terça-feira, 31 de julho de 2012


Verbete: Pedagogia Pós-dramática.
                                                                                              Marcelo Gianini

Ao propor o termo pós-dramático para definir a prática cênica desenvolvida a partir dos anos 1970, Hans-Thies LEHMAN (2007) “designa um teatro que se vê impelido a operar para além do drama, em um tempo ‘após’ a configuração do paradigma do drama no teatro”.  Desta forma, a utilização do termo pós não carrega em si a proposição de negação ou de superação do drama ou de formas anteriores, mas “o que está em questão é apenas o nível, a consciência, o caráter explícito e o tipo específico dessa relação” (LEHMAN). Visto sob este ângulo, o teatro pós-dramático convive contemporaneamente com o Drama Burguês, com o Teatro Épico e com outras formas cênicas tradicionais. Concorde-se ou não com a conceituação proposta, a questão que se coloca é o que o pós-dramático tem a ensinar a arte educadores e a seus alunos. Seria pertinente a recorrência a estas formas e procedimentos no ensino de iniciação ao teatro? É válido trabalhar nos limites da linguagem teatral no ensino de teatro para leigos?
Tentemos responder afirmativamente a estas questões sob dois pontos de vista. O primeiro, a partir do objeto de estudo, o teatro e a História da Arte. As referências aos artistas do modernismo, bem ou mal, já foram incorporadas ao chamado cânone Ocidental. Suas obras são estudadas nas escolas, servem como referência nos vestibulares, faz-se programas televisivos sobre estes artistas, comemoram-se datas de nascimentos ou rememoram-se datas de falecimento. O Modernismo está aceito e catalogado. E os chamados pós-modernos? A crítica genética Cecília SALLES (2007) afirma que: “Não há criação sem tradição: uma obra não pode viver nos séculos futuros se não se nutriu dos séculos passados.” Ora, qual nossa tradição hoje senão também a dos chamados “artistas de invenção”, expressão cunhada pelo poeta Ezra Pound em meados do século XX. James Joyce publicou seu Ulysses em 1914 e introduziu o conceito de work in progres com seu Finnegans Wake na década de 30 do século passado, oitenta anos atrás! A gesantkunstwerk de Bob Wilson foi apresentada ao mundo na década de 1970. E entre Joyce e Wilson, vivemos a experiência do minimalismo, da pop arte, da arte cinética, do concretismo, da arte da performance, dos happenings e de um longo etc. Não fariam parte esses artistas e suas invenções formais de uma tradição da arte ocidental a ser estudada, seguida, negada, enfim, aceita como “tradição da invenção”? Artistas vinculados a uma possível “tradição das vanguardas”?
Um segundo ponto de vista sugerido para se pensar esta questão é a partir do sujeito do aprendizado, o aluno de iniciação ao teatro. Inicialmente vale notar que muitos dos experimentos “de ponta” e de “vanguarda” realizados a partir da segunda metade do século XX, hoje estão assimilados pelas artes de massa, como as colagens sonoras dos DJs, dos rappers, das músicas eletrônicas; as sequências aleatórias de imagens dos vídeo-clipes; a ausência de linearidade em muitas narrativas cinematográficas; a desestruturação do espaço euclidiano na incorporação das gravuras de Escher às artes gráficas, e por aí vamos. O mundo fragmentário está muito mais próximo de nossa experiência do real do que o formato tradicional Aristotélico da unidade de ação. São obras que remetem à ideia não de uma sequência à procura de unidade, mas de uma rede à procura da multiplicidade. Os fragmentos podem ser colados em diversas formalizações, até aleatoriamente e, assim, reveladas novas formas de percepção. Ora, rede é a forma privilegiada de comunicação no mundo contemporâneo. Nossa percepção contemporânea do mundo está mais próxima da colagem de fragmentos do que de uma visão cronológica linear e sequencial, assim como o teatro pós-dramático.
Trabalhar com formas e procedimentos do pós-dramático no ensino de teatro para leigos é trabalhar com liberdade estética. Se partirmos do princípio de que o foco do arte educador é o desenvolvimento do aluno através da apropriação da linguagem teatral, quanto mais amplos e livres de preconceitos forem os horizontes estéticos deste educador, mais ampla a visão de mundo compartilhada com os educandos. Aqui o que menos importa são as formalizações, mas os caminhos trilhados para se chegar a elas. “Fazer o mapa, não o decalque”, diriam DELEUZE e GUATTARI (1995). Conhecendo os caminhos trilhados, podemos refazê-los, questioná-los ou simplesmente abandoná-los. Isto significa a possibilidade de se fazer um novo “lance” no quadro das regras estabelecidas, como diria LYOTARD (2006):

A ênfase deve ser colocada de agora em diante sobre o dissentimento. O consenso é um horizonte, jamais ele é atingido. [...] É preciso supor um poder que desestabilize as capacidades de explicar e que se manifeste pela regulamentação de novas normas de inteligência ou, se se prefere, pela proposição de novas regras para o jogo de linguagem científico, que irão circunscrever um novo campo de pesquisa.

Sob este ponto de vista, as formas e os procedimentos do teatro pós-dramático tornam-se aberturas de possibilidades em lugar de opções estéticas fechadas. É a opção de trabalhar com a multiplicidade, com o excesso, com simultâneos pontos de vista, com um olhar histórico e com um olhar psicológico. Passar por esta experiência de ensino é abrir-se para o mundo, não um mundo distante, visto da periferia com câmeras focadas nas Metrópoles mundiais, mas para o nosso mundo cotidiano. Pensemos no exemplo do adolescente em frente de seus aparelhos eletrônicos de comunicação. Este mundo prosaico pode e deve ser transformado esteticamente. E transformá-lo em arte é, com certeza, questioná-lo por diversos ângulos, refazê-lo, reconstruí-lo, sempre de maneira crítica, distanciando-nos dos perigos de nos tornarmos reféns dos apelos instantâneos de uma “indústria cultural” que, segundo EFLAND (2005), “impõe formas e ideologias culturais a fim de integrar audiências numa ordem social existente”. A apropriação desta Indústria cultural, que deve ser concretizada de maneira crítica, é a função do educador. “Uma arte educação pós-moderna enfatiza a habilidade de se interpretar obras de arte sob o aspecto do seu contexto social e cultural como principal resultado da instrução” (EFLAND).
A Pedagogia Pós-dramática, porém, não pode ser imposta pelo arte educador, nem vista como pré-condição ao trabalho, mas sim como consequência do processo de construção do conhecimento desenvolvido com o grupo de alunos. A aproximação a estas estéticas mais radicais deve acontecer através do diálogo entre professor e alunos, teatro e mundo. O “novo” não pode ser enfiado pela goela abaixo dos alunos, mas se estabelecer como solução para os problemas estéticos e pedagógicos surgidos na construção do conhecimento. Segundo Ingrid KOUDELA (1996), o educador deve se apresentar como parceiro de jogo e não como “dono da verdade”. Nas palavras de Paulo FREIRE (2006):

Embora diferentes entre si, quem forma se forma ao ser formado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.

Assim, se não chega a ser necessário (ainda que recomendável) que o educador contemporâneo esteja “ligado” nas últimas criações europeias e norte-americanas, é imprescindível que esteja dialogando com seus alunos e com seu tempo. É como Paulo FREIRE afirma: “ensinar exige respeito aos saberes do educando. [...] O dever de não só respeitar [...] mas também [...] discutir com os alunos a realidade concreta a que se deve associar a disciplina cujo conteúdo se ensina.”
A introdução de procedimentos da arte contemporânea no ensino do teatro para leigos torna-se necessária porque estas novas formas dialogam com o nosso cotidiano. Um teatro de hoje para o mundo de hoje. Cabe a nós, educadores, a função de propor este diálogo entre mundo e teatro. Pode-se fazê-lo ao não abdicarmos de nossos pontos de vista artísticos; pontos de vista que reelaborem a visão de mundo a partir de termos estéticos. Ao não abrir mão desta percepção estética, mostra-se ao leigo, através do exemplo e de modelos artísticos, que há outras formas de se ler o mundo para além daquelas privilegiadas pelas instituições de ensino ou pela mídia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs – Vol. 1. Tradução: Aurélio Guerra Neto, Célia Pinto Costa. Editora 34, Rio de Janeiro, 1995.

EFLAND, Arthur D. Cultura, Sociedade, Arte e Educação num Mundo Pós-Moderno. In: O Pós-Modernismo, GUINSBURG, J. e BARBOSA, Ana Mae (org.), São Paulo, Ed. Perspectiva, 2005. p. 173-188.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo, Paz e Terra, 2006.

GIANINI, Marcelo. João, Artur e Alice: brincando de fazer teatro na contemporaneidade. Dissertação de mestrado. ECA-USP, 2009.

KOUDELA, Ingrid Dormien. Texto e Jogo: Uma Didática Brechtiana. São Paulo, Perspectiva/Fapesp, 1996.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind. São Paulo, Cosac Naify, 2007.

LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Tradução de Ricardo C. Barbosa. Rio de Janeiro, José Olympio, 2006.

SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado. Ed. Annablume/FAPESP. São Paulo, 2007.

Verbete- A Cena Contemporânea- Uma Experiência Prática



A Cena Contemporânea – Uma experiência Prática.
Enfoque pedagógico
Martha Travassos

Projeto Vozes Roubadas
“Às vezes temos a sensação de que estas vozes estão conversando umas com as outras, completando-se e cantando juntas numa única voz, a voz da infância e da juventude insubstituível.”- Zlata Filipovic

Introdução:
O projeto foi elaborado pelos estudantes do teatro Escola Macunaíma, dirigidos por Paco Abreu onde tive a oportunidade de ser assistente e aprendiz. Através da encenação tentamos resgatar as vozes de jovens a partir de diários de guerra escritos e organizados no livro: Vozes Roubadas, por Zlata Fillipovic e Melanie Challenger. O intuito de escutar o outro em suas diversas mazelas nos fez aproximar dos diversos conflitos vivenciados por pessoas reais. Estamos em um momento em que percebemos com maior sensibilidade que a história educacional caminha junto com a história social e cultural, onde a educação é uma reprodução do dinamismo histórico como experiência humanizadora de nosso momento histórico.


O objetivo da educação tem sido ajudar o ser humano em seu processo de humanização.
Deparamos com permanentes encontros e desencontros nesse processo de educação e formação humana. A possibilidade dessa abertura para pesquisa é sintonizar-se a dinâmica social e cultural de nossa sociedade, da capacidade de diálogo com diferentes áreas de conhecimento e criar um lugar de resistência.
Conforme Pupo, 2005 “o teatro é afirmado mais enquanto processo do que como resultado acabado, mais como ação e produção em curso do que como produto. Uma transformação na percepção da plateia é assim provocada”


Tecnologias em Cena


Nossos alunos adolescentes de 14 a 19 anos são íntimos de toda tecnologia, operam com facilidade todo tipo de aparato eletrônico que tem acesso: celulares, computadores, máquinas fotográficas, videogames e outros aparelhos, utilizando vorazmente as ferramentas disponíveis na internet, em especial as redes sociais, para registrar e publicar suas ações, opiniões e imagens.
Qual seria a ponte entre eles e o fazer teatral contemporâneo? Com tais questionamentos, em meio a tantos outros, busco compreender como os alunos se apropriam das referências que estão ao seu redor veiculados na mídia, através de vídeos, internet e incorporar as à suas produções e alterar o curso das práticas cênicas ali desenvolvidas.
Nessa experiência em questão a encenação foi concebida após estudos de cena e vivências, onde atmosferas temáticas foram propostas.
Foram organizados grupos que pesquisaram diversas fontes onde eram relatadas situações reais de conflitos, confinamentos e intolerância religiosa como documentários, filmes, imagens, arquivos oficiais e outros diários de guerra e isso tudo serviu de guia para esse universo e inspiração para as vivências. Essas vivências foram registradas em vídeo que depois de assistido foi criado um repertório.
Os atores se apropriaram das imagens pesquisadas na internet que remetiam o seu ponto de vista em relação às vivências e aos textos lidos.
A extensa pesquisa de imagens se tornou uma importante ferramenta de aproximação do ator com os relatos dos diários. Uma reflexão sobre os conflitos ali vividos e uma forte conexão entre os jovens e a cena contemporânea.

O processo de criação foi desenvolvido pelos próprios estudantes através de referências trazidas por eles mesmos em diálogo com aquelas trazidas por nós professores e foram criadas novas formas de relação, seja com a tecnologia ou com os processos de aprendizagem, apontaram novos arranjos para a construção do conhecimento.

Aprendi que através desse processo, que o professor deve posicionar-se não apenas como observador, mas como parte do grupo, sujeito às mesmas intempéries e às mesmas paixões que atingem os demais participantes, assumindo o risco de criar junto com seus alunos, garantindo o espaço para a experiência e não temendo os rumos inesperados que podem surgir das investigações.

Segundo Buckingham, 2010 encontramos um território fértil de aproximação com novas gerações no dialogo das práticas teatrais contemporâneas com as tecnologias da Imagem.

No olhar de Lehmann, 2007 dramaturgo e teórico da estética teatral e do
teatro contemporâneo, designado por ele como “teatro pós-dramático”,  somente “no curso da ampliação e em seguida da onipresença das mídias na vida cotidiana desde os anos 1970, entrou em cena um modo de discurso teatral novo e multiforme”.  Para Lehmann, as práticas cênicas desenvolvidas na segunda metade do século XX e, portanto, constituídas em paralelo às sensíveis transformações nos costumes e ao avanço da sociedade midiática, são experimentos radicais centrados na fragmentação das narrativas e na negação da ilusão do real, dentre outros fatores, que trazem novas exigências aos envolvidos na emissão e recepção dos signos e sinais que compõem o “tempo de vida comum” da representação teatral e aceitação de riscos.

Textos fragmentados, Sobreposições, repetições e deslocamentos.
Nessa encenação tivemos vários procedimentos da cena contemporânea em jogo. Os textos fragmentados foram extraídos do texto original (livro) e somados ou intercalados com os diários pessoais dos próprios atores de forma não linear. Sonoridades criavam a atmosfera de repressão e ao mesmo tempo de sonho. Algumas frases de efeito e as que resumiam sentimentos eram repetidas. Um ambiente de vozes e palavras que queriam falar e serem ouvidas.

Jogo coletivo, coralidades:
Não buscamos mais jogos que desenvolvam somente as capacidades individuais e sim as coletivas. Ensinamos no teatro que é através do outro que tudo se passa. Um encontro de personalidades formando um só caldo. Estamos interessados em formar cidadãos, espectadores alem de futuros atores/ atrizes.
Talvez possamos pensar a sala de aula como um laboratório, lugar de pesquisa e
experimentação, espaço onde a radicalidade da experiência está na presença do outro e, de acordo com Pupo, envolve “a valorização do trabalho coletivo – e dentro dele a capacidade de escuta, condição primeira da alteridade – o desenvolvimento da capacidade de jogo, o questionamento dos papéis habituais de ator e platéia e a ênfase na reflexão sobre o próprio processo de criação”.

“Se você atuar de forma que o outro se torne bom, você mesmo será bom” - Fomenko


O épico:
Através das contestações cênicas e dos questionamentos podemos nos distanciar, avaliar melhor e multiplicar as perspectivas. Criar múltiplos olhares sobre o mesmo tema.


ReferênciasBuckingham, David: Cultura Digital, Educação Midiática e o Lugar da Escolarização.
Revista Educação e Realidade. 2010
Canton, Kátia: Narrativas Enviesadas. 2009
Dayrell, Juarez (organizador):
Múltiplos Olhares Sobre Educação e Cultura. Editora UFMG. 2009
Desgranges, Flávio: A pedagogia do espectador.
Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. 2006
Lehmann, Hans-Thies: Teatro pós-dramático. 2007
Picon-Vallin, Béatrice: Teatro híbrido, Estilhaçado e múltiplo: Um enfoque pedagógico. Sala Preta 11, 2011
Pupo, Maria Lúcia de Souza Barros:
Entre o mediterrâneo e o Atlântico, uma aventura teatral. 2005
      

domingo, 29 de julho de 2012

VERBETE: Corpo - apresentação e representação / LAILA PADOVAN

Disciplina: Encenações em Jogo
Aluna: Laila Padovan

         CORPO: apresentação e representação

            “Um corpo, graças à sua simples força, e por seu ato, é poderoso o bastante para alterar mais profundamente a natureza das coisas do que jamais conseguiu o espírito em suas especulações e sonhos.” (VALÉRY, 2005)

            Pretendo abordar aqui como o corpo se apresenta e é encarado nas diversas manifestações do teatro performativo, indo ao encontro de uma noção de corpo do ator ligada à apresentação do corpo e não à representação do corpo. Enquanto no teatro dramático, o corpo representava estados, personagens e histórias, no teatro performativo, o corpo fica mais livre de representações e o que é ressaltado é a ação em si mesma. Abaixo, destaquei algumas passagens de Josette Feral que pudessem abordar esta questão:
    “Logo, quando Schechner menciona a importância da ´execução de uma ação´ na noção de ´performer´, ele, na realidade, não faz senão insistir neste ponto nevrálgico de toda performance cênica, do ´fazer´. É evidente que esse fazer está presente em toda forma teatral que se dá em cena. A diferença aqui – no teatro performativo – vem do fato de que este ´fazer´ se torna primordial e um dos aspectos fundamentais pressupostos na performance.” (FÉRAL, 2005)
“O ator aparece aí, antes de tudo, como um performer. Seu corpo, seu jogo, suas competências técnicas são colocadas na frente. O espectador entra e sai da narrativa, navegando segundo as imagens oferecidas ao seu olhar. O sentido aí não é redutivo. A narrativa incita a uma viagem no imaginário que o canto e a dança amplificam. Os arabescos do ator, a elasticidade do seu corpo, a sinuosidade das formas que solicitam o olhar do espectador em primeiro plano, estão no domínio do desempenho. O espectador, longe de buscar um sentido para a imagem, deixa-se levar por esta performatividade em ação. Ele performa.” (FÉRAL, 2005)
“No teatro performativo, o ator é chamado a fazer, a estar presente, a assumir os riscos e a mostrar o fazer, em outras palavras, a afirmar performatividade do processo. A atenção do espectador se coloca na execução do gesto, na criação da forma, na dissolução dos signos e em sua reconstrução permanente. Uma estética da presença se instaura.” (FÉRAL, 2005)
            Assim, todo o treinamento de corpo do ator-performer tem como foco a ação em si, procurando não representar mas apresentar. Neste sentido, deixa-se de tentar encontrar treinamentos que visem tornar o ator apto a representar diferentes emoções, histórias, estados e personagens e passa-se a treinar o performer a estar no aqui e agora, com suas próprias sensações e estados, sem representar estes estados, mas sim vivê-los integralmente. 
No intuito de ampliar estas noções de representação do corpo e de apresentação do corpo, encontrei em Merleau-Ponty considerações sobre o corpo que trazem para a discussão as principais diferenças entre vivenciar o próprio corpo e ter uma representação deste corpo. Para Merleau-Ponty, a tradicional separação entre mente e corpo faz com que o indivíduo se afaste da experiência do corpo próprio e acabe vivendo-o apenas como formas de representação de estados mentais. Ele chama a nossa atenção para a importância da vivência do corpo em si, em suas ações e movimentos, antes mesmos destes serem encaixados em significados.
   “Assim, a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo em idéia, e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade.” (MERLEAU-PONTY, 2011, p.269)
   “Merleau-Ponty ilumina a seu modo a noção do corpo como o ser próprio do homem, entendendo que o corpo fenomenal é o corpo próprio, ou seja, o corpo vivido, com o qual percebemos o mundo de modo originário, não conceitual. Neste sentido, compreende o corpo como sujeito da percepção e, através da afirmação ´sou meu corpo´ permite que se compreenda a subjetividade como corporeidade.” (CASANOVA DOS REIS, 2010, p.38)
   “É pelo corpo que tomamos contato com a realidade extensa, isto é, com os demais corpos com os quais interagimos. A alma, idéia do corpo, não é um reflexo do corpo, mas a consciência do corpo e de sua inteligibilidade, bem como a de outros corpos... Espinosa foge de uma explicaãó do tipo mecanicista: o corpo não é causa das idéias, nem as idéias são as causas dos movimentos do corpo. Alma e corpo exprimem no seu modo o mesmo evento.” (CHAUÍ, 2000, p.16)

Para ilustrar essas questões, faço breves referências a diferentes maneiras de trabalhar este corpo dentro de Bob Wilson, Pina Bausch, Zé Celso e La Fura Del Baus. De forma alguma tenho a pretensão de abordar com profundidade a noção de corpo de cada um deles pois isso seria tema para teses inteiras, mas arrisco-me a elencar alguns exemplos apenas para ilustrar o tema aqui exposto.
1) Sobre o trabalho corporal desenvolvido por Bob Wilson:
“A maior parte dos exercícios descritos neste capítulo são exemplos das várias técnicas concebidas para diminuir o fosso entre a mente e o corpo, sobretudo através da observação e da compreensão de seus ritmos próprios.” (GALIZIA, 2005, p.99)
“todo mundo deve fazer seus próprios movimentos, andando ou dançando, geralmente sem parceiros, sem passos ou instruções (ao que parece, o conceito de Wilson era o de que, subconscientemente, o participante sentiria e se adaptaria ao movimento dos demais). As instruções, esparsas, sugeriam que cada um deveria obedecer aos impulsos de seu corpo e tentar tomar consciência de que movimentos gostaria de realizar em cada momento. O recém-chegado surpreende-se ao descobrir que seu corpo tem tais desejos, isto é, impulso de relacionar-se com o espaço de determinada maneira, criar um espaço próprio, concretizar o tempo e individualizá-lo de acordo consigo. Até certo ponto a pessoa se acha capaz de movimentar-se livremente, sem um propósito, consciente das necessidades que tem o corpo de movimentar-se, obedecendo facilmente a seus impulsos cinéticos.” (Sthephan Brecht, The Theatre of Visions, p.205, In. GALIZIA, 2005)
2) Na obra de Pina Bausch:
   “A dança é radicalmente caracterizada por aquilo que se aplica ao teatro pós-dramático em geral, ela não formula sentido, mas articula energia, não representa uma ilustração, mas uma ação. Tudo nela é gesto... A realidade própria das tensões corporais, livre de sentido, toma o lugar da tensão dramática. O corpo parece desencadear energias até então desconhecidas e secretas.” (LEHMANN, 2007)
   “... processo pelo qual o dançarino se torna a própria dança, ou seja, ele não representa um sentido, mas é o sentido mesmo da própria existência, vívido sentido vivido.” (CASANOVA DOS REIS, 2010, p. 27)
3) Na obra de Zé Celso:
   “A percepção erótica não é um cogitatio que visa um cogitatum; através de um corpo, ele visa um outro corpo, ela se faz no mundo e não em uma consciência.” (MERLEAU-PONTY, 2011)
4) Na obra de La Fura dels Baus:
“La Fura centra toda a ação e movimentação nos corpos dos atuantes e também dos espectadores, todos os e todas as participantes na construção e vivências corporais que significam a própria obra. Maurice Merleau-Ponty nos lembra que ´espaço corporal e espaço externo formam um sistema prático´. Esse corpo que é o mundo e as margens da realidade encontra outros corpos, mundos e realidades dentro das comunidades formadas pela linguagem furera. A percepção do espaço corporal em uma área dividida tem uma relação direta, tanto com o próprio corpo de um quanto com os outros espaços corporais. Sendo assim, a linguagem furera promove uma aceleração física e sensorial de todos os envolvidos, em um encontro – ou choque – universal de sistemas práticos distintos, questionando definições de identidade e alteridade ou diferenciações definitivas de igual e outro, dependendo das ações cênicas de cada momento.” (Fernando Pinheiro Villar, O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus. In O Pós-dramático. Um conceito operativo? De J. Guinsburg e Sílvia Fernandes, orgs.)


            Referências Bibliográficas:
ABAD, Mercedes, La Fura dels Baus, 1979-2004. Barcelona, Electa, 2004.
CALDEIRA, Solange Pimentel. O Lamento da Imperatriz: a linguagem em trânsito e o espaço urbano em Pina Bausch. São Paulo. Annablume, 2009.
CASANOVA DOS REIS, Alice. Há experiência estética na Biodança? Um estudo fenomenológico sobre a experiência do corpo em um grupo de Biodança. Tese (doutorado) – USP, 2010
DUFRENNE, M. Estética e Filosofia. São Paulo. Perspectiva, 2008.
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Tradução: Lígia Borges. Revisão de tradução: Cícero Alberto de Andrade Oliveira, 2005.
GALIZIA, Luiz Roberto. Os processos criativos de Robert Wilson. São Paulo, Editora Perspectiva, 2005.
KATZ, Helena. Pina Bausch coreógrafa. Jornal da Tarde. São Paulo, 15 de dezembro de 2000.
LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós-dramático. São Paulo, Cosac&Naify, 2007.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo. Martins Fontes, 2011.
VALÉRY, P. A alma e a dança e outros diálogos. (M. Coelho, trad.). Rio de Janeiro, Imago, 2005.
VILLAR, Fernando Pinheiro. O pós-dramático em cena: La Fura dels Baus. In: Guinsburg, J. e Fernandes, Sílvia, orgs. O Pós-Dramático. Um conceito Operativo?




sábado, 28 de julho de 2012


Adão Freire Monteiro
Encenações em Jogo: experimentos de criação e aprendizagem do teatro contemporâneo
Prof. Dr. Marcos Aurélio Bulhões Martins

Verbete – DRAMA





DRAMA - Tá tudo solto por aí
Tá tudo assim, tá tudo assim. Quem quer morrer de amor se engana
Momentos são momentos,
drama...



Drama do grego δράω – Ação. Ação mimética, representação de comportamentos humanos. “O que faz com que o drama seja drama é precisamente o elemento que reside fora e além das palavras, que tem de ser visto como ação – ou representado – para que os conceitos do autor alcancem sua plenitude”[1]. O drama é uma representação concreta que se desenrola ao tempo que nos passa, pelas ações dos personagens, vários estados  de emoção. Aí mora o perigo!? São tantas emoções...e são nossas também, daí rola aquela identificação e já estamos lá, em cena, representados, identificados, e ora defendidos, ora hostilisados.


Diderot sec. XVIII – Drama em contraste aos clássicos: tragédias, comédias, farsa de costumes. Drama como intermediário de tragédia e comédia.


Peter Szondi – O drama já está no século XVI – nas peças de Racine, onde se concentra a ação no herói, se individualiza o ser.


Quando uma forma começa a se privatizar, absolutizar, começa a ser dramática, ou seja, subjetivar. O drama é um conceito formal, precisa ter uma ideia de livre arbitrio nos personagens, a decisão é o núcleo. A ação nasce do campo íntimo, desejante. Pressupõe uma ideia de poder do indivíduo. Enquanto nas tragédias o que move é o dever, no drama o que move é o querer. Ex. AntígonaAntígona tem o dever religioso de enterrar o o irmão morto, isso é uma honra aos deuses, obedece a uma ordem coletiva. A justiça transcendee o tempo das pessoas, do indivíduo. O caráter de Antígona não move a ação. A forma dramática surge como uma necessidade de responsabizar o indivíduo.


É histórico: DRAMA – BURGUESIA –AUTONOMIA DO SUJEITO – MERCADO. O que era público vai se privatizando.


Sem platéia não existe drama. Uma peça que não é encenada é apenas literatura. O drama compele ao espectador a decifrar o que vê no palco exatamente do mesmo modo pelo qual busca encontrar o sentido ou a interpretação para qualquer acontecimento que encontre em sua vida particular. Ele vê e ouve o que o fantasma diz a Hamlet, tem de decidir se o fantasma é autêntico ou apenas um mau espírito enviado para tentar Hamlet para o pecado.


O Drama ao contrário da poesia Épica, é um eterno presente. Daí ser um ritualistico. O ritual abole o tempo por colocar sua congreção em contato com eventos e conceitos que são etrnos e, portanto, infinitamente repetíveis.


O Drama expandiu-se em drama falado, balé, ópera, comédia musical tragédia, comédia, tragicomédia, farsa, drama radiofônico, cinema. E a cerimônia ritualistica continua...posses de presidentes, desfiles, jogos olímpicos...


Os “Pós” e os Contras


O drama está imbricado no teatro, portanto falar em pós-dramático ou pré-dramático, não seria também falar em pós-teatro ou pré-teatro? .“Totalidade, ilusão e representação do mundo estão na base do modelo ‘drama[2]’”, para citar um pós-dramático, Lehmann. Assim como na pré-história havia história, no “pós-dramático” há o drama.


A constituição do teatro: pessoas, espaço e tempo, encontra-se explodida. Mas nosso parâmetro é sempre humano. Não há drama em coisas, pois não há conflito, história a priori e a posteriori. “… Sem o indivíduo não há teatro[3]”. As representações modernas tentam colocar em cena o aqui e agora, o acontecimento, mas esse acontecimento está numa trajetória histórica e seus atores em si são conflituosos no sentido de nos remeter a um antes e depois. Transcrevo aqui a noção de drama como sendo uma forma privilegiada de comentar a natureza humana, pelo que por ele o homem se engrandece ao adquirir uma consciência mais lúcida (Pierre Aimé Touchard, Le théâtre et l’angoisse des hommes, 1968), ao identificar um pronunciamento a respeito das relações entre os homens (Ronald Peacock, The Art of Drama, 1957) ou ao reconhecer nele aspectos fulcrais definidores de uma determinada cultura (Francis Fergusson, The Idea of a Theater, 1949).[4]           


Szondi nos faz ver que superar o “drama” é superar uma elaboração histórica. Suas exigências técnicas são exigências existenciais e seu modo de ser traduz um precipitado da vida social de uma época. Para o crítico que examina os textos do passado, na percepção desses movimentos históricos, interessa estudar os pontos em que os “enunciados da forma” entrem em contradição com os “enunciados do conteúdo”.


Os novos conteúdos exigem novas formas. Creio que o teatro é em si uma forma de abarcar, a seu modo, conteúdos. E é uma forma dramática. Portanto, a partir desse ângulo, fica inócuo se discutir essa superação da forma dentro da própria forma.


 Mas a vida está aí e - Tá tudo solto por aí
Tá tudo assim, tá tudo assim. Quem quer morrer de amor se engana
Momentos são momentos, drama...



[1] Marrtin Esslin. Uma Anatomia do Drama. Zahar Editores. Pg. 16.
[2] Lehmann, Hans – Thies. Teatro Pós – Dramático. São Paulo Cosac Naify 2007, pg.26.
[3] Bornhein, Gerd Alberto, Brecht: A Estética do Teatro, Graal 1992, pg. 232.
[4] Wikipédia, a enciclopédia livre. Drama.

quarta-feira, 25 de julho de 2012


São Paulo, 25 de julho de 2012.
Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo.
Disciplina: Encenações em Jogo: Experimentos de Criação e Aprendizagem do Teatro Contemporâneo
Docente Responsável: Marcos Aurélio Bulhões Martins
Aluna: Laís Marques Silva / Nº USP 3455577

Verbete: Performatividade[1]
O termo performatividade se refere aos modos como uma determinada ação, gesto ou comportamento é executado pelo performer. As questões envolvidas estão diretamente relacionadas aos Estudos da Performance. 
O filósofo J. L. Austin foi o primeiro a se referir ao termo na obra How to do things with words (1955), quando discorre sobre os usos da linguagem. Segundo o autor, algumas expressões escritas ou faladas também se constituem como atos, ainda que não sejam efetivamente realizados. Alguns exemplos podem ser percebidos em declarações, contratos, promessas, etc, quando estas são referencias de possíveis atos: “eu prometo que...”, o “sim” num casamento, etc.
Num segundo momento, J. R. Searle explorou os speech acts, quando as frases implicam num comprometimento dos indivíduos resultando numa moldura performativa. São exemplos vistos em ritos de uma sociedade, como nos batismos, que constituem a formatação de uma identidade do indivíduo.
No caso do teatro, ambos os autores entendem que a  representação dos atores também está comprometida com uma divisão entre o real e o ficcional, o que se denominaria performativo, enquanto aquilo que se projeta potencialmente real ou mesmo ficção, sendo assim, falsos ou não-verdadeiros.
Já Paul de Man acredita que o performativo ressalta sobretudo a separação entre o gesto e a atuação, sublinhando a deslinkage entre ambos. Assim, é possível perceber certo caráter falso ou postiço no desempenho, um “estranhamento  entre o significado e a performance de qualquer texto”; podendo chegar, em alguns casos, à aberração.  Tal é a perspectiva adotada por vários performers,  quando desejam provocar uma crítica no espectador ou uma sensação de desconforto.
A estudiosa Judith Butler afirma que os atos performativos podem ser reconhecidos tant na construção de gênero quanto de raça, pois são processos que envolvem uma contínua interação entre o indivíduo e a cultura. Nesse caso, o performativo ocorre na dinâmica entre os comportamentos aprendidos e ensinados.

Austin, entretanto, ressalta o uso “não sério” do performativo, no caso de contextos representacionais, quando se vê o sentido parasitário/estiolado da própria linguagem. Essa é a via que Derrida vai desenvolver, considerando aqui a perversão da linguagem quando a mesma passa a evidenciar sua teatralidade. Alguns cognatos apresentados são:

-       estiolar – impedir ou alterar o desenvolvimento natural (de uma planta) excluindo a luz solar; tornar pálido ou doentio;  roubar o vigor natural; prevenir ou inibir o completo processo de crescimento físico, emocional e mental de um indivíduo;
-       estiolado – que cresceu com ausência de luz solar; que empalideceu; sem exuberância ou vigor;
-   etiologia – ciência ou doutrina das causas ou das demonstrações das    causas; todos os fatores que contribuem para a ocorrência da doença ou condição anormal de um organismo.    

Asism, são três aplicações distintas referentes à performatividade:

-       modo de executar a ação
-       modo de estranhar a ação
       -     modo de estiolar (debilitar/imitar/citar/perverter)  a ação

A performance abre o flanco, desse modo, para a emergência tanto da performatividade quanto da teatralidade, dois modos liminares de articulação do ato, do gesto e da conduta.
Do ponto de vista estritamente cênico, a performance ressalta o como dos procedimentos artísticos: a citação, o estranhamento,  a fraqueza enfática, a ambiguidade expressiva, a falta de limite, de fronteira, de construção – bem como todos os procedimentos que tendem para o exagero: a grandiloquência, a extravazão, o melodramático, o pornográfico, o gritado, o sublinhado etc etc. Todas eles modos de desnaturalização da linguagem, de subversão da mimese e suas convenções de apresentação.  






[1] As informações foram colhidas com base na disciplina “Dialogismo, Performance e Performatividade - Liminaridade na Cena Contemporânea”. Professores responsáveis: Edelcio Mostaço e Silvia Fernandes da Silva Telesi. PPGAC- ECA/USP, out/nov de 2011.

segunda-feira, 23 de julho de 2012


PERFORMANCE
Por Biagio Pecorelli
“A estratégia da performance é resistir a definições.”[1]

Eleonora Fabião


Desde meados do século XX, a performance tem se constituído como um campo transdisciplinar refletido pela antropologia, pela psicologia, pela sociologia, pela linguística, pelos estudos de folclore, de  raça, de gênero, além de ter atravessado ao longo das últimas décadas o amplo espectro das artes (o teatro, o cinema, o vídeo, a dança, as artes plásticas, a literatura)[2] e ainda se firmado, a partir dos anos 70, como uma linguagem artística autônoma, bastante diversificada. Segundo o antropólogo e pesquisador da USP John C. Dawsey,

Há algo de não resolvido nesse conceito que resiste às tentativas de definições conclusivas ou delimitações disciplinares. Aquém ou além de uma disciplina, ou até mesmo de um campo interdisciplinar, os estudos de performance se configuram como uma espécie de antidisciplina.[3]

O teórico norte-americano Marvin Carlson lembra que performance é um conceito essencialmente contraditório, sendo capaz de abrigar fenômenos totalmente díspares e competitivos[4]. Ele levanta duas noções correntes de performance. Na primeira delas, o termo designa a demonstração de habilidades específicas empreendida por esse sujeito que é o performer, quase sempre marcadas por algum tipo de virtuosismo. É o caso do engolidor de facas, dos acrobatas, dos artistas de rua em geral, dos mágicos, dos próprios atores, músicos no palco e de quem quer que se coloque a prova diante de uma audiência. Na segunda acepção elencada por Carlson, a performance é tomada de modo mais abrangente como um “comportamento restaurado” - noção advinda dos chamados estudos da performance (Performance Studies) encabeçados pelo diretor teatral e professor da New York University (NYU) Richard Schechner. Nesta perspectiva, toda e qualquer ação humana – e não apenas demonstrações públicas de habilidades - onde se guarda “uma certa distância entre o self e o comportamento”[5] é performance. O professor dando aula, o padre celebrando uma missa, o garçom servindo um café, o automobilista pilotando seu carro, o xamã empreendendo uma cura (e seus respectivos papéis complementares: o aluno prestando atenção, o fiel recebendo o sermão, o cliente esperando seu café, etc), todos estes estão, no instante da ação, empreendendo uma performance. Agem mais ou menos de acordo com o que determinado papel social lhes prescreve, quer dizer, restauram no presente aqueles comportamentos modelares de professor, aluno, padre, fiel, garçom, cliente, automobilista, etc. A performance, à luz dos Performance Studies, compreende um campo em constante expansão, no qual a chamada arte da performance ocupa apenas uma pequena parcela.

Etimologicamente, o termo performance deriva do francês antigo, parfournir, que significa “completar”, “realizar inteiramente”[6], definição limitada se pensarmos na aplicação do termo ao contexto da arte atual, onde tem sido usado para designar obras/espetáculos processuais, inacabados ou participativos. Mesmo nesse âmbito - e mesmo hoje, passados mais de 50 anos das primeiras expressões artísticas “performáticas” - a performance ainda se apresenta como um campo aberto, mandálico, em permanente mutação, o que dificulta, ou mesmo impossibilita, a construção de um discurso sólido sobre ela. Segundo RoseLee Goldberg,

a performance pode ser uma série de gestos íntimos ou uma manifestação teatral com elementos visuais em grande escala, e pode durar de alguns minutos a muitas horas; pode ser apresentada uma única vez ou repetida várias vezes, com ou sem um roteiro preparado; pode ser improvisada ou ensaiada ao longo de meses.[7]

Alguns, como Goldberg, remontam a história da performance às vanguardas artísticas do começo do século XX (Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo, Construtivismo Russo, a Bauhaus). É que tais movimentos já traziam em suas obras e manifestos muito daquilo que seria desenvolvido como performance no pós-guerra, sobretudo, um interesse radical em abolir a aura da obra de arte e os parâmetros de sua apreciação estética. Outros afirmariam que a performance nasceu bem antes disso, com  o homem primitivo, sendo tão antiga quanto o rito. Nesse particular, Antonin Artaud - uma das figuras mais reveladoras para o teatro no século XX - termina por ser um dos mais importantes antecessores do campo da performance, ao reclamar para o corpo do ator suas pulsões mais primitivas e cruéis[8], e propor um retorno do teatro às suas origens rituais.

De qualquer modo, enquanto gênero artístico, tal como a conhecemos hoje, a performance desponta mesmo em fins dos anos 50 - ainda sem essa denominação - como um território híbrido e fronteiriço. Era praticada por artistas que vinham de diversas modalidades (poesia, música, teatro, dança, pintura, escultura), que passaram a utilizar ao longo das décadas seguintes suas próprias vidas como matéria e seus corpos como mídia das mais diversas experimentações e contestações[9]. No bojo da contracultura, realizavam experiências que envolviam dor, risco físico, automutilação, modificação corporal (tendência que ficaria conhecida como body art); provocavam moralmente o público; levantavam questões existenciais e políticas relacionadas a gênero, raça, sexualidade, nacionalidade; protestavam; forçavam os limites entre os campos artísticos instituídos; questionavam o mercado de arte e as instituições artísticas; problematizavam as noções de Bom e Belo e todas as convenções estéticas forjadas pelo ideário moderno, não raro, recuperando ritos e manifestações primitivas; apagavam as fronteiras entre arte e vida, etc. Em meio a isso, o que se convencionou chamar de performance art parece ser (ainda hoje) apenas uma tendência específica marcada pela influência da arte conceitual e do minimalismo, e que difere bastante de uma vasta porção de espetáculos multimídia[10] do mesmo período, não menos performáticos, ligados (mesmo em ruptura) às convenções do teatro, da música e da dança, numa radical transformação da ideia wagneriana de “Obra de Arte Total” (Gesamtkunstwerk)[11].

Num sentido amplo, a performance esteve associada em suas origens a um movimento maior de contestação filosófica e política do capitalismo e do paradigma racionalista da modernidade, cujo projeto aquela geração de artistas viu resultar em duas grandes guerras e no perigo eminente de destruição total da vida. Hoje, a performance tem se tornado ainda mais híbrida enquanto linguagem, fazendo uso das novas tecnologias, adentrando novos territórios não-artísticos, testando espaços cada vez mais inusitados e questionando sua própria história. Para Eleonora Fabião,

...a performance, por sua natureza de difícil comercialização e seu caráter marginal (margens: habita um espaço relativo entre as artes – plásticas, cênicas e fílmicas – e, entre arte e não-arte), muitas vezes abjeto (corpos desarticulados, levados a condições psicofísicas extremas, brutalidade poética) e socialmente discrepante (formas sexuais múltiplas, humor fino e grotesco, práticas existenciais e corporais [12]excêntricas e irônicas) define-se como forma de resistência, como força contestatória, como prática política. A performance gera e apresenta corpos e situações em que a normatividade ocidental contemporânea – marcadamente consumista, mecanicista, logocêntrica, racista, homofóbica, descorporalizada – é pensada.[13]


Notas:


[1] Entrevista concedida ao Caderno 3, do Diário do Nordeste. Data 09-07-2009. Disponível em: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=652907

[2] Érika Fischer-Lichte chama atenção para uma virada performativa (“performavive turn”) que abrange todas as linguagens artísticas a partir de meados do século passado, redefinindo radicalmente o papel de seus interlocutores. FISCHER-LICHTE, Erika. The Transformative Power of Performance: a new aesthetics. New York: Routledge, 2008.
  
[3] DAWSEY, John C. Sismologia da performance: Ritual, drama e play na teoria antropológica. In: Revista de Antropologia. São Paulo: ed. USP, 2007, v. 50, nº 2, p. 530 e 531.

[4] A rigor, Carlson diz tomar emprestada a afirmação de Mary Strine, Beverly Long e Mary Hopkins de que a performance é “um conceito essencialmente contestado”. CARLSON, Marvin A. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2009, p. 11.
[5] Ibidem., p. 14.

[6] DAWSEY, John C, op. cit., p.  532.

[7] GOLDBERG, Roselee. A Arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 8.

[8] Segundo Ricardo Cezar Cardoso, a despeito das abordagens vulgares que o termo possa ter, associado às ideias de perversão e violência extrema, “crueldade” em Artaud significa “antes de tudo, a desmistificação da representação como única forma válida para o pensamento.” CARDOZO, Ricardo Cezar. Antonin Artaud: por uma metafísica do cruel. Dissertação de Mestrado. UERJ: 2006. Disponível em: http://www.empiricae.com.br/artigos/a_guisa_de_introducao.pdf

[9] Dentre inúmeros nomes, destacam-se Jackson Pollock; Robert Rauschenberg; John Cage; Merce Cunningham; Grupo Gutai; Ives Klein; Piero Manzoni; Joseph Beuys; Vito Acconci; Chris Burden; Marina Abramovic; Grupo Fluxos; Günter Brus, Otto Mühl, Hermann Nitsch e Rudolf Schwarzkogler (grupo que ficou conhecido como Viennese Actionism); Claes Oldenburg; Orlan; Gilbert & George; Living Theatre;Yoko Ono; Bruce Nauman; Gina Pane; Bas Jan Ader; Ana Mendieta; Guillermo Gomez-Peña; Regina Galindo; Frank B; Ron Athey. No Brasil, Roberto Aguillar, Paulo Bruscky, Letícia Parente, Paulo Herkenhoff, Geraldo Anhaia Mello, Antônio Manuel, Guto Lacaz, Otavio Donasci, Lucio Agra, Renato Cohen, Maria Beatriz Medeiros e o Corpos Informáticos, Grupo Empreza, Brigida Baltar, Lia Chaia, Guilherme Peters, Artur Matuck, Paula Garcia, Marco Paulo Rolla, Maurício Ianês, Shima, Berna Reale. Além destes, deixaram para a performance brasileira importantes contribuições Oswald de Andrade, Flávio de Carvalho, Lygia Clark e Helio Oiticica.

[10] Robert Wilson, La Fura dels Baus, Pina Bausch, Richard Schechner, Richard Foreman e o Ontological-Hysteric Theater, Robert Lepage, Jan Fabre, Romeo Castellucci e a Societas Raffaello Sanzio, e boa parte daquilo que Hans-Thies Lehmann tem chamado de Teatro Pós-dramático (LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007). No Brasil, o Teat(r)o Oficina, sob direção de José Celso Martinez Corrêa, e o Teatro da Vertigem podem ser considerados, sob diversos aspectos, performativos.

[11] Segundo Cohen, a performance é muitas vezes uma espécie de Anti-Gestamsuntwerk, pois seu sentido de totalidade é fragmentário, desarmônico, regido por justaposições, tendo a collage como estrutura. COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2002.

[13] Entrevista com Eleonora Fabião in Relâche: Revista eletrônica da Casa Hoffmann – Centro de Estudos do Movimento. Por Cristiane Bouger. Curitiba: 2004.



A sérvia Marina Abramovic é hoje uma das artistas de performance mais populares do mundo. (Rhytm 0, 1974)

O artista baiano Jayme Fygura é conhecido pelo uso constante de armaduras e por não mostrar o rosto há mais de três décadas.

A body modification é hoje uma tendência estética mundial, nascida da performance, particularmente, da chamada body art. Nesse contexto, a prática da suspensão corporal (suspension) através de ganchos que atravessam a pele, quase sempre, não tem nenhuma relação com o sistema artístico instituído, sendo tratada como entretenimento ou mesmo prática meditativa.


Cena do espetáculo "Macumba Antropófaga", do Tea(r)o Oficina. São Paulo, 2012. Foto: Claire Jean.

Regina José Galindo é uma artista guatemalteca que tem se destacado com performances que radicalizam na reflexão sobre a violência contra as minorias em seu país. Limpieza social, 2006. Foto: Hugo Muñoz.
O brasileiro Flávio de Carvalho realizou já nos anos 30 performances em espaços urbanos, sendo no entanto totalmente ignorado por certa história mundial da performance, de viés europeu e norte-americano. Na foto, o artista vestindo seu "traje tropical", no Experimento Nº 3, de 1956.

O experimento relacional Ânima, realizado em São Paulo, em julho de 2012, é um exemplo atual da performance como campo expandido e linguagem híbrida, que mescla dança, teatro, video e performance art. Direção: Marcos Bulhões. Foto: Eduardo Bernardino.