1. Origens
A Commedia dell’arte era, antigamente, denominada commedia all improviso, commedia a soggetto, commedia di zanni, ou, na França, comédia italiana, comédia das máscaras. Foi somente no século XVIII 9segundo C. MIC, 1927) que essa forma teatral, existente desde meados do século XVI, passou a denominar-se Commedia dell’arte – a arte significando ao mesmo tempo arte, habilidade, técnica e o lado profissional dos comediantes, que sempre eram pessoas do ofício. Não se sabe ao certo se a Commedia dell’arte descende diretamente das farsas atelanas* romanas ou do mimo antigo: pesquisas recentes puseram em dúvida a etimologia de Zanni (criado cômico) que se acreditava derivado de Sannio, bufão de atelana romana. Em contrapartida, parece ser verdade que tais formas populares, às quais se devem juntar os saltimbancos, malabaristas e buffões do Renascimento e das comédias populares e dialetais de RUZZANTE (1502-1542), prepararam o terreno para a commedia.
2. Características do Jogo
A Commedia dell’arte se caracterizava pela criação coletiva dos atores, que elaboram um espetáculo improvisando gestual ou verbalmente a partir de um canevas, não escrito anteriormente por um autor e que é sempre muito sumário (indicações de entradas e saídas e das grandes articulações da fábula). Os atores se inspiram num tema dramático, tomado de empréstimo a uma comédia (antiga ou moderna) ou inventando. Uma vez inventado o esquema diretor do ator (o roteiro), cada ator improvisa levando em conta os lazzi* característicos de seu papel (indicações sobre jogos de cena cômicos) e as reações do público.
Os atores agrupados em companhias homogenias, percorrem a Europa representando em salas alugadas, em praças públicas ou patrocinados por um príncipe; mantêm forte tradição familiar e artesanal. Representam uma dúzia de tipos fixos, eles próprios divididos em dois “partidos”. O partido sério compreende os dois casais de namorados. O partido ridículo, o dos velhos cômicos (Pantaleão e o Doutor), do Capitão (extraído do Miles Gloriosus de PLAUTO), dos criados ou Zanni, estes com diversos nomes (Arlecchino, Scaramuccia, Pulcinella, Mezzottino, Scapino, Coviello, Truffaldino) se dividem em primeiro Zanni (criado esperto e espirituoso, condutor da intriga) ou segundo Zanni (personagem ingênua e estúpida). O partido ridículo sempre porta máscaras grotescas, e estas máscaras (maschere) servem para designar o ator pelo nome de sua personagem.
Neste teatro de ator (e de atriz, o que era novidade na época), salienta-se o domínio corporal, a arte de substituir longos discursos por alguns signos gestuais e de organizar a representação “coreograficamente”, ou seja, em função do grupo e utilizando o espaço de acordo com uma encenação renovada. A arte do ator consiste mais numa arte da variação e da adequação verbal e gestual, do que em invenção total e numa expressividade. O ator deve ser capaz de reconduzir tudo o que improvisou ao ponto de partida, para passar o bastão ao seu parceiro e assegurar-se de que sua improvisação não se afasta do roteiro*. Quando o lazzi – improvisação mímica e às vezes verbal, mais ou menos programada e inserida no cavenas – se desenvolve num jogo autônomo e completo, torna-se uma burla. Esse tipo de jogo fascina os atores de hoje por seu virtuosismo, sua finura e pela parcela de identificação e distância crítica que exige de seu executante. Ele prefigura o reinado do encenador, ao confiar a adaptação dos textos e a interpretação geral a um capocomico (ou corago).
3. Repertório
O repertório dos “comediantes” é muito vasto. Não se limita aos canevas de comédia de intriga e os scénarii (argumentos) que chegaram até nós dão apenas uma idéia truncada deles, uma vez que esse gênero se fixava precisamente por finalidade trabalhar a partir de um esquema narrativo. Notícias, comédias clássicas e literárias (commedia erudita), tradições populares, tudo é bom para servir de fundo inesgotável para a commedia. As companhias chegam mesmo a montar tragédias, tragicomédias ou óperas (opera regia, mista ou heróica) em que se especializam (como a Comédie-Italienne em Paris) nas paródias de obras-primas clássicas e contemporâneas. Elas interpretavam também obras de autor (MARIVAUX, pela companhia de Luigi RICCOBONI, GOZZI e GOLDONI na Itália). Desde o final do século XVII, a arte da commedia começa a perder fôlego; o século XVIII e seu gosto burguês e racionalista (como GOLDONI e MARIVAUX no fim de sua carreira) surraram-na tanto que não mais se reerguerá.
4. Dramaturgia
Apesar da diversidade dessas formas, a commedia se remete a um certo número de constantes dramatúrgicas: tema modificável, elaborado coletivamente; abundância de quiprocós, fábula típica de namorados momentaneamente contrariados por velhos libidinosos; gosto pelos disfarces, pelos travestimentos de mulheres em homens, cenas de reconhecimento no fim da peça, nas quais os pobres ficam ricos, os desaparecidos reaparecem; manobras complicadas de um criado tratante, porém esperto. Esse gênero tem a arte de casar intrigas ao infinito, a partir de um pano de fundo limitado de figuras e situações; os atores não buscam o verossímil, mas o ritmo e a ilusão do movimento. A commedia revivifica (mais que destrói) os gêneros “nobres”, mas esclerosados, como a tragédia cheia de ênfase, a comédia demasiado psicológica, o drama sério demais; ela representa, desse modo, o papel de revelador de formas antigas e de catalisador para uma nova maneira de se fazer teatro, privilegiando o jogo e a teatralidade.
Provavelmente, é esse aspecto vivificante que explica a profunda influência que ela exerceu sobre autores “clássicos” como SHAKESPEARE, MOLIÈRE, LOPE DE VEJA ou MARIVAUX. Este último realiza uma difícil síntese de expressão lingüística e psicologia refinadas, combinadas na utilização de alguns tipos e situações da “comédia de máscaras”. No século XIX, a Commedia dell’arte desaparece completamente e seus vestígios vão ser encontrados na pantomima ou no melodrama, baseado, este último, em estereótipos maniqueístas. Ela sobrevive, hoje em dia, no cinema burlesco ou no trabalho de clown. A formação de seus atores tornou-se modelo de um teatro completo, baseado no ator e no coletivo, redescobrindo o poder do gesto e da improvisação (MEIERHOLD, COPEAU, DULLIN, BARRAULT).
(PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: perspectiva, 1999, p. 61-62)
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