segunda-feira, 16 de agosto de 2010

CRIAÇÃO COLETIVA

A criação coletiva surge com os conjuntos tea­trais que, nas décadas de 1960 e 70, associam to­dos os elementos da encenação, inclusive o texto, em um mesmo processo de autoria baseado na experimentação em sala de ensaio. Na Europa, esse método de construção cênico-dramatúrgica está ligado a encenadores' - como Peter BROOK, Giorgio STREHLER, Ariane MNOUCHKINE e Luca RONCONI - que, à frente de uma com­panhia", propõem novas formas de atuação e de espacialização, muitas vezes se apresentando fora das salas convencionais. Nos Estados Uni­dos, grupos como Living Theatre, Open Theatre e Performance Group buscam o contato direto com o público, abordando questões da socieda­de contemporânea a partir de uma visão crítica e libertária.
No Brasil, onde a criação coletiva floresceu jun­to aos grupos" da década de 1970, diversos espe­táculos fizeram história, entre eles: O&A, 1968 e Terceiro Demônio, 1972, pelo TUCA; Cypriano e Chan-ta-lan, ópera-bufa do grupo Pão e Circo, 1971; Som ma, ou os Melhores Anos de Nossas Vi­das, 1973, pelo Grupo de Niterói; Luxo, Som Lixo ou Transanossa, 1972; Rito do Amor Selvagem, 1972; Gente Computada Igual a Você, do Dzi Cro­quettes, 1973; Trate-me Leão, do grupo Asdrú­bal Trouxe o Trombone, 1977; Mistério Bufo, da Companhia Tragicômica Jaz-O-Coração, 1979. Nessas obras, elaboradas em processos extensos, a improvisação dos atores" se concentra muitas vezes em aspectos vivenciais, o que resulta em farto material e espetáculos de longa duração. A forma de produção cooperativada, a restrita ficha técnica e a confecção coletiva dos objetos e ele­mentos de cena produzem uma linguagem que expressa a identidade cultural do grupo.
Embora a criação coletiva tenha angariado a imagem de negação da técnica e de espontaneís­mo, ela deve ser considerada um modo de cria­ção a que correspondem diversos métodos, al­guns sistematizados pelo diretor" - como aquele praticado pelo grupo La Candelária (Colômbia) - e outros que, mesmo não descritos, serviram de material para teóricos que se debruçaram sobre o estudo da criação em grupo. Entre os diversos métodos, existem certas características comuns à criação coletiva, principalmente no que diz res­peito à motivação dos grupos alimentados pelas ideias do teatro de vanguarda: e pela rebeldia con­tra os padrões estabelecidos, sejam eles sociais, estéticos ou morais. Do ponto de vista da lin­guagem, há em geral uma ênfase do corpo e da ação, originada no ponto de partida do processo criativo: o jogo entre os atores e a improvisação funcionam como alfabeto com que o grupo es­creve suas ideias.
Entre os grupos brasileiros dos anos de 1970, o Pod Minoga (SP) conjuga a maior estabilidade de integrantes à menor hierarquização de fun­ções. A criação coletiva percorre todas as etapas de concepção e realização do espetáculo. Não há autor nem diretor. Flávio de SOUZA, Dionísio JACOB, Mira HAAR, Regina WILKE, Ângela GRASSI, Naum Alves de SOUZA e Carlos MO­RENO permaneceram juntos em quase todos os espetáculos. Folias Bíblicas, 1977, e Salada Pau­lista, 1978, são seus trabalhos mais conhecidos. O grupo realizou, entre 1972 e 1980, sete espetá­culos em criação coletiva sem que o texto, à ex­ceção dos dois últimos, jamais fosse escrito: em cada apresentação, o roteiro de ações criado a partir das improvisações permitia que a palavra se mantivesse permeável ao imprevisto.
Já no Asdrúbal Trouxe o Trombone (RJ), que chega à criação coletiva depois de dois espetácu­los, a composição da estrutura narrativa de Trate­-me Leão antecede o início dos ensaios e se cons­titui como um trabalho de colaboração entre os atores (que selecionam fragmentos de qualquer origem pelo critério da identificação com ques­tões da vida pessoal e do cotidiano), o diretor (que identifica núcleos temáticos no material apresen­tado e submete ao grupo um primeiro esboço de cenas) e artistas convidados a levar ao grupo con­tos, poemas e músicas. Só depois de pronto o ro­teiro inicia-se o trabalho de improvisação.
O que possibilita essa prática de criação cê­nico-dramatúrgica a partir do trabalho dos ato­res é uma forma de atuação fisicalizada e irreve­rente, gerada em um contexto histórico-cultural de valorização do corpo e negação das regras. Em Ubu Rei, por exemplo, segundo espetáculo do Asdrúbal, já havia uma linguagem de atuação em comum que permitiria, no trabalho seguin­te, a criação coletiva: o crítico Yan MICHALSKI mapeia as características dessa atuação quando escreve no Jornal do Brasil, a 31 de outubro de 1975, que "grande parte do conteúdo da men­sagem é transmitida sistematicamente através da atitude, do gesto, do movimento e do ritmo corporal dos atores", recursos que eles "dominam com uma generosa riqueza de detalhes e com um surpreendente preparo técnico".
Um dos espetáculos mais emblemáticos desse modo de criação, também pelo seu caráter inaugu­ral, foi Gracias, Sefíor, montado pelo Teatro Oficina em 1972, quando o grupo opta por se configurar como uma comunidade. Com oito horas de dura­ção, divididas em dois dias, a montagem abandona­va os limites da narrativa aristotélica e da ficção e se aproximava de uma vivência que englobava palco e plateia. O espetáculo se estruturava em oito cenas temáticas. Entre elas, "Aula de Esquizofrenia" utili­zava repolhos para simbolizar cérebros submetidos à lobotomia; a "Divina Comédia" mostrava os me­canismos de repressão da indústria cultural; a "Res­surreição dos Corpos" partia para o contato físico entre atores e espectadores com a ideia de trans­mitir energias vitais; a "Barca" fazia uma viagem marítima para uma utópica liberação dos corpos; o "Novo Alfabeto' brincava com um bastão e o pas­sava entre os presentes; e, ao final, "Te-Ato*" fazia daquele bastão o veículo para uma ação transfor­madora dos participantes. Inspirado pelo contato do Oficina com o Living Theatre e, em especial, pela influência de Paradise Now, o espetáculo Gra­cias, Sefíor gerou polêmica por pretender conduzir a plateia a uma mudança de pensamento e de atitu­de a partir da condução explícita do grupo.
Há casos em que a criação, embora coletivi­zada, se dá sob a condução do encenador, que se utiliza desse procedimento para uma obra deter­minada, sem torná -10 uma marca de sua estética. Mantendo as demais funções do espetáculo, ele amplia o trabalho do ator até a criação da cena e da dramaturgia, sem contudo colocar em discus­são a concepção. É o caso de Macunaíma, em que o projeto de recriar no teatro a obra de Mário de ANDRADE foi concebido e assinado pelo diretor ANTUNES FILHO tendo, no processo, a partici­pação de sua equipe.
Hoje, muitos grupos se servem de técnicas da 'criação coletiva para pesquisar novas linguagens e construir uma obra autoral. O Grupo Galpão (MG) realizou, na década de 1980, vários espetáculos uti­lizando esse método - entre eles, E a Noiva não quer Casar, Ó Procê vê na Ponta do Pé, A Comédia da Esposa Muda. A Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz (RS), fundada em 1978, trabalha com im­provisações para, a partir de uma obra literária ou dramatúrgica e de textos teóricos relacionados ao tema que se quer abordar, criar uma escritura cê­nica própria, feita de fragmentos; na contramão da história, o grupo se encarrega, como há trinta anos, de todos os elementos da cena, sem contratação de profissionais especializados. Em ambos os casos, a criação coletiva tem mais o sentido de engajamen­to dos integrantes em todo o processo de criação e realização de cada obra do que aquele de um espa­ço vazio onde o grupo exprime a própria subjetivi­dade - o que pode ser considerado um importante diferencial entre seu uso hoje e naquele período em que o método se disseminou.
Depois de virtualmente desaparecer dos pal­cos durante os anos de 1980 e 90, a criação coletiva gera descendentes. O processo colaborativo" marca o retorno a vários elementos constitutivos dessa prática: dramaturgia em aberto, longos percursos de elaboração e sistema de trabalho coletivo. Há, porém, diferenças significativas entre os dois mo­mentos. O conjunto teatral já não é mais o grupo que se mantém junto por afinidade pessoal, mas uma companhia profissional cujos integrantes po­dem variar muito de um espetáculo para outro e cujo vértice está na concepção do encenador. (RT)

(GUINSBURG, J., FARIA, João Roberto e LIMA, Mariângela Alves de (Coord.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva: Edições SESC SP, 2009, p.110 - 112)

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