pró­prio sentido de nação. É tão fundamental quanto a saúde, o transporte e a educação. É, portanto, prioridade do Estado (COSTA & CARVALHO, 2008: 21-22).
Fruto da perseverança dos grupos e marco das políticas públicas de cultura no País - em contra­posição à hegemonia da renúncia fiscal do pa­trocínio via Lei Rouanet, de 1991 -, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo é instituído em 2002 (Lei 13.279). O seu artigo 10 - como se lê na webpage da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo - afirma que o objetivo é apoiar "a manutenção e criação de pro­jetos de trabalho continuado de pesquisa e produ­ção teatral visando o desenvolvimento do teatro e o melhor acesso da população ao mesmo':
O Programa soma R$ 48,1 milhões em seus primeiros cinco anos de vigência, valor destina­do a 192 projetos escolhidos por meio de edital e executados por 93 equipes nos vários quadrantes da geografia paulistana. Centro e periferia se en­trecruzam na circulação de espetáculos por pal­cos, praças e espaços não-convencionais, como o albergue destinado às pessoas que sobrevivem nas ruas, o trecho de um rio ou os prédios aban­donados de uma antiga vila operária. Amplia-se o saber cênico; formam-se espectadores para os quais a arte era, até então, inacessível. Essa per­cepção da cidadania é replicada na safra de peças que tangencia temas ou conteúdos sociais.
Em entrevista concedida ao jornal O Estado de S.Pau/o, o filósofo Paulo Arantes observa que a vi­tória desses grupos que conquistaram uma Lei de Fomento dos governantes deve-se a um movimen­to relevante estética e politicamente: "Nos tempos que correm não é pouca coisa converter consciên­cia artística em protagonismo político. Foi uma vitória conceitual também, pois além de expor o caráter obsceno das leis de incentivo, deslocaram o foco do produto para o processo, obrigando a lei a reconhecer que o trabalho teatral não se reduz a uma linha de montagem de eventos e espetácu­los. Nele se encontram, indissociados, invenção na sala de ensaio, pesquisa de campo e intervenção na imaginação pública. Quando essas três dimen­sões convergem para aglutinar uma platéia que prescinda do guichê, o teatro de grupo acontece:' (NÉSPOLI, 2007: 8-9)
Sob o ponto de vista formal, uma das princi­pais inovações do teatro de grupo é disseminar o ato de criar em colaboração, independentemente do que cada um dos seus integrantes faz. Se por um lado lembra a criação coletiva" em voga nos anos de 1960 e 1970, quando certo ímpeto co­munitário respondia à crispação gerada pela di­tadura militar (1964-1985), por outro avança na maneira de envolver toda a equipe na construção do espetáculo, configurando um procedimento que se tornou conhecido como processo colabo­rativo", Nos dias que correm, é comum a presen­ça do dramaturgo na sala de ensaio, permeável às sugestões do elenco, do diretor e do corpo técni­co, sem que as hierarquias sejàrn anuladas.
A articulação dos coletivos em nível nacional se dá por meio do Redemoinho - Movimento Brasileiro de Espaços de Criação, Compartilha­mento e Pesquisa Teatral, iniciativa do Galpão Cine Horto, de Belo Horizonte, a partir de 2004. O Redemoinho logo se assume enquanto movi­mento político e os cerca de 70 grupos de 11 Es­tados, a ele ligados, reivindicam a aprovação de uma lei federal de Fomento. Contudo, entre o de­sejo e a realidade da tramitação de um projeto de lei ao sabor dos ventos partidários, defrontam­-se com o desafio de melhorar o diálogo entre si e aparar antagonismos ideológicos, problemas que levaram ao adiamento do 52 encontro anual previsto para o final de 2008, em Salvador - as edições anteriores ocorreram na capital mineira (2004 e 2005), em Campinas (2006) e em Por­to Alegre (2007). No encontro de Campinas, um importante documento redigido pelos grupos participantes e intitulado "O Redemoinho e seus Objetivos" sintetiza as propostas basilares. Pu­blicado no Jornal do Redemoinho (2006:5), ei-lo na íntegra:
Redemoinho é uma associação brasileira de grupos que mantêm ou disputam espaços de cria­ção, compartilhamento e pesquisa teatral. Cria­da em 2004, funcionou até seu terceiro encon­tro como rede e neste ano de 2006 deliberou transformar-se em movimento político cujos representantes, eleitos, têm a tarefa de atuar na cena pública e política.
Desde a sua fundação este movimento se pro­põe a travar as seguintes lutas:
1. Pela criação de condições sociais, políticas e econômicas para a construção de um país que alimente a utopia de uma sociedade na qual a arte e a cultura sejam compreendidas como afir­mação da vida e direito universal;
2. Pelo direito de produzir teatro entendi­do não como veículo de niarketing institucional nem como um instrumento de pseudoinclusão social, mas como elaboração, na esfera do simbó­lico, do nosso depoimento crítico sobre a expe­riência de viver numa sociedade em que a cultura é mercadoria a serviço da dominação e por isso tem a função de alimentar os valores da concor­rência, da acumulação ou concentração de renda, do preconceito e da exclusão;
3. Pelo reconhecimento, por parte do Esta­do, do direito à cultura entendida como exercí­cio crítico da cidadania e, consequenternente, do nosso direito de criar um teatro que corresponda a esta definição. Há muitos anos o Estado brasi­leiro vem se omitindo de suas obrigações cons­titucionais para com a Cultura. O atual modelo neoliberal tem nas leis de incentivo seu principal instrumento de transferência de recursos públi­cos para a área cultural.
O Redemoinho não reconhece a Lei Rouanet como uma política pública para a cultura, uma vez que ela é privatizante, antidernocrática, excludente.
Por atender a interesses privados, norteados pelos departamentos de marketing das empresas, a Lei se mostra concentradora de renda e subme­te a esfera da produção simbólica aos interesses mercantis. Ao considerarmos que a Política cul­tural do país está privatizada, o Redemoinho pro­põe que o Estado retome suas responsabilidades na formulação e execução de políticas realmente públicas para a Cultura.
Nossas Reivindicações
Nossas experiências de pesquisa, criação e compartilhamento de processos teatrais necessi­tam de espaços autônomos nos quais os grupos possam melhor desempenhar a sua função social de prover o imaginário de bens simbólicos que favoreçam a construção da cidadania e a criação de uma democracia de fato no Brasil.
Para fazer frente a esta necessidade reivindi­camos um Programa Público de Cessão, Gestão e Consolidação de Espaços para o Teatro de Grupo.
Este programa visa:
• a construção de novos espaços teatrais em terrenos públicos ou em terrenos privados em parceria com o poder público;
• a ocupação e revitalização de espaços públi­cos ociosos;
• a revisão do conceito de gestão de espaços públicos existente;
• a criação de políticas públicas para os teatros e ou sedes de grupos já existentes que cumprem a função cultural que nós especificamos;
• a criação de linhas de crédito e isenção de impostos para a aquisição, construção, reforma, manutenção e equipagem de espaços teatrais.
Nossas experiências necessitam ainda da cria­ção de um Programa Especial de Circulação que, ao invés de dar prioridade aos aspectos quantita­tivos da circulação de produtos, vise ao intercâm­bio e compartilhamento de processos artísticos, de formação e pesquisa. Esta concepção diferen­ciada de circulação reafirma a necessidade dos espaços autônomos.
O Redemoinho propõe também que a gestão do Fundo Nacional de Cultura seja transparente, democrática e pautada por critérios que contem­plem a diversidade cultural, sobretudo as práticas que se caracterizem por processos continuados.
Como ação imediata, propõe ainda a aprova­ção do Projeto de Lei Federal Prêmio de Fomen­to ao Teatro Brasileiro como início da retomada do papel do Estado na formulação e execução de políticas públicas para a Cultura.
O Redemoinho afirma, em consonância com grande parte dos movimentos sociais, a necessidade urgente de que a valorização da Cultura se expresse no aumento da dotação ao Mine para no rninirno 1 por cento do orçamento geral da União.
Campinas, 6 de dezembro de 2006.
Como afluentes históricos dos protagonistas que aí estão, citamos o Arena e o Oficina (atual Oficina Uzyna Uzona), em São Paulo, e o Ipa­nem a e o Opinião, no Rio de Janeiro, os quatro surgidos entre os anos de 1950 e 1960. Também podem ser lembrados alguns representantes das gerações sucessivas, como a Tribo de Atuadores ói Nóis Aqui Traveiz, em Porto Alegre; o Tá na Rua, no Rio; o Galpão, em Belo Horizonte; e o Lume, em Campinas, todos ativos e nascidos nos estertores da repressão.
Essa nomenclatura disseminada sobre o territó­rio nacional espelha subjetividades inerentes à cena
mundial, como contextualiza Béatrice PICON­VALLIN, quando participa do Próximo Ato - En­contro Internacional de Teatro Contemporâneo, em São Paulo. Eis como ela se refere ao teatro de grupo:
O teatro de grupo pode ser definido, quer se atri­bua explicitamente ou não tal denominação, como uma comunidade artistica reunida, no mais das ve­zes, em torno de um ou mais líderes, empenhados num mesmo projeto. Ele pode ser amador", semi­profissional ou profissional, e pode escolher, con­forme seu status (que pode evoluir), a relação com os outros, a pesquisa artística, o impacto na socie­dade, a qualidade perturbadora da criação, até mes­mo a refundação do teatro. Porém, as relações de confiança, entendimento, cumplicidade, comparti­lhamento, que dão fundamento ao grupo enquanto tal, têm seu reverso: o voltar-se para dentro, para o trabalho de pesquisa, devido às dificuldades a serem superadas e à intensidade do trabalho no decorrer do processo de ensaios. O grupo pode, assim, ver-se isolado, apesar de todos aqueles que gravitam em torno do seu núcleo de atração. O Odin Teatret sou­be romper essa isolamento potencial e voluntário (a situação periférica do seu local de trabalho no inte­rior da Dinamarca), por meio de uma rede mundial pacientemente tecida e organizada. Para resistir em um contexto que, na Europa, se torna cada vez mais difícil para a arte e para o teatro, cada vez menos subvencionado - e que, em São Paulo, atualmente, por conta da recente Lei de Fomento, pode se tor­nar um pouco mais fácil, embora isso leve os gru­pos a uma concorrência, ao polimento dos projetos que são apresentados a quem concede os apoios e patrocínios -, é preciso, sem dúvida, estabelecer um princípio de base. Isolado para trabalhar, o grupo deve buscar alianças com outros grupos para prote­ger de todas as formas, tanto espirituais quanto ide­ológicas ou financeiras, esse isolamento propício à criação (PICON- VALLIN, 2008: 82-89).
O teatro de grupo no Brasil, em suma, ao culti­var a diversidade de gêneros e linguagens, conquis­ta lugar no sistema de entretenimento das capitais, sem recuo do pendor para o experimento. Os mais importantes prêmios e festivais já não o ignoram. A universidade e a imprensa tampouco, ainda que existam lacunas na análise desse período eferves­cente de mudanças de paradigmas, Uma referência no campo acadêmico é o ÁQIS - Núcleo de Pesquisa sobre Processos de Criação Artística -, que organiza um mapa do teatro de grupo no Brasil e é fundado em 1997 na Universidade do Estado de Santa Cata­rina. Aliás, vale lembrar que muitos coletivos têm origem nos cursos de arte dramática das universi­dades, que os municiam com forte formação teórica e prática. Para dizer a que vieram e buscar interlo­cução, núcleos em atividade lançam mão de publi­cações: revistas, jornais, cadernos, livros, fanzines e páginas na internet. Um reflexo dessa representati­vidade é a atuação da Cooperativa Paulista de Tea­tro. Ela chega aos 30 anos, em 2009, revigorada institucionalmente por causa da intensa produção dos núcleos desde a década anterior. A mesma entidade organiza a Mostra Latino-Americana de Teatro de 'Grupo, firmando correspondência com seus pares nos países de língua espanhola. Entre os conjuntos historicamente mais sígníficatívos que passaram pelas três edições paulistanas da Mostra, de 2006 a 2008, estão: Teatro Experimental de Cali (Colômbia, 1955), Teatro La Candelária (Colômbia, 1966), Tea­tro Buendía (Cuba, 1986), Yuyachkani (Peru, 1971), Teatro Malayerba (Equador, 1979) e Teatro de Los Andes (Bolívia, 1991). Todos também são destaca­dos nos últimos anos em festivais internacionais de Londrina, Porto Alegre e Belo Horizonte.
No Brasil, pelo trabalho já realizado e pela reper­cussão obtida, destacam-se do panorama em pro­cesso os grupos Ágora, Caixa de Imagens, Cemitério de Automóveis, Companhia Circo Mínimo, Com­panhia da Mentira, Companhia Teatro Balagan, Companhia de Atores Bendita Trupe, Companhia de Teatro em Quadrinhos, Companhia de Teatro Os Satyros, Companhia Fábrica São Paulo, Companhia do Feijão, Companhia do Latão, Companhia Livre, Companhia Cênica Nau de Ícaros, Companhia Pai­deia de Teatro, Companhia Razões Inversas, Com­panhia São Jorge de Variedades, Companhia Teatral As Graças, Companhia Triptal, Companhia Trucks Teatro de Bonecos, Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes, Engenho Teatral, LaMínima, Núcleo Argonautas de Teatro, Núcleo Arte Ciência no Pal­co, Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, Os Fofos Encenam, Parlapatões, Patifes & Paspalhões, Pes­soal do Faroeste, Pia Fraus Teatro, Pombas Urba­nas, Sobrevento, Tapa, Teatro da Vertigem, Teatro de Narradores, Teatro Popular União e Olho Vivo, Teatro Promíscuo, Teatro Ventoforte, XIX de Teatro e XPTO, em São Paulo; Barracão Teatro, Boa Com­panhia e Matula Teatro, em Campinas; Fora do Sé­rio, em Ribeirão Preto; Armazém Companhia de Teatro, Companhia dos Atores, Companhia dos Co-
muns, Companhia Ensaio Aberto, Companhia Os Dezequilibrados, Companhia Teatro Autônomo, In­trépida Trupe, Os Fodidos Privilegiados, Studio Sta­nislavski, Teatro de Anônimo e Teatro do Pequeno Gesto, no Rio de Janeiro; Companhia Clara, Espan­ca!, Companhia Zikizira Teatro Físico, Luna Lunera Companhia de Teatro, Oficina Multimédia, Teatro Andante e ZAP 18 - Zona de Arte da Periferia, em Belo Horizonte; Circo Teatro Udi Grudi e Teatro do Concreto, em Brasília; Zabriskie, em Goiânia; An­tropofocus, Ateliê de Criação Teatral, CiaSenhas de Teatro, Companhia Brasileira de Teatro, Compa­nhia Silenciosa, Companhia Vigor Mortis, Delírio Teatro, Obragem Teatro e Companhia e Sutil Com­panhia de Teatro, em Curitiba; Companhia Teatro di Stravaganza, Depósito de Teatro, Falos & Stercus e Oigalê Cooperativa de Artistas Teatrais, em Porto Alegre; (E)xperiência Subterrânea, Persona Compa­nhia de Teatro, Teatro Sim ... Por Que Não?!!! e Tés­pis Companhia de Teatro, em Florianópolis; Com­panhia Carona, em Blumenau; Imbuaça e Stultífera Navis, em Aracaju; Ata e Joana Gajuru, em Maceió; Bigorna e Piollin, em João Pessoa; Bando de Teatro Olodum, Companhia Baiana de Patifaria, Compa­nhia Teatro dos Novos, Dimenti, Los Catedraticos e Vilavox, em Salvador; Coletivo Angu de Teatro, Companhia Teatro de Seraphim, em Recife; Baga­ceira, Cabauêba e Teatro Máquina, em Fortaleza; Alegria Alegria e Clowns de Shak.espeare, em Natal; Cuíra do Pará, em Belém; e Mosaico e Teatro Fúria, em Cuiabá. (VS)

(GUINSBURG, J., FARIA, João Roberto e LIMA, Mariângela Alves de (Coord.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC SP, 2009, p. 309 - 313)

PROCESSO COLABORATIVO

Processo contemporâneo de criação teatral, 'com raízes na criação coletiva", teve também clara in­fluência da chamada "década dos encenadores'" no Brasil (década de 1980), bem como do desen­volvimento da dramaturgia no mesmo período e do aperfeiçoamento do conceito de ator-criador. Surge da necessidade de um novo contrato entre os criadores na busca da horizontalidade nas re­lações criativas, prescindindo de qualquer hierar­quia preestabelecida, seja de texto, de direção, de interpretação ou qualquer outra. Todos os criado­res envolvidos colocam experiência, conhecimento e talento a serviço da construção do espetáculo, de tal forma que se tornam imprecisos os limites e o alcance da atuação de cada um deles, estando a rela­ção criativa baseada em múltiplas interferências.
o texto dramático não existe a priori, vai sen­do construído juntamente com a cena, requerendo, com isso, a presença e um dramaturgo responsá­_ vel, numa periodicidade a ser definida pela equipe.
Todo material criativo (ideias, imagens, sen­sações, conceitos) deve ter expressão na forma de cena - escrita ou improvisadalrepresentada. Sendo assim, a cena, como unidade concreta do espetáculo, ganha importância fundamental no processo colaborativo.
Não existe um modelo único de processo co­laborativo. Em linhas gerais, ele se organiza a par­tir da escolha de um tema e do acesso irrestrito de todos os membros a todo material de pesquisa da equipe. Após esse período investigativo, ideias começam a tomar forma, propostas de cena são feitas por quaisquer participantes e a dramaturgia pode propor uma estruturação básica de ações e personagens, com o objetivo de nortear as eta­pas seguintes. Damos a essa estruturação o nome de canovaccio, termo que, na Commedia dell'Arte italiana, indicava o roteiro de ações do espetácu­lo, além de indicações de entrada e saída de ato­res, jogos de cena etc.
Embora o canovaccio seja responsabilidade da dramaturgia, não deve se constituir em mera "cos­tura" das propostas do coletivo, tampouco em uma visão particular do dramaturgo a ser cumprida à risca pela equipe. O processo colaborativo é dia­lógico, por definição. Isso significa que a confron­tação e o surgimento de novas ideias, sugestões e críticas não só fazem parte de seu modus operandi como são os motores de seu desenvolvimento.
A partir da estruturação dramatúrgica, ou si­multaneamente a ela, ocorre a seleção do mate­rial elaborado em sala de ensaio, de modo que muitos elementos são descartados e outros tan­tos permanecem para ser modificados, aprofun­dados ou sintetizados no decorrer do trabalho. Cenografia", figurino, iluminação, sonoplastia e outros componentes podem ser pesquisados e elaborados concomitantemente à construção do espetáculo, estando os responsáveis abertos tan­to a dar quanto a receber os comentários e su­gestões da equipe. O responsável pela elaboração do texto dramatúrgico acompanha igualmente os ensaios até que se chegue a um ponto satisfató­rio quanto a essa área. Embora o processo cola­borativo solicite integração de seus participantes na construção de uma obra única e comum, isso não significa a dissolução das identidades criadoras, ao contrário, propugna pela autonomia e pelo aprofundamento dessas identidades.
Um outro princípio norteador do processo colaborativo é o conceito de que teatro é uma arte efêmera, que se estabelece na relação do espetá­culo com o público, considerando este último igualmente um criador. Dessa forma, próximo à conclusão do período de ensaios podem ocor­rer, antes da estreia oficial, apresentações abertas com o objetivo de colher impressões, críticas e sugestões dos espectadores. O material levanta­do retoma para a reflexão do grupo" e elaboração final do espetáculo - o que não impede que haja modificações no decorrer das temporadas, inclu­sive por conta da relação público-cena.
Aquilo que chamamos hoje de processo cola­borativo começou a se aprofundar no começo dos anos de 1990 com o Teatro da Vertigem, de São Paulo, dirigido por Antônio ARAÚJO. A pesquisa aprofundou-se na medida em que foram criados seus três primeiros espetáculos ao longo de dez anos: Paraíso Perdido, O Livro de Já e Apocalipse 1,11. Muitos outros grupos, amadores" ou profis­sionais, dentre os quais a Companhia do Latão, de São Paulo, e o Grupo Galpão, de Belo Horizonte, adotam, sistematicamente ou não, o processo cola­borativo na elaboração de seus trabalhos. A Escola Livre de Teatro de Santo André (SP) e o Galpão Cine Horto (MG) são também referências na bus­ca da horizontalidade de relações artísticas entre seus integrantes. (LAA e AN)

(GUINSBURG, J., FARIA, João Roberto e LIMA, Mariângela Alves de (Coord.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC SP, 2009, p.279 - 280)

PÓS-MODERNO (TEATRO)

Designa-se como pós-moderna a produção cultu­ral nascida na era pós-industrial, genericamente engolfada pela lógica do capitalismo tardio e situa­da no contexto das sociedades altamente tecnoló­gicas do Ocidente. Verificou-se que, após os anos de 1950, manifestações como a arquitetura, a dan­ça, a música e o cinema passaram a fornecer procedimentos de linguagem para as incontáveis no­vas mídias surgidas com a revolução cibernética, propiciando um amálgama de novos e inusitados formatos expressivos. Tais fatores engendraram uma pluralidade de manifestações junto à área artístico-cultural, dificultando as generalizações ou agrupamentos em séries; sugerindo o desenvolvimento de novas formas de conhecimento, de vida e comportamento, em que a questão dos gêneros afirmou-se e transformou-se em motor de (novas) proposições. Como resultante, obser­vamos uma cultura que manifesta caráter anti­totalitário e não-hegemônico, nos antípodas das posturas que demarcaram o advento da modernidade. As dimensões social, cultural, industrial, arquitetural, técnica, de engenharia e sistemas operacionais surgem fundidas, consubstanciando corporações, holdings e tradings como seus mais elo quentes paradigmas de manifestação.
Neste ambiente sociocultural ultradesenvol­vido, novos procedimentos de linguagem mar­cam presença, estreitando o antigo fosso entre uma cultura erudita e outra de massa, tais como a intertextualidade, a citação, a paródia*, a ironia, o humor, o entretenimento, a desconstrução de todos os discursos instituídos. Apontam eles para a falência das meganarrativas do passado (o que fará com que sejam redimensionadas as ciências humanas), recobrindo todas as estruturas com a pátina do cotidiano, provocando descrença nas utopias que impulsionaram o advento da moder­nidade. Do ponto de vista da recepção, opera-se uma revalorização do espectador, abordado atra­vés de uma retórica que privilegia a nova sensibi­lidade - aberta, provisória, capaz de deslocamento rápido entre múltiplos estímulos simultâneos.
As artes cênicas assistirão, a partir de 1950, ao surgimento do happening: e da performan­ce* como procedimentos modelares destas novas configurações. A atitude experimental que lhes é subjacente ganhará impulso, apontando o teor vanguardista com que surgiram. Insuflarão gru­pos como o Living Theatre, o Open-Theatre ou o Performing Group, nos EUA; assim como, do ou­tro lado do Atlântico, fornecerão os procedimen­tos de base mobilizados por Tadeusz KANTOR e [erzi GROTOVSKI. O caráter gestual inerente à action painting e à body-art muito em breve con­taminará a dança, e esta, as demais manifestações cênicas, conformando novos modelos, apoios e técnicas para a abordagem da interpretação. O resultado desses processos será o redimensiona­mento da noção de representação, que trabalha agora com fenômenos de mestiçagens e hibridi­zações, sem fronteiras demarcadas: é o work in progress em franco desenvolvimento.
Uma dramaturgia que se assume fora do tex­tocentrismo nasce com as experiências de criação coletiva" privilegiadas por inúmeras equipes artís­ticas. O pensamento de ARTAUD ressurge com ímpeto ao longo da década de 1960, assim como as práticas ritualísticas, a ensejarem um teatro per­formático como preconizado por SCHECHNER e CHAIKIN. O teatro de imagens ganhará relevo com Robert WILSON e Richard FOREMAN, de­pois de 1970.
Macunaíma, espetáculo de ANTUNES FILHO de 1978, pode ser considerado o marco instaura-
dor da pós-modernidade no Brasil. Associando códigos da intertextualidade, da paródia, da ironia, do humor, soube preencher o palco nu com signos impactantes, a oferecerem uma nova face ao ho­mem brasileiro, assim como a instauração de um renovado padrão de teatralidade. Junto ao Centro de Pesquisa Teatral CPT, ANTUNES dedicou-se a criações de fôlego: Nelson Rodrigues, o Eterno Re­torno (1980), Romeu e [ulieta (1984), Paraíso Zona Norte (1989), Trono de Sangue-Macbeth (1992), Vereda da Salvação (1993).
Em 1982, inúmeros artistas foram reunidos em "14 Noites de Performances", num megaeven­to promovido pelo SESC-SP, e pela FUNARTE, cuja função era disseminar essas novas experiências em curso. O grupo Ponkã estreia Aponkâlipse em 1984, inspirado no I Ching e no livro bíblico de João, colocando em destaque as imagens termi­nais do século da cibernética. O Próximo Capítulo, coordenado por Luiz Roberto GALIZIA, empre­gava a performance como motor de sua estrutu­ra, que admitia um convidado a cada noite. Pás­saro do Poente, espetáculo de Márcio AURÉLIO, de 1987, fundia uma tradicional lenda nipônica com elementos da Commedia dell'Arte, bonecos de kyõgen e paródia sertaneja, teatro nô e kabuki, para narrar uma história de trás para frente, le­vando o Ponkã à máxima miscigenação cultural, como era seu propósito original.
O multiculturalismo*, em seu corolário mais am­plo, encontra-se na fundação do Bando de Teatro Olodum, capitaneado por Márcio MEIRELES, em Salvador, 1991, com o espetáculo Essa É Nossa Praia. A cultura do Pelourinho, entrecruzamento do arcai­co e do moderno, do negro pobre brasileiro e do tu­rista estrangeiro, das contradições de classe e raça, ganhou expressão nacional com este primeiro elenco formado exclusivamente por negros que fundiram o teatro à dança, à música, ao ritmo e à carnavalização, sintetizando a cultura baiana contemporânea.
Outra dimensão pós-moderna encontra-se no trabalho dos intérpretes. Denise STOKLOS inaugurou o teatro essencial: com Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico, em 1983. Desde en­tão apresentou inúmeras criações, com destaque Para Mary Stuart (1987), Casa (1989), Um Fax para Cristóvão Colombo (1992). O Lume, criado por Luís Otávio BURNIER em Campinas, en­veredou pelos métodos difundidos por Eugenio BARBA, chegando à mimese corpórea, em reali­zações como Kibilin o Cão da Divindade, Cravo, Lírio e Rosa e Café com Queijo. A ISTA (Inter­national School ofTheatre Antropology), funda­da por BARBA para difundir seus ensinamentos, inicia suas atividades em 1980, em Bonn. Após sessões em diversos países, aporta em Londrina em 1994, consolidando este inusual enquadra­mento do trabalho do ator, através de uma es­tratégia autodefinida como terceiro teatro. Maura BAIOCCHI tornou-se uma empenhada difusora do butô entre nós, após as instigantes visitas de Kazuo OHNO (1980) e Sankai JUKU (1981), em realizações radicais como Tanz-Butoh (1986).
Oriundo das artes plásticas e da música, o grupo XPTO estreia, em 1984, Buster Keaton e a Infecção Sentimental, revitalizando a centená­ria arte dos bonecos' e das formas animadas", Com Kronos (1987) e Coquetel Clown (1989) le­vam o gênero a um máximo de desenvolvimento, abrindo as portas para outros artistas da mesma linhagem, como o Pia Fraus e o Manhas e Ma­nias, estes mais próximos da entonação circense. Rodrigo MATEUS alcança desenvoltura junto ao teatro físico*, afirmando e ampliando o repertó­rio expressivo desta tendência, francamente dis­tante da representação tradicional.
A encenação conhece insuspeitos e instigan­tes desafios, co~o o proposto por Gerald THO­MAS em Carmem com Filtro (1986) Eletra Com Creta (1986), Trilogia Kafka (1988) e Mattogrosso (1989), que abusivamente valeu-se da paródia, da intertextualidade, da citação como alavancas de uma dicção que objetivava a auto exibição, em se­guida contextualizada como a de um encenador" de si mesmo. Neste mesmo influxo, vale lembrar o teor fortemente autoral das criações do cario­ca Márcio VIANNA, como Marat, Marat (1988), O Caso dos Irmãos Feininger, Coleção de Bonecas, O Circo da Solidão, em que explorou ao paroxis­mo a desvinculação entre intenção e gesto no trabalho de seus intérpretes, em agudas pesqui­sas sobre as convenções da cena. O apelo autoral também está presente no trabalho de Bia LES­SA: Exercício n. 1 (1987), Orlando (1989), Cartas Portuguesas (1991) e Viagem ao Centro da Terra (1993). Renato COHEN surpreendeu a todos, em 1986, com Espelho Vivo, mergulhando no univer­so figural de René MAGRITTE, bem urdido em­prego da performance e do teatro-imagem. Sturm und Drang/Tempestade e Ímpeto (1991) revisitou matrizes do pré-romantismo alemão fazendo deambular pelo Parque Modernista uma série de figuras em busca da essência da poesia. Em 1995, Renato COHEN volta-se para a vanguar­da russa, redescobrindo Vitória sobre o Sol, espe­táculo embasado pelo butô. Mais radical foi seu trabalho Ka-Poética de Vélimir Khlébnikov, em que o emprego da linguagem zaún possibilitou repetidos exercícios em torno da pura sonorida­de. Tais repetições, uma das matrizes identifica­das com o minimalismo, já estavam presentes em Você Vai Ver o que Você Vai Ver (1986), de Gabriel VILLELA, que recontava, em estilos diversos, qua­torzevezes o mesmo enredo. Esse diretor minei­ro criou um Romeu e [ulieta minimalista com o grupo Galpão, em 1991, assim como A Rua da Amargura, apelando para uma revisão estilística da Paixão de Cristo que tinha na paródia, no uso das alegorias' e no perfil neobarroco de seu tra­çado as marcas da pós-modernidade.
O Centro para Construção e Demolição do Es­petáculo surgiu em 1988, por iniciativa de Aderbal FREIRE - FILHO que levou ao palco, em sua íntegra e sem adaptação", o romance A Mulher Carioca aos 22 Anos. Em anos subsequentes, o encenador evo­cará a história do país, revivendo episódios em tor­no de Getúlio VARGAS e TIRADENTES. Em 2003 voltará ao antigo formato com O que Diz Molero, radicalizando a narratividade do romance.
Em 1991, José Celso Martinez CORRÊA volta aos palcos com As Boas, lançando dois anos após Ham-Iet, a primeira produção do novo Teatro Ofi­cina, remodelado como uma rua cultural. Misté­rios Gozozos (1995), As Bacantes e Para Dar um Basta no Iuizo de Deus (1996), Ela (1997) e Cacil­da! (1998) constituíram-se em momentos de forte extração dionisíaca, novos apelos ao rito e à tea­tralidade prenhe de erotismo, festa, desregramen­to. Os Sertões, adaptado de Euc1ides da CUNHA, conheceu três partes, apresentadas entre 2000 e 2004. Esta vertente perseguida pelo Oficina, que entrecruza vida e arte, já havia arrebatado outros adeptos, como o Terreira da Tribo, de Porto Ale­gre, através de criações como Ostal (1987), Antígo­na (1990), Missa para Atores e Público sobre a Pai­xão e o Nascimento do dr. Fausto de Acordo com o Espírito de nosso Tempo (1994), A Morte e a Don­zela (1997) e Kassandra in Process (2001).
A exploração de novos espaços cênicos e a eleição de lugares da memória coletiva como marcos simbólicos da cidade ajudaram o Tea­tro da Vertigem, em São Paulo, a delinear seu projeto artístico, efetivado com as montagens de o Paraíso Perdido (1992), ambientado na igre­ja de Santa lfigênia; O Livro de Jó (1995), que ocupou os três andares do hospital Umberto I, e Apocalipse 1, 11 (2000), sediado no presídio do Hipódromo. Antônio ARAÚJO distingue­-se como um encenador que busca no sagrado um apoio decisivo, levando seu elenco a contun­dentes confrontos para viver o hiper-realismo de cenas sempre rentes ao paroxismo. Em trilha as­semelhada, Ricardo KARMAN investe em novos espaços, como a exploração de um túnel escavado no coração do Parque Ibirapuera, para a monta­gem de Viagem ao Centro da Terra (1992), na qual a visão de seres mitológicos e heróis de diversas epopeias coagulavam a paisagem. Em 1996, cria A Grande Viagem de Merlim, levando o espepa­dor a percorrer um longo percurso dentro de'um ônibus multimídia que o despejava num aterro sanitário na periferia de São Paulo seguindo, na sequência, para as ruínas do Teatro Polytheama, em [undiaí, culminando a excursão à beira de um lago na Serra do Iapí. Nesse teatro de estações, não apenas a tradição medieval ressurge como experiência arcaica como, em igual medida, a parafernália eletroeletrônica se faz triunfante, numa justaposição de ingredientes que almeja arrebatar o espectador em todos seus sentidos.
Dois encenadores paranaenses despontaram nos últimos anos: Felipe HIRSH obteve consa­gração nacional com A Vida É Cheia de Som e Fú­ria (2000) e, especialmente, Os Solitários (2002), voltando-se para os fenômenos da memória e as interconexões psíquicas que ensejam a identida­de dos indivíduos. Fernando KINAS construiu um espetáculo radical em Carta aos Atores, tor­nando quase inexistente o intervalo entre vida real e representação (2002).
Perpétua, Opus Profundis e Desembestai! cons­tituem uma trilogia na qual Dionísio NETO ex­plorou, com desenvoltura, recursos da perfor­mance, do rock, da dança, da intertextualidade, da paródia e da citação, em 1996. Com a Cia. Cachorra criou, em 2000, novas realizações: Co­rações Partidos e Contemplação de Horizontes, O Dia Mais Feliz de sua Vida e A Milagrosa História da Imagem que Perdeu o seu Herói, exacerban­do procedimentos multimídia e fazendo desfilar personagens da cultura junkie das megalópoles. A marginalidade, a vida boêmia nos grandes cen­tros de diversões, a subcultura, os mitos da socie­dade de consumo estão presentes nos espetáculos
de Mário BORTOLOTTO, ora como autor ora como encenador, cujas marcas distintivas estão no acabamento precário, nas montagens sujas e mal ajarnbradas, através de incompletudes que enfatizam a falta de artesanato como uma chan­cela da arte contemporânea.
Personagens periféricas assumem a cena nas obras de dramaturgos do final do século, revelan­do textos irados e comprometidos com um novo .enquadramento socioestético. São os jovens sem perspectivas de Budro (1994) e Atos e Omissões (1995), de Bosco BRASIL; os marginais de Um Céu de Estrelas, de Fernando BONASSI (1996); os estudantes criminosos de Vermuth (1998), os alternativos de A Boa (1999) e os militantes de MSTesão (2001), de Airnar LABAKI. A que se so­mam os aspirantes a atores de A Máquina (2000), de João FALCÃO, os degradados sociais de Ba­bilônia (2002), de Reinaldo MAlA, todos eles compondo facetas do Brasil desigual, dividido, construído sobre exclusões sociais. Evidenciam aspectos de amargura, sofrimento e abandono, a maré montante que coloca em cheque o sistema econômico globalizado. (EM)

(GUINSBURG, J., FARIA, João Roberto e LIMA, Mariângela Alves de (Coord.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC SP, 2009, p. 275 - 278)

LAZZI

Termo da Commedia dell’arte*. Elemento mímico ou improvisado* pelo ator que serve para caracterizar comicamente a personagem (no origem Arlequim). Contorções, rictus, caretas, comportamentos burlescos e clownescos, intermináveis jogos de cena são seus ingredientes básicos. Os lazzi tornam-se rapidamente morceaux de bravoure que o público espera do comediante. Os melhores ou mais eficientes são muitas vezes fixados nos canevas* ou nos textos (jogos de palavra, alusões políticas ou sexuais). Com a evolução da Commedia, em particular sua influência sobre o teatro francês dos séculos XVII e XVIII (MOLIÈRE, MARIVAUX), os lazzi tendem a ser integrados ao texto e são uma maneira mais refinada, porém sempre lúdica, de conduzir o diálogo, uma espécie de encenação de todos os componentes paraverbais do jogo do ator.
Na interpretação contemporânea, frequentemente muito teatralizada e paródica, os lazzi desempenham um papel essencial de suporte visual (encenações de STREHLER dos clássicos italianos, formas e técnicas populares etc.).

(PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: perspectiva, 1999, p. 226)

GESTUS

Gestus é o termo latino paragesto*. Esta forma encontrada em alemão até o século XVIII: LESSING fala, por exemplo, de "gestus individuazantes" (quer dizer, característicos) ou do "gestus advertência paterna". Gestus tem aqui o sentido de maneira característica de usar o corpo*, tomando já, a conotação social de atitude* para com o outro, conceito que BRECHT retomará em sua teo­ria do gestus. MEIERHOLD distingue, quanto a ele “posições-poses" (rakurz) que indicam a atitude cristalizada e fundamental de uma personagem. Seus exercícios biomecânicos* têm a finalidade, entre outras, de determinar atitudes cristalizadas, verdadeiros "breques" (entalhes de suspensão) no movimento gestual (condensação*).

(PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: perspectiva, 1999, p. 187)

ESCRITURA CÊNICA

1. A escritura (a arte ou o texto) dramática é o universo teatral tal como é inserido no texto pelo autor e recebido pelo leitor. O drama é concebi­do como estrutura literária que se baseia em al­guns princípios dramatúrgicos: separação dos papéis, diálogos, tensão dramática, ação das per­sonagens. Esta escritura dramática possui carac­terísticas que facilitam sua passagem para (ou sua confrontação com) a escritura cênica: principal­mente a distribuição do texto em papéis, seus buracos e ambigüidades, a abundância de indica­ções espaço-temporais", A escritura dramática não deve, todavia, ser confundida com a escritu­ra cênica que leva em conta todas as possibilida­des de expressão da cena (ator, espaço, tempo).
A tarefa do cenógrafo é assistir o encenador para encontrar uma escritura (ou uma linguagem) cênica: "para cada peça, inventar uma espécie de linguagem para o olho que sustente os significa­dos da peça, os prolongue e faça eco a eles, ora de modo preciso e quase crítico, ora de modo difuso e sutil, à maneira de uma imagem poética (onde os sentidos fortuitos não são menos impor­tantes que aqueles que foram procurados), no in­terior do registro e do modo de expressão esco­lhido" (R. ALUO, citado in BABLET, 1975: 308).

2. A escritura (ou a arte) cênica é o modo de usar o aparelho cênico para pôr em cena - "em ima­gens e em carne" - as personagens, o lugar e a ação que aí se desenrola. Esta "escritura" (no sen­tido atual de estilo ou maneira pessoal de expri­mir-se) evidentemente nada tem de comparável com a escritura do texto: ela designa, por metáfo­ra, a prática da encenação, a qual dispõe de instru­mentos, materiais e técnicas específicos para trans­mitir um sentido ao espectador. A fim de que a comparação com a escritura se verifique como algo bem fundado, seria necessário estabelecer primei­ramente o léxico dos registros, unidades e modos de prática cênica. Mesmo que a semiologia* reve­le certos princípios de funcionamento cênico, é cla­ro que ainda ficamos muito longe de um alfabeto e de uma escritura no sentido tradicional.
- A escritura cênica nada mais é do que a ence­nação* quando assumida por um criador que con­trola o conjunto dos sistemas cênicos, inclusive o texto, e organiza suas interações, de modo que a representação não é o subproduto do texto, mas o fundamento do sentido teatral. Quando não há texto a encenar, e, portanto, encenação de um tex­to, falar-se-á no sentido estrito em escritura cêni­ca: a de um WILSON (nos seus primeiros traba­lhos), um KANTOR ou um LEPAGE.
O trabalho dramatúrgico* (sentido 2) encara o texto dramático dentro da perspectiva de sua escritura cênica.

3. Para PLANCHON, a escritura cênica e a escri­tura dramática sempre existiram, mas cada época privilegia uma delas: a Idade Média escreve em imagens, procura representar as personagens de seus mistérios. O c1assicismo parte do texto, adapta e retrabalha materiais textuais, sem preocupar-se com sua apresentação visual. Nossa época distin­gue as duas escrituras e as representações esco­lhem uma delas: "Às vezes o texto dramático ocu­pa todo o terreno, às vezes é a escritura cênica, e, às vezes, é a mistura dos dois" (Pratiques n. 15- 16, 1977, p. 55). Esta distinção e este corte que os encenadores, como os eruditos, deleitam-se em perpetuar é, em si, bastante discutível, pois, se sempre se opôs historicamente mimese (a imita­ção de uma coisa) a diégese (o texto que descreve esta coisa), a imagem ao texto, é em virtude de um critério de imitação e de realismo, logo, de relação ao referente, que está longe de ser o úni­co possível. Por outro lado, todo texto obriga o leitor a fazer dele, para si, uma representação ficcional e, inversamente, toda imagem cênica se lê também conforme um conjunto de códigos e circuitos que a linearizam e a decompõem.

(PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: perspectiva, 1999, p 131 - 132)

ENCENAÇÃO

A noção de encenação é recente; ela data apenas da segunda metade do século XIX e o emprego da palavra remonta a 1820 (VEINSTEIN, 1955:9). É nesta época que o encenador passa a ser o responsável “oficial” pela ordenação doe espetáculo. Anteriormente, o ensaiador ou, às vezes, o ator principal é que era encarregado de fundir o espetáculo num molde preexistente. A encenação se assemelhava a uma técnica rudimentar de marcação* dos atores. Esta concepção prevalece às vezes entre o grande público, para quem o encenador só teria que regulamentar os movimentos dos atores e das luzes.
B. DORT explica o advento da encenação não pela complexibilidade dos recursos técnicos e da presença indispensável de um “manipulador” central, mas por uma modificação dos públicos: “A partir da segunda metade do século XIX, não há mais, para os teatros, um público homogêneo e nitidamente diferenciado segundo o gênero dos espetáculos que lhe são oferecidos. Desde então, não existe mais nenhum acordo fundamental prévio entre espectadores e homens de teatro sobre o estilo e o sentido desses espetáculos” (1971:61).

1. Funções da Encenação

a. Definições mínima e máxima

A. VEINSTEIN propõe duas definições de encenação, segundo o ponto de vista da grande público e aquele dos especialistas: “Numa ampla acepção, o termo encenação designa o conjunto dos meios de interpretação cênica: cenário, iluminação, música e atuação [...]. Numa acepção estreita, o termo encenação designa a atividade que consiste no arranjo, num certo tempo e num certo espaço de atuação, dos diferentes elementos de interpretação cênica de uma obra dramática” (1955: 7).
Deixamos de lado as razões históricas do surgimento da encenação, no final do século XIX, sem menosprezar sua importância. Seria fácil mostrar a revolução técnica da cena, entre 1880 e 1900, principalmente a mecanização do palco e o aperfeiçoamento da iluminação elétrica. A isto se acrescentam a crise do drama, assim como o desmoronamento da dramaturgia clássica e do diálogo (SZONDI, 1956).

b. Exigência totalizante

Em suas origens, a encenação afirma uma concepção clássica da obra teatral cênica como obra total e harmônica que ultrapassa e engloba a soma dos materiais ou artes cênicas, outrora considerados como unidades fundamentais. A encenação proclama a subordinação de cada arte ou simplesmente de cada signo a um todo harmonicamente controlado por um pensamento unificador. “Uma obra de arte não pode ser criada se não for dirigida por um pensamento único” (E. G. CRAIG). A exigência totalizante é acompanhada, desde o surgimento da encenação, de uma tomada de consciência da historicidade dos textos e das representações, da série de sucessivas concretizações de uma mesma obra. Esta historicidade se manifesta pela imposição de um novo saber ao texto a ser representado: aquele das ciências humanas: “O saber é constitutivo da encenação” (PIEMME, 1984: 67).

c. Colocação no espaço

A encenação consiste em transpor a escritura dramática do texto (texto escrito e/ou indicações cênicas*) para uma escritura cênica. "A arte da encenação é a arte de projetar no espaço aquilo que o dramaturgo só pode projetar no tempo" (APPIA, 1954: 38). A encenação é "numa peça de teatro a parte verdadeira e especificamente teatral do espetáculo" (ARTAUD, 1964b: 161, 162). É, em suma, a transformação, ou melhor, a concretização do texto, através do ator e do espa­ço cênico, numa duração vivenciada pelos es­pectadores.
O espaço é, por assim dizer, colocado em pa­lavras: o texto é memorizado e inscrito no espaço gestual do ator, réplica após réplica. O ator busca o percurso e as atitudes que melhor correspondem a sua inserção espacial. As falas do diálogo, rea­grupadas no texto, são doravante espalhadas e inseri das no espaço e no tempo cênicos, para se­rem vistas e ouvidas: "O tipo de enunciação do texto dramático contém a exigência de ser dado a ver", escreve justamente P. RICOEUR (1983: 63). O gesto, por exemplo, é sistematicamente trabalhado para ser legível (mais que visível); ele é estilizado, abstrato, decomposto, associado mne­motecnicamente ao desfile do texto, ancorado de acordo com alguns pontos de referência, em al­guns apoios (subpartitura*).

d. Conciliação

Os diferentes componentes da representação, devidos muitas vezes à intervenção de vários cria­dores (dramaturgo, músico, cenógrafo etc.), são reunidos e coordenados pelo encenador. Quer se trate de obter um conjunto integrado (como na ópera) ou, ao contrário, de um sistema onde cada arte conserva sua autonomia (BRECHT), o ence­nador tem por missão decidir o vínculo entre os diversos elementos cênicos, o que evidentemente influi de maneira determinante na produção do sentido global. Este trabalho de coordenação e homogeneização se faz, para um teatro que mos­tra uma ação, em torno da explicação e do co­mentário da fábula* que é tornada inteligível re­correndo-se à cena usada como teclado geral da produção teatral. A encenação deve formar um sistema orgânico completo, uma estrutura onde cada elemento se integra ao conjunto, onde nada é deixado ao acaso, e sim, possui uma função na concepção de conjunto. Toda encenação instaura uma coerência *, a qual, aliás, ameaça a todo momento transformar-se em incoerência. Exem­plar, a este respeito, é a definição de COPEAU, que retoma inúmeras experiências teatrais: "Por encenação entendemos: o desenho de uma ação dramática. É o conjunto dos movimentos, gestos e atitudes, a conciliação das fisionomias, das vo­zes e dos silêncios; é a totalidade do espetáculo cênico, que emana de um pensamento único, que o concebe, o rege e o harmoniza. O encenador in­venta e faz reinar entre as personagens aquele vín­culo secreto e invisível, aquela sensibilidade re­cíproca, aquela misteriosa correspondência das relações, em cuja ausência o drama, mesmo que interpretado por excelentes atores, perde a melhor parte de sua expressão" (COPEAU, 1974: 29-30).

e. Evidenciação do sentido

A encenação não é mais considerada, portanto, como "mal necessário" do qual o texto dramático poderia muito bem, afinal de contas, se privar, e sim, como o próprio local do aparecimento do sen­tido da obra teatral. Assim, para STANISLÁVSKI, compor uma encenação consistirá em tomar mate­rialmente evidente o sentido profundo do texto dra­mático. Para isso, a encenação disporá de todos os recursos cênicos (dispositivo cênico, luzes, figuri­nos etc.) e lúdicos (atuação, corporalidade e gestualidade). A encenação compreende ao mes­mo tempo o ambiente onde evoluem os atores e a interpretação psicológica e gestual desses atores. Toda encenação é uma interpretação do texto (ou do script), uma explicação do texto "em ato"; s6 temos acesso à peça por intermédio desta leitura do encenador.

f. Três questões sobre a organização da encenação

Para compreender a concretização que impli­ca toda nova encenação de um mesmo texto, bus­ca-se estabelecer a relação entre o texto dramáti­co e seu contexto de enunciação, colocando três questões teóricas:

• Que concretização é feita do texto dramático quando de qualquer nova leitura ou encenação? Que circuito da concretização se estabelece en­tão como obra-coisa, contexto social e objeto es­tético? (Para retomar os termos de MUKA­ROVSKY (1934); cf PAVIS, 1983a).

• Que ficcionalização, isto é, que produção de uma ficção, a partir do texto e a partir da cena, se estabelece graças aos efeitos conjugados do texto e do leitor, da cena e do espectador? No que a mes­cla de duas ficções, textual e cênica, é indispensá­vel à ficcionalização teatral? (cf PAVIS, 1985d)?

• A que ideologização são submetidos o texto dra­mático e a representação? O texto - seja ele dramá­tico ou espetacular - só se compreende em sua intertextualidade*, principalmente em relação às formações discursivas e ideológicas de uma épo­ca ou de um cor pus de textos. Trata-se de imagi­nar a relação do texto dramático e espetacular com o contexto social, isto é, com outros textos e dis­cursos mantidos sobre o real por uma sociedade. Sendo esta relação das mais frágeis e variáveis, o mesmo texto dramático produz sem dificuldade uma infinidade de leituras e, portanto, de encena­ções imprevisíveis a partir somente do texto.

g. Solução imaginária

O relacionamento das duas ficções, textual e cênica, não se limita a estabelecer uma circularidade entre enunciado e enunciação, ausência e presença. Ela confronta os locais de indetermi­nação e as ambigüidades do texto e da represen­tação. Estes locais não coincidem necessariamente no texto e no palco. Por vezes, a representação pode tomar ambígua, isto é, polissêmica ou, ao contrário, vazia de sentido, esta ou aquela passa­gem do texto. Por vezes, ao contrário, a represen­tação toma partido sobre uma contradição ou uma indeterminação textual.
Tomar opaco pelo palco o que era claro no tex­to, ou esclarecer o que era opaco no texto, tais ope­rações de determinação/indeterminação situam-se no cerne da encenação. Na maior parte do tempo, a encenação é uma explicação de texto que orga­niza uma mediação entre o receptor original e o receptor contemporâneo. Por vezes, ao contrário, ela é uma "complicação de texto", uma vontade deliberada de impedir toda comunicação entre os contextos sociais das duas recepções.
Em certas encenações (aquelas inspiradas, por exemplo, por uma análise dramatúrgica brechtia­na), trata-se de demonstrar como o texto dramáti­co foi ele próprio a solução imaginária de contra­dições ideológicas reais, aquelas da época na qual se estabeleceu a ficção. A encenação é então en­carregada de tomar a contradição textual imagi­nável e representável. Para encenações preocu­padas com a revelação de um subtexto do tipo stanislavskiano, supõe-se que o inconsciente do texto acompanhe, num texto paralelo, o texto real­mente pronunciado pelas personagens.

h. Discurso paródico

Qualquer que seja a vontade, apregoada ou não, de mostrar a contradição da fábula ou a verdade profunda do texto através da visualização do subtexto, a encenação é sempre um discurso ao lado de uma leitura achatada e neutra do texto; ela é, no sentido etimológico, paródica. mas nem a contradição, nem o subtexto inconsciente estão verdadeiramente ao lado ou acima do texto (como o metatexto); eles estão no entrechoque e no en­trelaçamento das duas leituras, no interior da concretização, da ficção, da relação com a ideo­logia: como uma paródia que não poderíamos se­parar do objeto parodiado.

i. Direção de ator

Concretamente, a encenação passa por uma fase de direção de atores. O encenador guia os comediantes fazendo-os mudar e explicitando-lhes a imagem que eles produzem trabalhando a partir de suas propostas e efetuando correções em função dos outros atores. Ele se assegura de que o detalhe do gesto, da entonação, do ritmo cor­responde ao conjunto do discurso da encenação, integra-se a uma seqüência, a uma cena, a um conjunto. Os atores experimentam, durante os en­saios, diversas situações de enunciação*. Ocu­pam pouco a pouco o espaço, ao termo de um tra­jeto, organizando e organizando-se no conjunto dos sistemas cênicos: "É isto a direção de ator, conseguir motivar vocês e por que os gestos efetuados por vocês no palco lhes pareçam não só que 'têm de ser feitos', mas que são evidentes: sentir que o papel é interpretado apenas com os deslocamentos, por exemplo" (C. FERRAN in Théâtre/Public n. 64-65, 1985, p. 60). Uma dire­ção assim supõe que os signos produzidos pelo ator sejam emitidos claramente, sem "ruídos" nem interferências, com os traços pertinentes busca­dos pelo discurso global da encenação, que os comediantes realizem o jogo cênico uns com os outros, sejam audíveis e "legíveis". Dedica-se freqüentemente um cuidado particular à entona­ção e ao ritmo, àquilo que os alemães chamam de Sprachregie (encenação da língua).
A encenação não é necessariamente - como está na moda dizer - um exercício de autori­tarismo do encenador que despoja os autores e tiraniza sadicamente atores-marionetes. BRECHT o lembrava, em vão: "Entre nós, o encenador não penetra no teatro com sua 'idéia' ou sua 'visão', uma 'planta baixa das marcações' e dos cenários prontos. Seu desejo não é 'realizar' uma idéia. Sua tarefa consiste em despertar e organizar a ati­vidade produtiva dos atores (músicos, pintores etc.). Para ele, ensaiar não significa fazer engolir à força alguma concepção fixada a priori em sua cabeça e, sim, pô-la à prova" (1972: 405).

i. Indicação

No jargão dos atores, diz-se que o encenador dá indicações aos comediantes. Toda a dificul­dade consiste em dar e receber esta indicação por meias palavras: "É uma coisa bem difícil saber pegar bem uma indicação, como é coisa difícil para o encenador dá-Ia com clareza. É preciso captar o espírito de não tomar-se escravo da le­tra" (DULLIN, 1946: 48). Conselho que seguem todos os encenadores para quem a indicação não deve desembocar numa imitação: indicar não é ditar, é, antes, sugerir, informar, mostrar um ca­minho possível.

2. Problemas da Encenação

a. Papel da encenação

O surgimento do encenador na evolução do teatro é significativo de uma nova atitude pe­rante o texto dramático: durante muito tempo, na verdade, este apareceu como o recinto fecha­do de uma única interpretação possível que era preciso despistar (comprova isto, por exemplo, a fórmula de LEDOUX que recomendava ao encenador, em confronto com o texto, "servir e não servir-se"). Hoje, ao contrário, o texto é um convite a buscar seus inúmeros significados, até mesmo suas contradições; ele se presta a novas interpretações. O advento da encenação prova, além do mais, que a arte teatral* tem doravante direito de cidade como arte autônoma. Sua sig­nificação deve ser buscado tanto em sua forma e na estrutura dramatúrgica e cênica quanto no ou nos sentidos do texto. O encenador não é um elemento exterior à obra dramática: "Ele ultra­passa o estabelecimento de um quadro ou a ilus­tração de um texto. Toma-se o elemento fun­damental da representação teatral: a mediação necessária entre um texto e um espetáculo. [ ... ] Texto e espetáculo se condicionam mutuamen­te; um expressa o outro" (DORT, 1971: 55-56).

b. O discurso * da encenação

A encenação de um texto sempre tem uma palavra a dizer: intervenção capital pois será, para a representação, a "última palavra"; não existe discurso universal e definitivo da obra que a representação deve trazer à luz. A alternativa que ainda hoje vigora entre os grandes encena­dores - "levar o texto" ou "levar a representa­ção" - é, portanto, falseada desde o início. Não se poderia privilegiar impunemente um dos dois termos. Quase não se pensa mais, hoje, que o texto é o ponto de referência congelado numa única representação possível, texto que só teria uma única "verdadeira" encenação (roteiro*, texto e cena*).

c. Local do discurso da encenação

• As indicações cênicas* dão diretivas muito precisas para a realização cênica, porém a encenação não tem necessariamente que segui-Ias ao pé da letra.

• O próprio texto muitas vezes sugere o desen­rolar e o local da ação, a posição das personagens etc. (indicações espaço-temporais*). Um texto dramático, qualquer que seja ele, não pode ser escrito sem uma vaga idéia de uma possível re­presentação, sem um conhecimento, mesmo que rudimentar, das leis da cena usada, da concepção da realidade representada, da sensibilidade de uma época aos problemas do tempo e do espaço (pré­encenação*).

• As indicações cênicas e as sugestões vindas do texto nunca são verdadeiramente imperativas, e é decisiva a intervenção pessoal, e em certa me­dida exterior ao texto, do encenador. O local e a forma desta intervenção são muito ambíguos. Mesmo que seja concretizado num caderno de encenação, o discurso do encenador dificilmente é isolável da representação; ele constitui sua enunciação*, metalinguagem perfeitamente inte­grada ao modo de apresentação da ação e das per­sonagens; ele não vem se juntar ao texto lingüís­tico e à cena, não existe em parte alguma como texto acabado; está espalhado nas opções do jogo da atuação da cenografia, do ritmo etc. Por outro lado, ele só existe, segundo nossa concepção pro­dutiva-receptiva da encenação, quando é reconhe­cido e, em parte, partilhado pelo público. Mais que um texto (cênico) ao lado do texto dramáti­co, o metatexto é o que organiza, do interior, a concretização cênica, o que não está ao lado do texto dramático, mas, de certo modo, no interior dele, como resultante do circuito da concretização (circuito entre significante, contexto social e sig­nificado do texto) (PAVIS, 1985e: 244-268).

• Além do trabalho consciente do encenador, é preciso, enfim, deixar lugar para um pensamento visual ou inconsciente dos criadores. Se, como o sugere FREUD, o pensamento visual se aproxima mais dos processos inconscientes que o pensa­mento verbal, o encenador ou o cenógrafo pode­ria fazer o papel de "médium" entre linguagem dramática e linguagem cênica. A cena sempre re­meteria então à "outra cena" (espaço interior*).

3. Tipologia das Encenações

a. A encenação dos clássicos

A classificação é arriscada e as categorias voláteis (PAVIS, 1996a). Certas categorias de encena­cão dos clássicos também valem mutatis mu­tandis para os textos contemporâneos. Elas colo­cam todas as questões estéticas com uma acuidade ainda maior. O fato de se tratar de textos já anti­gos e dificilmente aceitáveis hoje sem uma certa explicação quase que obriga o encenador a to­mar partido quanto à sua interpretação ou a si­tuar-se na tradição das interpretações. Várias so­luções oferecem-se então a seu trabalho:

• Reconstituição arqueológica
Não encenar e, sim, reencenar uma peça inspi­rando-se, com um fervor arqueológico, na ence­nação de origem, quando os documentos de épo­ca estão disponíveis.

• Neutralização
Recusar a cena e suas escolhas cênicas em "bene­fício" de uma leitura neutra do texto, sem tomar partido quanto à produção do sentido e dando a ilusão (falaciosa) de que só nos prendemos ao tex­to e que a visualização é redundante. Ora o texto é vivido como uma ação única que não "dobra" o real (ARTAUD); ora o texto é concebido como um "bisturi que permite que abramos a nós mesmos' (GROTOWSKI, 1971: 35).

• Historicização
Levar em conta a defasagem entre a época da fic­ção representada, aquela de sua composição, e a nossa, acentuar esta defasagem e indicar as ra­zões históricas nos três níveis de leitura, isto é, historicizar". Este tipo de encenação restaura mais ou menos explicitamente, os pressupostos ideológicos ocultados, não receia desvendar os mecanismos da construção estética do texto e de sua representação. PLANCHON, VILAR, STREHLER, FORMIGONI, VINCENT pertencem a esse tipo de "encenação sociológica" (VlTEZ, 1994: 147).

• Recuperação do texto como material bruto
Textos antigos são usados como simples mate­rial com finalidade estética ou ideológica (atua­lização brechtiana, modernização, adaptação, reescritura). Citações ou trechos de outras obras esclarecem intertextualmente a obra interpreta­da (MERGUISCH, VITEZ).

• Encenação de sentidos possíveis e múltiplos do texto
Instalando práticas significantes* (KRISTEVA), que oferecem o texto espetacular à manipulação do espectador (A. SIMON, 1979: 42-56). Estas práticas oscilam entre uma abstração e uma abun­dância da cena.

• "Despedaçamento" do texto original
Ao mesmo tempo destruição de sua harmonia superficial, revelação das contradições ideológi­cas (cf PLANCHON e sua Mise en Piêcei s) du Cid, seu Arthur Adamov ou suas Folies bourgeoises) ou as encenações do Théâtre de l'Unité (!).

• Retorno ao mito
A encenação se desinteressa da dramaturgia es­pecífica do texto, para pôr a nu o núcleo mítico que o habita (ARTAUD, GROTOWSKI, BROOK e CARRIERE em sua adaptação do Mahabarata).

b. Alterações na escritura

Um meio possível de se demarcar os tipos de encenação consiste em observar como elas tra­tam o texto: "Por qualquer extremidade que se­jam pegas, todas as perguntas que o teatro faz sempre conduzem a esta: que acontece com o sen­tido do texto no palco?" (SALLENAVE, 1988: 93). Cada década parece haver inventado sua própria relação com os textos e o palco:
- os anos cinqüenta propuseram uma leitura (res­peitosa) das peças do patrimônio nacional (VILAR);
- os anos sessenta introduzem uma releitura crí­tica e distanciada (PLANCHON);
- os anos setenta preferem uma desleitura, desconstrução polifônica e dialógica (BAKHTIN, 1978) das práticas significantes (VITEZ);
- os anos oitenta questionam a estética da recep­ção e o "papel do leitor" (ECO, 1980), tomam altura e propõem meta leituras que timbram toda observação com o selo do comentário, margi­nal ou predominante (MESGUICH);
- os anos noventa restauram os poderes da escri­tura e assistem a uma eclosão de escrituras tan­to autônomas quanto abertas numa encenação: superleitura que se presta a todas as situações (COLAS ou PY);
- e no terceiro milênio? O texto, ou o hipertexto, talvez passe da memória humana à memory da máquina, do corpo à virtualidade, sem que nin­guém tenha mais consciência dele, misturadas que estarão hiperescritura e hiperleitura.

(PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: perspectiva, 1999, p. 122 - 127)

CRIAÇÃO COLETIVA

A criação coletiva surge com os conjuntos tea­trais que, nas décadas de 1960 e 70, associam to­dos os elementos da encenação, inclusive o texto, em um mesmo processo de autoria baseado na experimentação em sala de ensaio. Na Europa, esse método de construção cênico-dramatúrgica está ligado a encenadores' - como Peter BROOK, Giorgio STREHLER, Ariane MNOUCHKINE e Luca RONCONI - que, à frente de uma com­panhia", propõem novas formas de atuação e de espacialização, muitas vezes se apresentando fora das salas convencionais. Nos Estados Uni­dos, grupos como Living Theatre, Open Theatre e Performance Group buscam o contato direto com o público, abordando questões da socieda­de contemporânea a partir de uma visão crítica e libertária.
No Brasil, onde a criação coletiva floresceu jun­to aos grupos" da década de 1970, diversos espe­táculos fizeram história, entre eles: O&A, 1968 e Terceiro Demônio, 1972, pelo TUCA; Cypriano e Chan-ta-lan, ópera-bufa do grupo Pão e Circo, 1971; Som ma, ou os Melhores Anos de Nossas Vi­das, 1973, pelo Grupo de Niterói; Luxo, Som Lixo ou Transanossa, 1972; Rito do Amor Selvagem, 1972; Gente Computada Igual a Você, do Dzi Cro­quettes, 1973; Trate-me Leão, do grupo Asdrú­bal Trouxe o Trombone, 1977; Mistério Bufo, da Companhia Tragicômica Jaz-O-Coração, 1979. Nessas obras, elaboradas em processos extensos, a improvisação dos atores" se concentra muitas vezes em aspectos vivenciais, o que resulta em farto material e espetáculos de longa duração. A forma de produção cooperativada, a restrita ficha técnica e a confecção coletiva dos objetos e ele­mentos de cena produzem uma linguagem que expressa a identidade cultural do grupo.
Embora a criação coletiva tenha angariado a imagem de negação da técnica e de espontaneís­mo, ela deve ser considerada um modo de cria­ção a que correspondem diversos métodos, al­guns sistematizados pelo diretor" - como aquele praticado pelo grupo La Candelária (Colômbia) - e outros que, mesmo não descritos, serviram de material para teóricos que se debruçaram sobre o estudo da criação em grupo. Entre os diversos métodos, existem certas características comuns à criação coletiva, principalmente no que diz res­peito à motivação dos grupos alimentados pelas ideias do teatro de vanguarda: e pela rebeldia con­tra os padrões estabelecidos, sejam eles sociais, estéticos ou morais. Do ponto de vista da lin­guagem, há em geral uma ênfase do corpo e da ação, originada no ponto de partida do processo criativo: o jogo entre os atores e a improvisação funcionam como alfabeto com que o grupo es­creve suas ideias.
Entre os grupos brasileiros dos anos de 1970, o Pod Minoga (SP) conjuga a maior estabilidade de integrantes à menor hierarquização de fun­ções. A criação coletiva percorre todas as etapas de concepção e realização do espetáculo. Não há autor nem diretor. Flávio de SOUZA, Dionísio JACOB, Mira HAAR, Regina WILKE, Ângela GRASSI, Naum Alves de SOUZA e Carlos MO­RENO permaneceram juntos em quase todos os espetáculos. Folias Bíblicas, 1977, e Salada Pau­lista, 1978, são seus trabalhos mais conhecidos. O grupo realizou, entre 1972 e 1980, sete espetá­culos em criação coletiva sem que o texto, à ex­ceção dos dois últimos, jamais fosse escrito: em cada apresentação, o roteiro de ações criado a partir das improvisações permitia que a palavra se mantivesse permeável ao imprevisto.
Já no Asdrúbal Trouxe o Trombone (RJ), que chega à criação coletiva depois de dois espetácu­los, a composição da estrutura narrativa de Trate­-me Leão antecede o início dos ensaios e se cons­titui como um trabalho de colaboração entre os atores (que selecionam fragmentos de qualquer origem pelo critério da identificação com ques­tões da vida pessoal e do cotidiano), o diretor (que identifica núcleos temáticos no material apresen­tado e submete ao grupo um primeiro esboço de cenas) e artistas convidados a levar ao grupo con­tos, poemas e músicas. Só depois de pronto o ro­teiro inicia-se o trabalho de improvisação.
O que possibilita essa prática de criação cê­nico-dramatúrgica a partir do trabalho dos ato­res é uma forma de atuação fisicalizada e irreve­rente, gerada em um contexto histórico-cultural de valorização do corpo e negação das regras. Em Ubu Rei, por exemplo, segundo espetáculo do Asdrúbal, já havia uma linguagem de atuação em comum que permitiria, no trabalho seguin­te, a criação coletiva: o crítico Yan MICHALSKI mapeia as características dessa atuação quando escreve no Jornal do Brasil, a 31 de outubro de 1975, que "grande parte do conteúdo da men­sagem é transmitida sistematicamente através da atitude, do gesto, do movimento e do ritmo corporal dos atores", recursos que eles "dominam com uma generosa riqueza de detalhes e com um surpreendente preparo técnico".
Um dos espetáculos mais emblemáticos desse modo de criação, também pelo seu caráter inaugu­ral, foi Gracias, Sefíor, montado pelo Teatro Oficina em 1972, quando o grupo opta por se configurar como uma comunidade. Com oito horas de dura­ção, divididas em dois dias, a montagem abandona­va os limites da narrativa aristotélica e da ficção e se aproximava de uma vivência que englobava palco e plateia. O espetáculo se estruturava em oito cenas temáticas. Entre elas, "Aula de Esquizofrenia" utili­zava repolhos para simbolizar cérebros submetidos à lobotomia; a "Divina Comédia" mostrava os me­canismos de repressão da indústria cultural; a "Res­surreição dos Corpos" partia para o contato físico entre atores e espectadores com a ideia de trans­mitir energias vitais; a "Barca" fazia uma viagem marítima para uma utópica liberação dos corpos; o "Novo Alfabeto' brincava com um bastão e o pas­sava entre os presentes; e, ao final, "Te-Ato*" fazia daquele bastão o veículo para uma ação transfor­madora dos participantes. Inspirado pelo contato do Oficina com o Living Theatre e, em especial, pela influência de Paradise Now, o espetáculo Gra­cias, Sefíor gerou polêmica por pretender conduzir a plateia a uma mudança de pensamento e de atitu­de a partir da condução explícita do grupo.
Há casos em que a criação, embora coletivi­zada, se dá sob a condução do encenador, que se utiliza desse procedimento para uma obra deter­minada, sem torná -10 uma marca de sua estética. Mantendo as demais funções do espetáculo, ele amplia o trabalho do ator até a criação da cena e da dramaturgia, sem contudo colocar em discus­são a concepção. É o caso de Macunaíma, em que o projeto de recriar no teatro a obra de Mário de ANDRADE foi concebido e assinado pelo diretor ANTUNES FILHO tendo, no processo, a partici­pação de sua equipe.
Hoje, muitos grupos se servem de técnicas da 'criação coletiva para pesquisar novas linguagens e construir uma obra autoral. O Grupo Galpão (MG) realizou, na década de 1980, vários espetáculos uti­lizando esse método - entre eles, E a Noiva não quer Casar, Ó Procê vê na Ponta do Pé, A Comédia da Esposa Muda. A Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz (RS), fundada em 1978, trabalha com im­provisações para, a partir de uma obra literária ou dramatúrgica e de textos teóricos relacionados ao tema que se quer abordar, criar uma escritura cê­nica própria, feita de fragmentos; na contramão da história, o grupo se encarrega, como há trinta anos, de todos os elementos da cena, sem contratação de profissionais especializados. Em ambos os casos, a criação coletiva tem mais o sentido de engajamen­to dos integrantes em todo o processo de criação e realização de cada obra do que aquele de um espa­ço vazio onde o grupo exprime a própria subjetivi­dade - o que pode ser considerado um importante diferencial entre seu uso hoje e naquele período em que o método se disseminou.
Depois de virtualmente desaparecer dos pal­cos durante os anos de 1980 e 90, a criação coletiva gera descendentes. O processo colaborativo" marca o retorno a vários elementos constitutivos dessa prática: dramaturgia em aberto, longos percursos de elaboração e sistema de trabalho coletivo. Há, porém, diferenças significativas entre os dois mo­mentos. O conjunto teatral já não é mais o grupo que se mantém junto por afinidade pessoal, mas uma companhia profissional cujos integrantes po­dem variar muito de um espetáculo para outro e cujo vértice está na concepção do encenador. (RT)

(GUINSBURG, J., FARIA, João Roberto e LIMA, Mariângela Alves de (Coord.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC SP, 2009, p.110 - 112)

COMMEDIA DELL’ARTE

1. Origens

A Commedia dell’arte era, antigamente, denominada commedia all improviso, commedia a soggetto, commedia di zanni, ou, na França, comédia italiana, comédia das máscaras. Foi somente no século XVIII 9segundo C. MIC, 1927) que essa forma teatral, existente desde meados do século XVI, passou a denominar-se Commedia dell’arte – a arte significando ao mesmo tempo arte, habilidade, técnica e o lado profissional dos comediantes, que sempre eram pessoas do ofício. Não se sabe ao certo se a Commedia dell’arte descende diretamente das farsas atelanas* romanas ou do mimo antigo: pesquisas recentes puseram em dúvida a etimologia de Zanni (criado cômico) que se acreditava derivado de Sannio, bufão de atelana romana. Em contrapartida, parece ser verdade que tais formas populares, às quais se devem juntar os saltimbancos, malabaristas e buffões do Renascimento e das comédias populares e dialetais de RUZZANTE (1502-1542), prepararam o terreno para a commedia.

2. Características do Jogo

A Commedia dell’arte se caracterizava pela criação coletiva dos atores, que elaboram um espetáculo improvisando gestual ou verbalmente a partir de um canevas, não escrito anteriormente por um autor e que é sempre muito sumário (indicações de entradas e saídas e das grandes articulações da fábula). Os atores se inspiram num tema dramático, tomado de empréstimo a uma comédia (antiga ou moderna) ou inventando. Uma vez inventado o esquema diretor do ator (o roteiro), cada ator improvisa levando em conta os lazzi* característicos de seu papel (indicações sobre jogos de cena cômicos) e as reações do público.
Os atores agrupados em companhias homogenias, percorrem a Europa representando em salas alugadas, em praças públicas ou patrocinados por um príncipe; mantêm forte tradição familiar e artesanal. Representam uma dúzia de tipos fixos, eles próprios divididos em dois “partidos”. O partido sério compreende os dois casais de namorados. O partido ridículo, o dos velhos cômicos (Pantaleão e o Doutor), do Capitão (extraído do Miles Gloriosus de PLAUTO), dos criados ou Zanni, estes com diversos nomes (Arlecchino, Scaramuccia, Pulcinella, Mezzottino, Scapino, Coviello, Truffaldino) se dividem em primeiro Zanni (criado esperto e espirituoso, condutor da intriga) ou segundo Zanni (personagem ingênua e estúpida). O partido ridículo sempre porta máscaras grotescas, e estas máscaras (maschere) servem para designar o ator pelo nome de sua personagem.
Neste teatro de ator (e de atriz, o que era novidade na época), salienta-se o domínio corporal, a arte de substituir longos discursos por alguns signos gestuais e de organizar a representação “coreograficamente”, ou seja, em função do grupo e utilizando o espaço de acordo com uma encenação renovada. A arte do ator consiste mais numa arte da variação e da adequação verbal e gestual, do que em invenção total e numa expressividade. O ator deve ser capaz de reconduzir tudo o que improvisou ao ponto de partida, para passar o bastão ao seu parceiro e assegurar-se de que sua improvisação não se afasta do roteiro*. Quando o lazzi – improvisação mímica e às vezes verbal, mais ou menos programada e inserida no cavenas – se desenvolve num jogo autônomo e completo, torna-se uma burla. Esse tipo de jogo fascina os atores de hoje por seu virtuosismo, sua finura e pela parcela de identificação e distância crítica que exige de seu executante. Ele prefigura o reinado do encenador, ao confiar a adaptação dos textos e a interpretação geral a um capocomico (ou corago).

3. Repertório

O repertório dos “comediantes” é muito vasto. Não se limita aos canevas de comédia de intriga e os scénarii (argumentos) que chegaram até nós dão apenas uma idéia truncada deles, uma vez que esse gênero se fixava precisamente por finalidade trabalhar a partir de um esquema narrativo. Notícias, comédias clássicas e literárias (commedia erudita), tradições populares, tudo é bom para servir de fundo inesgotável para a commedia. As companhias chegam mesmo a montar tragédias, tragicomédias ou óperas (opera regia, mista ou heróica) em que se especializam (como a Comédie-Italienne em Paris) nas paródias de obras-primas clássicas e contemporâneas. Elas interpretavam também obras de autor (MARIVAUX, pela companhia de Luigi RICCOBONI, GOZZI e GOLDONI na Itália). Desde o final do século XVII, a arte da commedia começa a perder fôlego; o século XVIII e seu gosto burguês e racionalista (como GOLDONI e MARIVAUX no fim de sua carreira) surraram-na tanto que não mais se reerguerá.

4. Dramaturgia

Apesar da diversidade dessas formas, a commedia se remete a um certo número de constantes dramatúrgicas: tema modificável, elaborado coletivamente; abundância de quiprocós, fábula típica de namorados momentaneamente contrariados por velhos libidinosos; gosto pelos disfarces, pelos travestimentos de mulheres em homens, cenas de reconhecimento no fim da peça, nas quais os pobres ficam ricos, os desaparecidos reaparecem; manobras complicadas de um criado tratante, porém esperto. Esse gênero tem a arte de casar intrigas ao infinito, a partir de um pano de fundo limitado de figuras e situações; os atores não buscam o verossímil, mas o ritmo e a ilusão do movimento. A commedia revivifica (mais que destrói) os gêneros “nobres”, mas esclerosados, como a tragédia cheia de ênfase, a comédia demasiado psicológica, o drama sério demais; ela representa, desse modo, o papel de revelador de formas antigas e de catalisador para uma nova maneira de se fazer teatro, privilegiando o jogo e a teatralidade.
Provavelmente, é esse aspecto vivificante que explica a profunda influência que ela exerceu sobre autores “clássicos” como SHAKESPEARE, MOLIÈRE, LOPE DE VEJA ou MARIVAUX. Este último realiza uma difícil síntese de expressão lingüística e psicologia refinadas, combinadas na utilização de alguns tipos e situações da “comédia de máscaras”. No século XIX, a Commedia dell’arte desaparece completamente e seus vestígios vão ser encontrados na pantomima ou no melodrama, baseado, este último, em estereótipos maniqueístas. Ela sobrevive, hoje em dia, no cinema burlesco ou no trabalho de clown. A formação de seus atores tornou-se modelo de um teatro completo, baseado no ator e no coletivo, redescobrindo o poder do gesto e da improvisação (MEIERHOLD, COPEAU, DULLIN, BARRAULT).


(PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: perspectiva, 1999, p. 61-62)

CANEVAS

O canevas é o resumo (o roteiro*) de uma peça, para as improvisações dos atores, em particular na Commedia dell’arte*. Os comediantes usam os roteiros (ou canovaccios) para resumir a intriga, fixar os jogos de cena, os efeitos especiais ou os lazzi*. Chegaram até nós coletâneas deles, que devem ser lidos não como textos literários, mas como partitura constituída de pontos de referência para os atores improvisadores.

(PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: perspectiva, 1999, p. 38)

ARGUMENTO

1. Resumo da história contada pela peça, o argumento (ou expositio argumenti) é fornecido antes do início da peça propriamente dita para informar o público sobre a história que lhe vai ser contada, principalmente no caso do resumo em francês de uma peça em latim (na Idade Média). CORNEILLE, na edição de 1960 de seu teatro, precedeu cada uma de suas peças de um argumento.
ARISTÓTELES sugere ao dramaturgo fazer do argumento o ponto de partida e a idéia geral do drama: “Quer se trate de assuntos já tratados ou de assuntos que a pessoa mesma componha, é preciso, antes de mais nada, estabelecer a idéia geral e só depois fazer os episódios e desenvolvê-los” (Poética, § 1455 b). Em seguida, o poeta poderá estruturar a fábula em episódios, precisando nomes e lugares. Refletir desde o início sobre o argumento obriga a falar de verdades e conflitos universais, a privilegiar a filosofia e o geral às custas da história e do particular (§ 1451 b).

2. Sinônimo de fábula*, mythos* ou assunto, o argumento é a história relatada, reconstituída dentro de uma lógica dos acontecimentos, o significado da fábula (história contada) que se oporá a seu significante (discurso* contante). Certos gêneros teatrais como a farsa* ou a Commedia dell’arte* utilizam o argumento (o canevas*) como texto básico a partir do qual os atores improvisam. Às vezes o argumento é apresentado sob a forma de uma pantomima: assim, em Hamlet, a pantomima precede os diálogos da cena do envenenamento.

3. Como para fábula, às vezes encontramos argumento nos dois sentidos de 1) história contada (fábula como matéria) e de 2) discurso contante (fábula como estrutura da narrativa). Parece mais de acordo com o uso reservar ao argumento o sentido de história contada, independente e anteriormente à ordem de apresentação, isto é, da intriga* (ex: o argumento de Berenice relatado por RACINE no seu prefácio).

(PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: perspectiva, 1999, P.23)

ROTEIRO

Esse termo italiano, que significava “cenário”, designava o canevas de uma peça de Commedia dell’arte*. O roteiro dava indicações sobre o argumento*, a ação, a maneira de representar, em particular o lazzis*. A palavra quase não é mais usada hoje a não ser no cinema, onde ela compreende o mesmo gênero de indicações, excluindo-se indicações técnicas, mas com o texto do diálogo dos atores. Quando o termo é usado – bastante raramente – no teatro, é em geral para espetáculos que não se baseiam num texto literário, mas são amplamente abertos à improvisação e compõem-se sobretudo de ações cênicas extralingüísticas. A encenação* às vezes considera o texto a ser representado como um simples roteiro, a saber, como fonte de inspiração, como um material textual que não tem que ser restituído literariamente, mas serve de pretexto à criação teatral. Daí os mal-entendidos sobre o estatuto do texto e os direitos do encenador...

(PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: perspectiva, 1999, p. 347)