segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Anexações do real à cena - Paola Lopes Zamariola



O mundo está cheio de objetos, mais ou menos interessantes;
não desejo adicionar-lhe mais nenhum.
    Prefiro, simplesmente, declarar a existência de coisas em termos de tempo e espaço.
Douglas Huebler

(Los Santos Inocentes,  Mapa Teatro)     

Este verbete deseja refletir sobre o tema do real no teatro contemporâneo não desvinculando-o ou opondo-lhe a ideia de ficção que está intrínseca às camadas de representação que os processos artísticos evocam. O conceito de 'Anexações do real' procura indagar-se sobre as possibilidades em que o real/documental pode também encontrar-se embebido do campo ficcional.

É sobre a necessidade de uma zona híbrida entre o real e o ficcional que a noção de teatralidade assume um relevante teor para crítica dedicada à análise de pesquisas ligadas ao campo das artes cênicas. Silvia Fernandes, no livro “Teatralidades Contemporâneas” (2010) retoma os estudos de Patrice Pavis para sustentar que:
Para um espectador aberto às experiências da cena contemporânea a teatralidade pode ser, por exemplo, uma maneira de atenuar o real para torná-lo estético e erótico; ou o modo de sublinhar esse real em seu traço obsessivo e repetitivo, que se aplica como terapia de choque para reconhecer o real e compreender o político; ou o embate de regimes ficcionais distintos, mas igualmente potentes, que impede a cena de estabelecer uma enunciação estável, construída a partir de um único ponto de vista, e abre múltiplos focos de olhar em disputa pela primazia de observação do mundo.” (FERNANDES, 2010: p. 115)

(Marketing/Hamlet/Set, LOT)


Para pensar os possíveis procedimentos de anexações do real à cena busca-se melhor compreender os escritos da pesquisadora francesa Maryvonne Saisson no seu livro “Les théâtres du réel – Pratiques de la represéntatiton dans le théâtre contemporain”. Nele a autora estabelece 3 eixos que colaboram para a ampliação da temática em questão:

-Realidade revistada
-Morte da realidade e a busca do real
-Teatros do Real

Realidade Revisitada
Ao refletir sobre a singularidade do fazer teatral Saisson destaca sua efemeridade ontológica e com isso questiona o que seria específico na representação teatral. Se representar é a concretização de um pensamento na música, pintura, escultura, cinemas e artes afins, e prescinde de uma referência, no teatro a representação só é possível se ela acontecer em ato.
Com isso poderia-se substituir a ideia de representação por apresentação, que envolve a presença em si de seus agentes e seus receptores, e desta forma já se aproxima dos termos real e realidade tal é a presença evocada pelo teatro.
Essa peculiaridade de reativar o acontecimento artístico e não somente reproduzí-lo é encarado por Saisson como a dimensão política em si do teatro. O fato do teatro acontecer apenas no encontro com o público, para e por ele, traz no seu bojo o político.
O teatro contemporâneo reivindica temas ligados à política não apenas no seu conteúdo, mas, e principalmente, na sua forma. O político aqui se inscreve diretamente na apresentação do real. Real este que se abre para a reflexão do mundo contemporâneo e para a indagação sobre a própria linguagem.
(A Última Palavra é a Penúltima,
Teatro da Vertigem/Zikzira/LOT)

Morte da realidade e a busca do real
As ideias apresentadas por Maryvonne Saisson compartilham pontos de origem comuns aos trabalhados nos estudos de Michel Foucault, no texto “Outros Espaços”, datado de 1967, no qual aponta a sua época como a época do espaço. E tal afirmação ainda encontra argumentos para ser defendida na atualidade por outros filósofos contemporâneos que continuam a debruçar-se sobre o tema uma vez que mundo continua a experimentar-se e a desenvolver-se a partir da noção de rede.
Foucault estabelece que são as relações de vizinhança entre pontos ou elementos que contribuem para que a ênfase no espaço seja predominante nas relações dos homens do século XX, principalmente o saber sobre as relações que revelam tipos de estocagem, circulação, localização, e que evidenciam, sobretudo, relações de posicionamento.

A partir da ideia de posicionamento, Foucault traz à tona a noção fundamental de não desconsiderar o valor específico de cada lugar, uma vez que não se vive em um espaço vazio e homogêneo, ao contrário, cada espaço está carregado de qualidades peculiares. Nessa análise não é possível desconsiderar o entrecruzamento entre tempo e espaço.
É a partir da intersecção entre as relações de tempo e espaço que Foucault defende a ideia de heterotopia em oposição a de utopia:

Há, inicialmente, as utopias. As utopias são os posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm como espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade, mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais. Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam afetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, heterotopias.” (FOUCAULT, 2006: p.414-415)


A heterotopia teria a capacidade de produzir lugares fora de todos os lugares, à moda da experiência mista do espelho, onde ocorre a hibridização do mítico e do real dentro do mesmo espaço. Elas têm a capacidade de inquietar o homem, pois aparecem como que deslocadas e desencaixadas em relação aos demais lugares habitados As heterotopias têm, em relação ao espaço restante, uma função de desestabilização. 


                 (Ciudades Paralelas, Lola Arias e Stefan Kaegi)

As obras da site-specific art, instauradas em via pública ou privada, expandem os valores da criação artística mais convencional, fazendo com que outros valores, tais quais, a percepção fenomenológica (sensorial), elementos histórico-simbólicos e políticos do seu lócus de ação, sejam evidenciados pela ação artística. Miwon Kwon em One place after another: notes on site specificity (1997) dedica-se à investigação da site-specific art, na qual justamente aprofunda a reflexão sobre a concepção do lugar, que para os procedimentos de criação se dão não somente em termos físicos, mas como composição de estrutura complexa que compõem o bojo estruturante da ação artística.

Neste contexto as práticas de site-specific art devem ser entendidas como práticas específicas para um contexto, a fim de desconstruir a ideia do lugar como suporte neutro para a obra e poder o ativá-lo como parte integrante do trabalho, onde a escolha do lugar é a escolha de uma localidade e de uma temática de interesse do criador a ser trabalhado:

ser específico em relação a esse lugar (site), portanto, é decodificar e/ou recodificar as convenções institucionais de forma a expor suas operações ocultas mesmo que apoiadas é revelar as maneiras pelas quais as instituições moldam o significado da arte para modular o seu valor econômico e cultural, e boicotar a falácia da arte.” (KWON, 2000: p.11)


Teatros do Real
O entendimento do presente como fio condutor que entrelaça a experiência do tempo e do espaço abre a perspectiva para o debate acerca de como a participação ativa do espectador no entorno dos projetos artísticos que formulam um novo modo de fruição. O espectador é estimulado a participar física e criativamente desse processo como elemento ativador da obra.

É possível refletir sobre a ideia de 'Teatros do Real' a partir de alguns aspectos abordados por Paul Zumthor, em seu livro “Performance, recepção, leitura” (2006), no qual o autor destrincha a noção de teatralidade modo a evidenciar que:

Num lugar público (o artigo diz: no metrô) alguém fuma; um outro o agride, arranca seu cigarro ou comete uma outra ação violenta. Para a multidão que enche o vagão trata-se de um acontecimento. Mas alguém desta multidão sabe que isso é simplesmente um jogo, montado por uma associação antitabagística. Há então teatralidade? Para a multidão não. Mas para o espectador a par do plano, sim. A teatralidade neste caso parece ter surgido do espectador, desde que ele foi informado da intenção de teatro em sua direção. Este saber modificou seu olhar, forçando-o a ver o espetacular lá onde só havia até então o acontecimento. Ele transformou em ficção aquilo que parecia ressaltar do cotidiano, ele semiotizou o espaço, deslocou os signos que ele então pode ler diferentemente... A teatralidade aparece aqui como estando do lado do performer e de sua intenção firmada de teatro mas uma intenção cujo segredo o espectador deve partilhar.” (ZUMTHOR, 2007: p.40-41)


Podemos refletir que a condição necessária à emergência de uma teatralidade é a identificação, pelo espectador, de um outro espaço; a percepção de uma alteridade espacial. O que implica alguma ruptura com o real ambiente, e é sobre este ponto de vista

É fundamental reforçar que tais aspectos convocados pela teatralidade estão presentes nas mais diversas vertentes da arte contemporânea. É a partir dessa ideia de fissura do real apresentada por Zumthor que os códigos de linguagens a priori díspares encontram ecos e modos híbridos de criação e de fruição na produção contemporânea em arte, sobretudo, a partir do ponto de vista do espectador e suas relações com o real ou efeitos do real evocados pelas produções artísticas.

Por fim, ao constatar aspectos performativos e de teatralidade a partir da análise das matérias e dos espaços presentes em diversos movimentos e na poética de artistas representantes das várias linguagens na arte moderna e contemporânea, se evidencia a tensão entre as matérias e os espaços do cotidiano e as matérias e os espaços artísticos que revelam e convocam o campo artístico à sua continua reformulação. 




             (X-Moradias, Ieltxu Martinez Ortueta )







domingo, 5 de agosto de 2012

O papel do espectador no teatro contemporâneo Ana Flávia Chrispiniano

                         



"A relação do espectador com o teatro está intimamente relacionada com a maneira, própria a cada época, de ver-sentir-pensar o mundo.”, como afirma Flávio Desgranges.           


Desta forma, para refletir sobre o papel do espectador no teatro contemporâneo, parece fundamental trazer à tona alguns aspectos da sociedade atual e diferentes modos de participação propostos ao espectador ao longo da história do teatro que, potencialmente, exercem influência sobre a recepção teatral em nossos dias.
No drama burguês, o espectador era convidado a se identificar com o protagonista e embarcar no fluxo de uma ação dramática contínua, de acontecimentos encadeados logicamente entre si, como se observasse aqueles momentos através de um buraco de fechadura.A encenação contribuía para que estes efeitos se processassem, buscando manter ao máximo a ilusão de realidade daquele universo representado no palco.
Estas opções se relacionam com os ideais burgueses como, por exemplo, a valorização dos interesses privados.  E diante do surgimento da necessidade de tratar de questões sociais, coletivas, esta forma dramática fechada começa a entrar em crise. Os novos assuntos exigem uma nova forma e, assim, surge a necessidade de extrapolar o diálogo e interromper a ação dramática, incluindo elementos épicos nos textos e na encenação.
Tais recursos cênicos propõem um movimento de aproximação e distância do espectador em relação à ação dramática, ao revelar a artificialidade do teatro, ou seja, romper com o efeito ilusionista do drama burguês.
A intenção é que o espectador não perca a consciência de si e da realidade social enquanto assiste à cena e realize constantemente esta reflexão crítica sobre a atitude das personagens a partir dos recursos cênicos de distanciamento propostos por Bertolt Brecht.   
No teatro pós-dramático, o espectador se depara com um objeto artístico a ser completado por ele, e não com uma obra fechada, como analisa Desgranges no artigo “Teatralidade Tátil:alterações no ato do espectador”, no volume 8 da Revista Sala Preta :

“Em sua relação com a cena pós-dramática, o espectador não encontra orientação de leitura a seguir, que lhe indique pistas para o entendimento da obra e do mundo. De modo que, acompanhando o direcionamento do autor, possa tecer relações racionais, associações lógicas e fechar interpretações. A frustração marca esse movimento de leitura na proposta não dramática, e, ao mesmo tempo, o estímulo à concepção de percursos próprios, em sua relação com o texto cênico e na relação deste com a vida social. (...) O espectador não se pergunta “o que isto quer dizer?”, mas sim “o que está acontecendo comigo?”, o que lhe solicita disponibilidade para participar de um jogo que se apresenta de modo inesperado e sem uma seqüência preestabelecida, porque se propõe como experiência, e, enquanto tal, só se efetiva plenamente se o próprio espectador se dispuser a constituí-lo enquanto joga. A atitude autoral proposta ao espectador pelo drama moderno se vê radicalizada na cena pós-dramática, já que o ato de leitura, para se constituir, a partir de então, solicita uma atitude francamente artística do espectador – tomado como atuante –, que define o próprio percurso de sua leitura, em função da seleção e elaboração dos variados elementos de significação com os quais se relaciona.”
           
 As palavras “frustração” e “disponibilidade” presentes nesta citação trazem à tona a seguinte questão: numa sociedade baseada na contemplação passiva - em que o indivíduo encontra-se bombardeado por uma avalanche de recursos tecnológicos, imagens e informações – como se efetiva esta proposta da arte teatral contemporânea para o espectador?Qual a disponibilidade e a resistência a esta proposta de participação ativa na construção da cena?
Esta reflexão sobre o espectador contemporâneo parece fundamental para compreender o lugar que o teatro ocupa na sociedade atual. Se a questão “O teatro é necessário?”, proposta por Denis Guènon no título de seu livro, permeasse as experiências estéticas dos espectadores e artistas do teatro contemporâneo, qual seria a resposta?           A partir da citação abaixo, que relaciona tal passividade a interesses políticos e sociais de manutenção do status quo, a resposta seria “Sim, o teatro é extremamente necessário”:

“As análises mais críticas sobre a relação entre a televisão e a sociedade colocam sobretudo em evidência a contemplação passiva e isolada a que conduzem os meios eletrônicos. Para além dos conteúdos, o espectador está sempre condenado a olhar o que fazem os outros, sem ter nenhum poder sobre a própria vida. O que caracteriza a televisão não é o fato de simplesmente olhar, mas de somente olhar, o olhar imóvel, a contemplação inerte: é isto que caracteriza a televisão e faz dela a expressão de uma sociedade na qual tudo é espetáculo, como disse Debord (...)Mas esta contemplação não é fruto de uma preguiça ontológica, mas o resultado de uma ordem social que vive graças à passividade.”




Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1993.
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre Teatro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978.
DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2003
____________________Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo.São Paulo: Hucitec,2006.
GUÉNON, Denis.O teatro é necessário?São Paulo: Perspectiva,2004.
LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro Pós-Dramático. São Paulo, Cosac Naify, 2007.

NOVAES, Adauto (org). Muito além do espetáculo. São Paulo: Ed.Senac São Paulo, 2005.
PAVIS, Patrice.Dicionário de Teatro. São Paulo; Perspectiva, 2001.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. SP: Perspectiva, 2002.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

DESCONTINUIDADE


Glauber Gonçalves de Abreu

Descontinuidade é um conceito que se estabelece a partir da negação do seu conceito oposto, continuidade. A relação antagônica se explicita pelo prefixo de origem latina des. Afirmar por negação, além de uma recorrente estratégia didática em muitas circunstâncias, é um jogo ideológico complexo que revela, em alguns casos, a existência condicionada dos fenômenos e coisas, como na música-poema de Lulu Santos. Som e silêncio, luz e escuridão, falar e calar são forças opostas que se retrossignificam para potencializar seus sentidos, ou seja, que constroem a dimensão de sua própria existência pela sua ausência na existência da outra.


Em outros casos, em virtude do contexto histórico e cultural, um dos pólos dessa estrutura antagônica tende a ser ocultado, produzindo um sistema hierárquico em que um deles faz sentido e o outro, não; em que um deles é válido e o outro, não; um serve e o outro, não; um sistema de normalidades e anormalidades criado historicamente e, por isso, presente em nosso tempo como herança. É o que ocorre neste caso específico, em que a percepção – ao menos a ocidental – ficou condicionada ao princípio da continuidade. Estabeleceu-se uma relação de validação entre sentido, significado, gosto e continuidade, como se apenas ela pudesse resultar em uma experiência válida e qualquer iniciativa fora dela resultasse em erro, em impossibilidade.

Continuidade, em linhas gerais, pode ser entendida como a manutenção de um fluxo, geralmente bipolarizado, em que não se conhece necessariamente o percurso, mas se localiza com clareza o ponto de partida e de chegada, o início e o fim. Pressupõe uma lógica cronológica no curso dos acontecimentos, uma relação de causa e efeito detectável. Essa relação de causa e efeito, quando transposta para o campo do teatro, influencia fortemente o espectador durante a fruição de um espetáculo, pois é geradora de expectativas. O espectador espera que a ação aconteça segundo essa lógica causal apreensível, mesmo que ele seja surpreendido – o que ele, inclusive, deseja – por uma reviravolta temática ou de comportamento na ação – o que geralmente acontece no clímax.

Na cena final do filme O Sexto Sentido, por exemplo, tem-se uma amostragem clara dessa estrutura. O espectador é surpreendido pela imprevisível (diriam alguns) revelação de que o protagonista, em realidade, está morto e não passa de mais um espírito que o garoto médium consegue enxergar e ouvir. O clímax é surpreendente, mas a estrutura que leva a ele é linear, organizada sob a lógica da continuidade.


É interessante ver como a sequência final retoma, em formato de flash-back, vários trechos que ajudam o espectador a reorganizar o filme temporalmente a partir dessa nova informação. O flash-back funciona, assim, para mostrar que nenhum acontecimento está solto do outro, que são causas de um efeito que não se sabia antes, mas que é dado a conhecer neste momento. A suposta quebra de linearidade ao final é simplesmente temática e não causal. Isto para falar em termos de narrativa, pois a continuidade segue presente de maneira hegemônica na relação entre o figurino e o espaço, a ação e o gesto, a fala e o movimento etc.

No que chamamos de estrutura clássica, portanto, a continuidade é um princípio composicional fundante para as obras artísticas. É a partir desse conceito-lógica que se estabelece a organização dos elementos da linguagem. No caso do teatro, a narrativa, a ação, a passagem do tempo, a dinâmica espacial, a relação palco-plateia configuram elementos onde a continuidade se faz presente de maneira mais explícita, desde Aristóteles.

A quebra da continuidade, a ruptura no fluxo lógico dos acontecimentos, a frustração ou suspensão da expectativa causal estabelecida pelas informações oferecidas anteriormente é o que pode-se definir como descontinuidade. Na descontinuidade como princípio há uma certa aleatoriedade na organização dos elementos e nas transições de cena; uma tentativa proposital de subverter a relação temporal cronológica; uma disjunção entre o que se vê e o que se ouve; uma impossibilidade lógica de que a ação se dê como está sendo mostrada. Ela pode se dar na fala, no gesto, no movimento, na coreografia, na cenografia, na luz, na narrativa e na relação de todos esses elementos.

No exercício abaixo, uma criação cênica elaborada a partir dos estudos da obra de Robert Wilson para a disciplina Encenações em Jogo: experimentos de criação e aprendizagem do teatro contemporâneo, vê-se a utilização da descontinuidade em diversos planos. Primeiramente, a ação é descontínua porque não é causal, é aleatória e interdependente, reforçada também pelo princípio da simultaneidade. O texto não descreve nem revela a ação ou o perfil dos personagens. Início e fim são apenas ocasiões temporais e não efeitos dramáticos de um acontecimento. O espaço abstrato contrasta com o figurino formal e desemboca em estranhas imagens de praia e carnes de prateleira no telão, outro exemplo claro de descontinuidade que produz como efeito um imenso precipício de sentido.


Descontinuidade, portanto, deve ser vista como princípio composicional (ou procedimento), o que é diferente de ser efeito. Efeito é o impacto que o princípio provoca no espectador e que, neste caso, se caracteriza, geralmente, por estranhamento, distanciamento, desconforto, incômodo, curiosidade. Se voltarmos a Brecht, veremos que esse tipo de contato com a obra desloca o espectador de um envolvimento ilusionista e o leva a pensar:

(...) um ato artificial de autodistanciamento, de natureza artística, não permite ao espectador uma empatia total, isto é, uma empatia que acabe por se transformar em autêntica auto renúncia; cria, muito pelo contrário, uma distancia magnífica em relação aos acontecimentos. Isso não significa, porém, que se renuncie à empatia do espectador. É pelos olhos do ator que o espectador vê, pelos olhos de alguém que observa; deste modo se desenvolve no público uma atitude de observação, expectante. (2005: 78)

Brecht deseja esse espectador em um mundo devastado pela guerra. Sua proposição tem caráter histórico. “Como ressaltar aos olhos do público a confusão de valores que caracteriza essa nossa desgraçada época”? (idem, 87) Vê-se, aqui, que o foco da utilização do efeito de distanciamento não está exatamente no sentido - O que isso quer dizer? Qual o significado dessa ruptura? – mas no movimento provocado na condição do espectador. A mesma relação se estabelece com a ideia de descontinuidade. A mobilização desse espectador em termos de efeito é mais interessante do que essa expectativa ainda causal de sentido e significado.

Se pensarmos nas relações em nosso tempo, na dinâmica das interações virtuais e na globalização veremos que a linearidade e as fronteiras (geográficas, de linguagem etc.) se dissolvem. Desse modo, a inserção da descontinuidade como princípio de composição da obra artística pode ser, como em Brecht, uma tentativa de posicionar o espectador diante dos conflitos contemporâneos. Não há, portanto, significado direto necessariamente, mas efeito. Deleuze e Guattari (2004) farão uma leitura complexa desse contexto pela metáfora do rizoma, cuja estrutura se organiza de maneira aleatória, descontínua.

Um rizoma pode ser rompido, quebrado em qualquer lugar, e também retorna segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas. (...) Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. (...) Essas linhas não param de se remeter umas às outras. É por isto que não se pode contar com um dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do mau. (18)

A arte contemporânea, e o teatro contemporâneo, se confrontam com essa nova perspectiva e incorporam a descontinuidade como princípio e como discurso em suas criações. É o caso de Bob Wilson, por exemplo, cujos procedimentos – ao menos alguns e, em especial, a descontinuidade – foram identificados no exercício acima. É o caso também do cineasta David Lynch no filme Cidade dos Sonhos. Na cena abaixo, retirada deste filme, a queda da cantora no meio da apresentação é um recurso de descontinuidade extremamente potente em que o espectador coloca à prova sua própria capacidade perceptiva.




 As criações mais recentes de Zé Celso, no Teatro Oficina, também apresentam descontinuidade como princípio composicional. Em Macumba Antropófaga (2011), por exemplo, a narrativa não é linear, os personagens se constroem e desconstroem todo o tempo, e o espaço é aberto pra improvisações e participação do público. Em determinado momento, por exemplo, os atores convidam a plateia para uma ciranda onde todos dançam nus. Uma ação não leva necessariamente à outra. Não há vínculo causal entre esta cena  da ciranda e a próxima ou um comprometimento dela com o sentido da fábula – que, inclusive, não há –, mas o efeito provocado na plateia e sua potência discursiva alcançam altíssimas intensidades.

Pina Bausch, Companhia dos Atores, Teatro da Vertigem, Teatro do Concreto fazem parte – para citar alguns – do grupo de criadores cênicos contemporâneos em cujos trabalhos podemos detectar fortemente a descontinuidade como procedimento de criação. Por coincidência ou não, são artistas interessados em pesquisar a linguagem e em problematizar a relação do espectador com a obra, propondo-lhe um lugar de mais radicalidade e autoria.

Por fim, é curioso perceber como este princípio se faz presente também na produção de artistas que se expressam em outras linguagens. No material abaixo, vê-se e ouve-se o poema dias dias dias de Augusto de Campos lido por Caetano Veloso. A utilização da descontinuidade é ainda mais radical, pois altera a estrutura, a grafia e a sonoridade das palavras, unidades de composição básicas da materialidade do poema. É descontínua também a produção de voz para a performance, ora cantada, ora falada, ora aguda, colorindo o texto com diferentes texturas e tons.




Já o artista plástico Virgílio Neto reconduz nossa relação com a própria linguagem do desenho – e nossa expectativa em relação a ela como representação – inserindo a descontinuidade como princípio composicional. Ela está presente nas margens, definidas pelo rasgo aleatório do papel, e na distribuição caótica, sem continuidade, das formas e personagens no espaço. Como a ideia de rizoma, é difícil dizer onde começa e onde termina o desenho de Virgílio, que história ele tem para contar, que polos estabelecem a tensão e o conflito, qual a relação causal entre as figuras. O traço, descontínuo, liberta os grilhões da percepção. Muitos espectadores não sabem o que fazer com sua alforria.

Desenho de Virgílio Neto.

O princípio da descontinuidade é um princípio avesso ao impulso primitivo de manutenção e continuidade da vida, entendida geralmente como a trajetória entre dois polos (o nascimento e a morte). Talvez, por isso, seja tão estranho vê-lo em performance na obra artística. A grande questão, no entanto, e isto já afirmam Deleuze e Guattari, não é o impulso contínuo entre vida e morte, mas os impulsos múltiplos, aleatórios, segmentados e pluridirecionais que se produzem entre essas duas polaridades supremas. Trata-se de uma inversão na lógica e na estruturação do pensamento.

Referências

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004. 

FIGURINO TEATRAL

Jacqueline Silva Mendes

Trajes que são usados pelos personagens em cena.  O Figurino ajuda a revelar o personagem que está sendo criado, auxiliando o ator/atriz nessa composição e o público a ler que personagem está se apresentando no espaço teatral. Através do figurino poderemos identificar a época em que se passa a cena, o perfil psicológico do personagem, tempo e espaço da peça teatral.
São várias as mensagens que o figurino pode nos contar numa peça e estas mensagens explícitas ou implícitas são construídas através do tipo do tecido escolhido, das cores usadas na composição do figurino, na textura escolhida, no corte da roupa, etc, todos esses pontos e outros são considerados pelos figurinistas ao criar um traje de cena.

“(...) é sem dúvida através do figurino que o espetáculo moderno instaura da maneira mais profunda a sua relação com a realidade. Quanto mais audaciosa a cenografia, mais o espaço cênico tende a tornar-se simbólico, abstrato, ou afirmar-se como mera área de representação. Cabe então ao figurino e a alguns acessórios orientar a visão, a interpretação, enfim a leitura do espectador. (ROUBINE, p. 150, 1998).

Nas montagens contemporâneas, o figurino não necessariamente deve obedecer a estudos históricos, contextualizados com a época, até porque muitas apresentações contemporâneas não possuem uma preocupação linear com a história ou com o período em que acontecem as ações.
Mais do que identificar personagens o figurino é um signo, é comunicação, é um forte elemento visual numa peça teatral, um dos importantes elementos que compõe a linguagem teatral.
O que não se admite em nenhum espetáculo contemporâneo, é que o figurino se torne um mero elemento decorativo, que não dialogue com a peça nem com o público. Como exemplo do figurino criado em encenações contemporâneas, analisaremos brevemente os figurinos nas montagens do diretor americano Robert Wilson.
Os figurinos das peças de Robert Wilson são tão importantes como todos os outros elementos que compõe seus espetáculos: cenografia, luz, atores, dança, música. Pensando que, tudo o que foi/é posto em cena, nos espetáculos de Bob Wilson, não possuem objetivos apenas decorativos, cada elemento tem sua funcionalidade, tudo que está em cena está vivo e são esses objetos que o ajudam a construir um tempo e espaço diferenciado em suas obras. Um tempo que não é o cronológico, um espaço que não é somente da sala de espetáculos, um espaço pintado com a luz; Bob Wilson consegue criar imagens cênicas poderosas, ajudando o espectador a ver e escutar.

“Hoje, na representação, o figurino conquista um lugar muito mais ambicioso; multiplica suas funções e se integra ao trabalho de conjunto em cima dos significantes cênicos. Desde que aparece em cena, a vestimenta converte-se em figurino do teatro: põe-se a serviço de efeitos de amplificação, de simplificação, de abstração e de legibilidade.” (PAVIS, p. 168,2001).

Na criação dessas imagens cênicas fortes para o espectador, o figurino possui uma grande importância, porque ele também constrói seu espaço, fala ou silencia em cena.
Outros procedimentos que também contribuíram para a criação dessas imagens nos espetáculos de Wilson são as coreografias, tudo é coreografado, a luz, a cenografia, o som, o silêncio, o figurino, através dos movimentos dos atores, todos os espetáculos são matematicamente marcados.
Nesse processo de criação de figurinos percebemos alguns elementos que podemos citar como característico de vários espetáculos de Bob Wilson, como: a presença das cores frias, linhas e formas claras, fabricação de monocromos, maquiagem pesada, etc.
Um profissional que nos aponta detalhes sobre a criação dos trajes de cena nos espetáculos de Bob Wilson é Jacques Reynaud que colaborou com a criação de vários figurinos, como por exemplo: “The Three Sisters, Sonetos de Shakespeare, Woyzeck, Macbeth, etc.
Sobre a importância da luz nos espetáculos de Wilson, Reynaud expõe que, para Bob Wilson, os figurinos originais já devem estar prontos desde o começo do ensaio de luz, pois frequentemente Wilson destaca através da luz um figurino ou vários, ou outro elemento cênico é destacado em um momento singular do espetáculo e este, é sempre um momento de tensão ou surpresa na peça, por isso Bob Wilson faz questão dos ensaios com os figurinos originais, podemos observar abaixo, como personagens são destacados em cena através da luz:





Reynaud confessa também a preferência do diretor para as cores frias e afirma que considera esses elementos, (o tipo de cores, a maquiagem pesada, a luz intensa, o cenário, etc.), em sua mente quando cria os figurinos para Wilson.
 Cada diretor, cada espetáculo pedirá um determinado tipo de figurino e ao figurinista cabe a sensibilidade na composição/criação de cada figurino. 

REFERENCIAS

GALIZIA, Luiz Roberto. Os processos criativos de Robert Wilson. São Paulo: Perspectiva, 1986.
GUINSBURG, j. ; NETTO, J. Teixeira Coelho; CARDOSO, Reni Chaves. Semiologia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2006.
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos: teatro, mímica, dança, dança-teatro, cinema. São Paulo: Perspectiva, 2005.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001.
ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da encenação teatral. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
SAFIR, Margery Arent. Robert Wilson - From Within. The American University of Paris: Flammarion, 2012.
VIANA, Fausto. O figurino teatral e as renovações do século XX. São Paulo: Estação das letras e cores, 2010.


Cenografia Experiencial

Verbete: Cenografia Experiencial
Por: Francis Wilker
Disciplina: Encenações em Jogo
Professor: Marcos Bulhões


Cenografia Experiencial

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra


O verbete proposto – Cenografia Experiencial - surge a partir da análise de algumas obras da diretora e coreógrafa Pina Bausch onde se pode identificar um procedimento recorrente em relação à cenografia ou ao modo de organizar o espaço da cena. Em peças como Sagração da Primavera (1975), Café Müller (1978), Árias (1979) e Cravos (1982), apenas para citar algumas obras mais conhecidas de Pina e o Tanztheater Wuppertal, são utilizados objetos e/ou elementos que intencionalmente ultrapassam o seu aspecto simbólico ou usual, seja no sentido básico de situar o “lócus” onde as ações ocorrem (essa ação se passa no mar ou num rio) ou da própria destinação primária do objeto (uma cadeira é usada para se sentar) e potencializam o aspecto experiencial da cena na relação que os dançarinos estabelecem com a cenografia proposta. Aqui, cabe destacar os nomes de Rolf Borzik e Peter Pabst, que, em diferentes momentos, colaboraram com Pina na criação de suas peças.
 Café Müller[1]


Sagração da Primavera[2]



Árias[3]




Cravos[4]



Como pode ser observado nas imagens acima, a terra utilizada em Sagração da Primavera, as cadeiras em Café Müller, a água em Árias e os inúmeros cravos no espetáculo também denominado Cravos, instauram novas significações poéticas para esses espaços que vão além de sua própria materialidade. A presença desses elementos provoca outros modos de estar em cena para o dançarino, são como “obstáculos” que se impõe à sua movimentação. Possivelmente a palavra obstáculo, associada à ideia de empecilho ou barreira, não seja a mais apropriada, pois não se trata aqui de ultrapassar ou vencer esse obstáculo, a sua função poética parece se situar mais no campo da geração de experiência para o dançarino. Vejamos alguns comentários acerca dessa relação:

“O espetáculo é encenado num palco coberto de terra, o que faz com que os bailarinos terminem a apresentação contaminados pelo cenário.” (CYPRIANO, 2005, p.29).

“Pina Bausch, ao levar para o palco água e terra, troncos de árvores e folhas secas, milhares de cravos ou dezenas de cadeiras, instaura um novo modelo espacial para a dança, até então inédito. (...) Dançar na água ou na lama certamente não é  o mesmo que dançar num chão de madeira uniforme. O espaço transforma-se e, com ele, também o movimento-imagem dos corpos dançantes. (...) O mérito desse processo está na compreensão de que a partir de novos dados cenográficos há importante transformação na estrutura coreográfica.” (CALDEIRA, 2009, p.18).

 A noção de Cenário Experiencial parte de duas referências conceituais de áreas distintas e resulta da inquietação provocada pelos trabalhos de Pina, bem como de outras dezenas de espetáculos onde essa relação com o cenário se estabelece de modo similar. Estando a cenografia diretamente ligada à ideia de espaço, me interessava pensar conceitualmente espaço e também encontrar uma qualificação para essa cenografia capaz de expressar a sua “atuação” na cena. No processo de pesquisa, chamou atenção reflexões do geógrafo chinês Yi-Fu Tuan que, ao discutir teoricamente espaço e lugar, como categorias do meio ambiente intimamente relacionada, ressalta a perspectiva experiencial que marca a relação entre os seres humanos e o espaço. Em linhas gerais, o autor aponta que um espaço ao qual atribuímos valor se configura como lugar. Entende-se que essa atribuição de valor se dá a partir das experiências do homem com o espaço.

“Na experiência, o significado de espaço freqüentemente se funde com o de lugar. “Espaço “ é mais abstrato que “lugar”. O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. (...) Na extensa literatura sobre qualidade ambiental, relativamente poucas obras tentam compreender o que as pessoas sentem sobre espaço e lugar, considerar as diferentes maneiras de experienciar (sensório-motora, tátil, visual, conceitual) e interpretar espaço e lugar como imagens de sentimentos complexos – muitas vezes ambivalentes.” (TUAN,1983, p.6 e 7).

A “Perspectiva Experiencial” de Yi-Fu Tuan para pensar a relação do homem com o espaço parece dialogar de modo bastante convergente com os apontamentos da pesquisadora Eleonora Fabião ao discutir o trabalho do ator/performer no campo artístico:

“...a experiência implica a capacidade de aprender a partir da própria vivência. Experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele. (...) Para experienciar no sentido ativo, é necessário aventurar-se no desconhecido e experimentar o ilusório e o incerto. Para se tornar um experto, cumpre arriscar-se a enfrentar os perigos do novo. (idem. p.10).

“Em Do Ritual ao Teatro, o antropologista Victor Turner entrelaça diferentes linhas etimológicas do vocábulo experiência e esclarece: etimologicamente a palavra inclui os sentidos de risco, perigo, prova, aprendizagem por tentativa, rito de passagem. Ou seja, uma experiência, por definição, determina um antes e um depois, corpo pré-experiência e corpo pós-experiência. Uma experiência é necessariamente transformadora, ou seja, um momento de trânsito da forma, literalmente, uma (trans)forma. As escalas de transformação são tão variadas quanto relativas, oscilam entre um sopro e um renascimento.” (FABIÃO, 2011, p.240).

Essa dimensão experiencial que a cenografia propõe ao dançarino parece se estabelecer uma vez que a sua relação com os objetos/elementos influencia o seu estar em cena no que diz respeito à movimentação, tônus, fisicalidade, emoção, ou, num sentido mais amplo como aponta Fabião, “experimentar estados psicofísicos alterados”. A bailarina Ruth Amarante ao falar sobre processos de repetição no trabalho com Pina, em entrevista à pesquisadora Ciane Fernandes, traz na sua fala a imagem de uma parede com a qual realiza uma seqüência de movimentos, embora esse elemento cenográfico não esteja no foco de sua descrição é possível notar como a presença do mesmo colabora para o sentido de experiência explorado acima.

“Na peça, tenho que fazer isso no segundo ato, durante uns vinte minutos, o tempo todo. [...]. Ah... é louco. Começa bem, é uma sensação boa; acaba sendo bem depressivo, porque [...] uma pessoa que está o tempo todo se batendo na parede e cai no chão e levanta e vai de novo para a parede e cai de novo no chão...são as coisas de que ela gosta [...] porque o bailarino [...] não fica a mesma pessoa que começou quando repete os movimentos [...]e ela gosta de ver essa mudança com o mesmo tipo de movimento...” (FERNANDES, 2000. P.46)


Referências Bibliográficas

CALDEIRA, Solange Pimentel. O lamento da Imperatriz: a linguagem em trânsito e o espaço urbano em Pina Bausch. São Paulo: Annablume: Belo Horizonte: Fapemig, 2009.
CYPRIANO, Fabio. Pina Bausch. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
FABIÃO, Eleonora. Performance e Teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Próximo Ato: Teatro de Grupo. Org. ARAÚJO, et al, São Paulo: Itaú Cultural, 2011.
FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-teatro: repetição e transformação. São Paulo: Hucitec, 2000.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência; tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: DIFEL, 1983.