segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Anexações do real à cena - Paola Lopes Zamariola



O mundo está cheio de objetos, mais ou menos interessantes;
não desejo adicionar-lhe mais nenhum.
    Prefiro, simplesmente, declarar a existência de coisas em termos de tempo e espaço.
Douglas Huebler

(Los Santos Inocentes,  Mapa Teatro)     

Este verbete deseja refletir sobre o tema do real no teatro contemporâneo não desvinculando-o ou opondo-lhe a ideia de ficção que está intrínseca às camadas de representação que os processos artísticos evocam. O conceito de 'Anexações do real' procura indagar-se sobre as possibilidades em que o real/documental pode também encontrar-se embebido do campo ficcional.

É sobre a necessidade de uma zona híbrida entre o real e o ficcional que a noção de teatralidade assume um relevante teor para crítica dedicada à análise de pesquisas ligadas ao campo das artes cênicas. Silvia Fernandes, no livro “Teatralidades Contemporâneas” (2010) retoma os estudos de Patrice Pavis para sustentar que:
Para um espectador aberto às experiências da cena contemporânea a teatralidade pode ser, por exemplo, uma maneira de atenuar o real para torná-lo estético e erótico; ou o modo de sublinhar esse real em seu traço obsessivo e repetitivo, que se aplica como terapia de choque para reconhecer o real e compreender o político; ou o embate de regimes ficcionais distintos, mas igualmente potentes, que impede a cena de estabelecer uma enunciação estável, construída a partir de um único ponto de vista, e abre múltiplos focos de olhar em disputa pela primazia de observação do mundo.” (FERNANDES, 2010: p. 115)

(Marketing/Hamlet/Set, LOT)


Para pensar os possíveis procedimentos de anexações do real à cena busca-se melhor compreender os escritos da pesquisadora francesa Maryvonne Saisson no seu livro “Les théâtres du réel – Pratiques de la represéntatiton dans le théâtre contemporain”. Nele a autora estabelece 3 eixos que colaboram para a ampliação da temática em questão:

-Realidade revistada
-Morte da realidade e a busca do real
-Teatros do Real

Realidade Revisitada
Ao refletir sobre a singularidade do fazer teatral Saisson destaca sua efemeridade ontológica e com isso questiona o que seria específico na representação teatral. Se representar é a concretização de um pensamento na música, pintura, escultura, cinemas e artes afins, e prescinde de uma referência, no teatro a representação só é possível se ela acontecer em ato.
Com isso poderia-se substituir a ideia de representação por apresentação, que envolve a presença em si de seus agentes e seus receptores, e desta forma já se aproxima dos termos real e realidade tal é a presença evocada pelo teatro.
Essa peculiaridade de reativar o acontecimento artístico e não somente reproduzí-lo é encarado por Saisson como a dimensão política em si do teatro. O fato do teatro acontecer apenas no encontro com o público, para e por ele, traz no seu bojo o político.
O teatro contemporâneo reivindica temas ligados à política não apenas no seu conteúdo, mas, e principalmente, na sua forma. O político aqui se inscreve diretamente na apresentação do real. Real este que se abre para a reflexão do mundo contemporâneo e para a indagação sobre a própria linguagem.
(A Última Palavra é a Penúltima,
Teatro da Vertigem/Zikzira/LOT)

Morte da realidade e a busca do real
As ideias apresentadas por Maryvonne Saisson compartilham pontos de origem comuns aos trabalhados nos estudos de Michel Foucault, no texto “Outros Espaços”, datado de 1967, no qual aponta a sua época como a época do espaço. E tal afirmação ainda encontra argumentos para ser defendida na atualidade por outros filósofos contemporâneos que continuam a debruçar-se sobre o tema uma vez que mundo continua a experimentar-se e a desenvolver-se a partir da noção de rede.
Foucault estabelece que são as relações de vizinhança entre pontos ou elementos que contribuem para que a ênfase no espaço seja predominante nas relações dos homens do século XX, principalmente o saber sobre as relações que revelam tipos de estocagem, circulação, localização, e que evidenciam, sobretudo, relações de posicionamento.

A partir da ideia de posicionamento, Foucault traz à tona a noção fundamental de não desconsiderar o valor específico de cada lugar, uma vez que não se vive em um espaço vazio e homogêneo, ao contrário, cada espaço está carregado de qualidades peculiares. Nessa análise não é possível desconsiderar o entrecruzamento entre tempo e espaço.
É a partir da intersecção entre as relações de tempo e espaço que Foucault defende a ideia de heterotopia em oposição a de utopia:

Há, inicialmente, as utopias. As utopias são os posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm como espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade, mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais. Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam afetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, heterotopias.” (FOUCAULT, 2006: p.414-415)


A heterotopia teria a capacidade de produzir lugares fora de todos os lugares, à moda da experiência mista do espelho, onde ocorre a hibridização do mítico e do real dentro do mesmo espaço. Elas têm a capacidade de inquietar o homem, pois aparecem como que deslocadas e desencaixadas em relação aos demais lugares habitados As heterotopias têm, em relação ao espaço restante, uma função de desestabilização. 


                 (Ciudades Paralelas, Lola Arias e Stefan Kaegi)

As obras da site-specific art, instauradas em via pública ou privada, expandem os valores da criação artística mais convencional, fazendo com que outros valores, tais quais, a percepção fenomenológica (sensorial), elementos histórico-simbólicos e políticos do seu lócus de ação, sejam evidenciados pela ação artística. Miwon Kwon em One place after another: notes on site specificity (1997) dedica-se à investigação da site-specific art, na qual justamente aprofunda a reflexão sobre a concepção do lugar, que para os procedimentos de criação se dão não somente em termos físicos, mas como composição de estrutura complexa que compõem o bojo estruturante da ação artística.

Neste contexto as práticas de site-specific art devem ser entendidas como práticas específicas para um contexto, a fim de desconstruir a ideia do lugar como suporte neutro para a obra e poder o ativá-lo como parte integrante do trabalho, onde a escolha do lugar é a escolha de uma localidade e de uma temática de interesse do criador a ser trabalhado:

ser específico em relação a esse lugar (site), portanto, é decodificar e/ou recodificar as convenções institucionais de forma a expor suas operações ocultas mesmo que apoiadas é revelar as maneiras pelas quais as instituições moldam o significado da arte para modular o seu valor econômico e cultural, e boicotar a falácia da arte.” (KWON, 2000: p.11)


Teatros do Real
O entendimento do presente como fio condutor que entrelaça a experiência do tempo e do espaço abre a perspectiva para o debate acerca de como a participação ativa do espectador no entorno dos projetos artísticos que formulam um novo modo de fruição. O espectador é estimulado a participar física e criativamente desse processo como elemento ativador da obra.

É possível refletir sobre a ideia de 'Teatros do Real' a partir de alguns aspectos abordados por Paul Zumthor, em seu livro “Performance, recepção, leitura” (2006), no qual o autor destrincha a noção de teatralidade modo a evidenciar que:

Num lugar público (o artigo diz: no metrô) alguém fuma; um outro o agride, arranca seu cigarro ou comete uma outra ação violenta. Para a multidão que enche o vagão trata-se de um acontecimento. Mas alguém desta multidão sabe que isso é simplesmente um jogo, montado por uma associação antitabagística. Há então teatralidade? Para a multidão não. Mas para o espectador a par do plano, sim. A teatralidade neste caso parece ter surgido do espectador, desde que ele foi informado da intenção de teatro em sua direção. Este saber modificou seu olhar, forçando-o a ver o espetacular lá onde só havia até então o acontecimento. Ele transformou em ficção aquilo que parecia ressaltar do cotidiano, ele semiotizou o espaço, deslocou os signos que ele então pode ler diferentemente... A teatralidade aparece aqui como estando do lado do performer e de sua intenção firmada de teatro mas uma intenção cujo segredo o espectador deve partilhar.” (ZUMTHOR, 2007: p.40-41)


Podemos refletir que a condição necessária à emergência de uma teatralidade é a identificação, pelo espectador, de um outro espaço; a percepção de uma alteridade espacial. O que implica alguma ruptura com o real ambiente, e é sobre este ponto de vista

É fundamental reforçar que tais aspectos convocados pela teatralidade estão presentes nas mais diversas vertentes da arte contemporânea. É a partir dessa ideia de fissura do real apresentada por Zumthor que os códigos de linguagens a priori díspares encontram ecos e modos híbridos de criação e de fruição na produção contemporânea em arte, sobretudo, a partir do ponto de vista do espectador e suas relações com o real ou efeitos do real evocados pelas produções artísticas.

Por fim, ao constatar aspectos performativos e de teatralidade a partir da análise das matérias e dos espaços presentes em diversos movimentos e na poética de artistas representantes das várias linguagens na arte moderna e contemporânea, se evidencia a tensão entre as matérias e os espaços do cotidiano e as matérias e os espaços artísticos que revelam e convocam o campo artístico à sua continua reformulação. 




             (X-Moradias, Ieltxu Martinez Ortueta )







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