A criação coletiva surge com os conjuntos teatrais que, nas décadas de 1960 e 70, associam todos os elementos da encenação, inclusive o texto, em um mesmo processo de autoria baseado na experimentação em sala de ensaio. Na Europa, esse método de construção cênico-dramatúrgica está ligado a encenadores' - como Peter BROOK, Giorgio STREHLER, Ariane MNOUCHKINE e Luca RONCONI - que, à frente de uma companhia", propõem novas formas de atuação e de espacialização, muitas vezes se apresentando fora das salas convencionais. Nos Estados Unidos, grupos como Living Theatre, Open Theatre e Performance Group buscam o contato direto com o público, abordando questões da sociedade contemporânea a partir de uma visão crítica e libertária.
No Brasil, onde a criação coletiva floresceu junto aos grupos" da década de 1970, diversos espetáculos fizeram história, entre eles: O&A, 1968 e Terceiro Demônio, 1972, pelo TUCA; Cypriano e Chan-ta-lan, ópera-bufa do grupo Pão e Circo, 1971; Som ma, ou os Melhores Anos de Nossas Vidas, 1973, pelo Grupo de Niterói; Luxo, Som Lixo ou Transanossa, 1972; Rito do Amor Selvagem, 1972; Gente Computada Igual a Você, do Dzi Croquettes, 1973; Trate-me Leão, do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, 1977; Mistério Bufo, da Companhia Tragicômica Jaz-O-Coração, 1979. Nessas obras, elaboradas em processos extensos, a improvisação dos atores" se concentra muitas vezes em aspectos vivenciais, o que resulta em farto material e espetáculos de longa duração. A forma de produção cooperativada, a restrita ficha técnica e a confecção coletiva dos objetos e elementos de cena produzem uma linguagem que expressa a identidade cultural do grupo.
Embora a criação coletiva tenha angariado a imagem de negação da técnica e de espontaneísmo, ela deve ser considerada um modo de criação a que correspondem diversos métodos, alguns sistematizados pelo diretor" - como aquele praticado pelo grupo La Candelária (Colômbia) - e outros que, mesmo não descritos, serviram de material para teóricos que se debruçaram sobre o estudo da criação em grupo. Entre os diversos métodos, existem certas características comuns à criação coletiva, principalmente no que diz respeito à motivação dos grupos alimentados pelas ideias do teatro de vanguarda: e pela rebeldia contra os padrões estabelecidos, sejam eles sociais, estéticos ou morais. Do ponto de vista da linguagem, há em geral uma ênfase do corpo e da ação, originada no ponto de partida do processo criativo: o jogo entre os atores e a improvisação funcionam como alfabeto com que o grupo escreve suas ideias.
Entre os grupos brasileiros dos anos de 1970, o Pod Minoga (SP) conjuga a maior estabilidade de integrantes à menor hierarquização de funções. A criação coletiva percorre todas as etapas de concepção e realização do espetáculo. Não há autor nem diretor. Flávio de SOUZA, Dionísio JACOB, Mira HAAR, Regina WILKE, Ângela GRASSI, Naum Alves de SOUZA e Carlos MORENO permaneceram juntos em quase todos os espetáculos. Folias Bíblicas, 1977, e Salada Paulista, 1978, são seus trabalhos mais conhecidos. O grupo realizou, entre 1972 e 1980, sete espetáculos em criação coletiva sem que o texto, à exceção dos dois últimos, jamais fosse escrito: em cada apresentação, o roteiro de ações criado a partir das improvisações permitia que a palavra se mantivesse permeável ao imprevisto.
Já no Asdrúbal Trouxe o Trombone (RJ), que chega à criação coletiva depois de dois espetáculos, a composição da estrutura narrativa de Trate-me Leão antecede o início dos ensaios e se constitui como um trabalho de colaboração entre os atores (que selecionam fragmentos de qualquer origem pelo critério da identificação com questões da vida pessoal e do cotidiano), o diretor (que identifica núcleos temáticos no material apresentado e submete ao grupo um primeiro esboço de cenas) e artistas convidados a levar ao grupo contos, poemas e músicas. Só depois de pronto o roteiro inicia-se o trabalho de improvisação.
O que possibilita essa prática de criação cênico-dramatúrgica a partir do trabalho dos atores é uma forma de atuação fisicalizada e irreverente, gerada em um contexto histórico-cultural de valorização do corpo e negação das regras. Em Ubu Rei, por exemplo, segundo espetáculo do Asdrúbal, já havia uma linguagem de atuação em comum que permitiria, no trabalho seguinte, a criação coletiva: o crítico Yan MICHALSKI mapeia as características dessa atuação quando escreve no Jornal do Brasil, a 31 de outubro de 1975, que "grande parte do conteúdo da mensagem é transmitida sistematicamente através da atitude, do gesto, do movimento e do ritmo corporal dos atores", recursos que eles "dominam com uma generosa riqueza de detalhes e com um surpreendente preparo técnico".
Um dos espetáculos mais emblemáticos desse modo de criação, também pelo seu caráter inaugural, foi Gracias, Sefíor, montado pelo Teatro Oficina em 1972, quando o grupo opta por se configurar como uma comunidade. Com oito horas de duração, divididas em dois dias, a montagem abandonava os limites da narrativa aristotélica e da ficção e se aproximava de uma vivência que englobava palco e plateia. O espetáculo se estruturava em oito cenas temáticas. Entre elas, "Aula de Esquizofrenia" utilizava repolhos para simbolizar cérebros submetidos à lobotomia; a "Divina Comédia" mostrava os mecanismos de repressão da indústria cultural; a "Ressurreição dos Corpos" partia para o contato físico entre atores e espectadores com a ideia de transmitir energias vitais; a "Barca" fazia uma viagem marítima para uma utópica liberação dos corpos; o "Novo Alfabeto' brincava com um bastão e o passava entre os presentes; e, ao final, "Te-Ato*" fazia daquele bastão o veículo para uma ação transformadora dos participantes. Inspirado pelo contato do Oficina com o Living Theatre e, em especial, pela influência de Paradise Now, o espetáculo Gracias, Sefíor gerou polêmica por pretender conduzir a plateia a uma mudança de pensamento e de atitude a partir da condução explícita do grupo.
Há casos em que a criação, embora coletivizada, se dá sob a condução do encenador, que se utiliza desse procedimento para uma obra determinada, sem torná -10 uma marca de sua estética. Mantendo as demais funções do espetáculo, ele amplia o trabalho do ator até a criação da cena e da dramaturgia, sem contudo colocar em discussão a concepção. É o caso de Macunaíma, em que o projeto de recriar no teatro a obra de Mário de ANDRADE foi concebido e assinado pelo diretor ANTUNES FILHO tendo, no processo, a participação de sua equipe.
Hoje, muitos grupos se servem de técnicas da 'criação coletiva para pesquisar novas linguagens e construir uma obra autoral. O Grupo Galpão (MG) realizou, na década de 1980, vários espetáculos utilizando esse método - entre eles, E a Noiva não quer Casar, Ó Procê vê na Ponta do Pé, A Comédia da Esposa Muda. A Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz (RS), fundada em 1978, trabalha com improvisações para, a partir de uma obra literária ou dramatúrgica e de textos teóricos relacionados ao tema que se quer abordar, criar uma escritura cênica própria, feita de fragmentos; na contramão da história, o grupo se encarrega, como há trinta anos, de todos os elementos da cena, sem contratação de profissionais especializados. Em ambos os casos, a criação coletiva tem mais o sentido de engajamento dos integrantes em todo o processo de criação e realização de cada obra do que aquele de um espaço vazio onde o grupo exprime a própria subjetividade - o que pode ser considerado um importante diferencial entre seu uso hoje e naquele período em que o método se disseminou.
Depois de virtualmente desaparecer dos palcos durante os anos de 1980 e 90, a criação coletiva gera descendentes. O processo colaborativo" marca o retorno a vários elementos constitutivos dessa prática: dramaturgia em aberto, longos percursos de elaboração e sistema de trabalho coletivo. Há, porém, diferenças significativas entre os dois momentos. O conjunto teatral já não é mais o grupo que se mantém junto por afinidade pessoal, mas uma companhia profissional cujos integrantes podem variar muito de um espetáculo para outro e cujo vértice está na concepção do encenador. (RT)
(GUINSBURG, J., FARIA, João Roberto e LIMA, Mariângela Alves de (Coord.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC SP, 2009, p.110 - 112)
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