segunda-feira, 23 de julho de 2012


PERFORMANCE
Por Biagio Pecorelli
“A estratégia da performance é resistir a definições.”[1]

Eleonora Fabião


Desde meados do século XX, a performance tem se constituído como um campo transdisciplinar refletido pela antropologia, pela psicologia, pela sociologia, pela linguística, pelos estudos de folclore, de  raça, de gênero, além de ter atravessado ao longo das últimas décadas o amplo espectro das artes (o teatro, o cinema, o vídeo, a dança, as artes plásticas, a literatura)[2] e ainda se firmado, a partir dos anos 70, como uma linguagem artística autônoma, bastante diversificada. Segundo o antropólogo e pesquisador da USP John C. Dawsey,

Há algo de não resolvido nesse conceito que resiste às tentativas de definições conclusivas ou delimitações disciplinares. Aquém ou além de uma disciplina, ou até mesmo de um campo interdisciplinar, os estudos de performance se configuram como uma espécie de antidisciplina.[3]

O teórico norte-americano Marvin Carlson lembra que performance é um conceito essencialmente contraditório, sendo capaz de abrigar fenômenos totalmente díspares e competitivos[4]. Ele levanta duas noções correntes de performance. Na primeira delas, o termo designa a demonstração de habilidades específicas empreendida por esse sujeito que é o performer, quase sempre marcadas por algum tipo de virtuosismo. É o caso do engolidor de facas, dos acrobatas, dos artistas de rua em geral, dos mágicos, dos próprios atores, músicos no palco e de quem quer que se coloque a prova diante de uma audiência. Na segunda acepção elencada por Carlson, a performance é tomada de modo mais abrangente como um “comportamento restaurado” - noção advinda dos chamados estudos da performance (Performance Studies) encabeçados pelo diretor teatral e professor da New York University (NYU) Richard Schechner. Nesta perspectiva, toda e qualquer ação humana – e não apenas demonstrações públicas de habilidades - onde se guarda “uma certa distância entre o self e o comportamento”[5] é performance. O professor dando aula, o padre celebrando uma missa, o garçom servindo um café, o automobilista pilotando seu carro, o xamã empreendendo uma cura (e seus respectivos papéis complementares: o aluno prestando atenção, o fiel recebendo o sermão, o cliente esperando seu café, etc), todos estes estão, no instante da ação, empreendendo uma performance. Agem mais ou menos de acordo com o que determinado papel social lhes prescreve, quer dizer, restauram no presente aqueles comportamentos modelares de professor, aluno, padre, fiel, garçom, cliente, automobilista, etc. A performance, à luz dos Performance Studies, compreende um campo em constante expansão, no qual a chamada arte da performance ocupa apenas uma pequena parcela.

Etimologicamente, o termo performance deriva do francês antigo, parfournir, que significa “completar”, “realizar inteiramente”[6], definição limitada se pensarmos na aplicação do termo ao contexto da arte atual, onde tem sido usado para designar obras/espetáculos processuais, inacabados ou participativos. Mesmo nesse âmbito - e mesmo hoje, passados mais de 50 anos das primeiras expressões artísticas “performáticas” - a performance ainda se apresenta como um campo aberto, mandálico, em permanente mutação, o que dificulta, ou mesmo impossibilita, a construção de um discurso sólido sobre ela. Segundo RoseLee Goldberg,

a performance pode ser uma série de gestos íntimos ou uma manifestação teatral com elementos visuais em grande escala, e pode durar de alguns minutos a muitas horas; pode ser apresentada uma única vez ou repetida várias vezes, com ou sem um roteiro preparado; pode ser improvisada ou ensaiada ao longo de meses.[7]

Alguns, como Goldberg, remontam a história da performance às vanguardas artísticas do começo do século XX (Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo, Construtivismo Russo, a Bauhaus). É que tais movimentos já traziam em suas obras e manifestos muito daquilo que seria desenvolvido como performance no pós-guerra, sobretudo, um interesse radical em abolir a aura da obra de arte e os parâmetros de sua apreciação estética. Outros afirmariam que a performance nasceu bem antes disso, com  o homem primitivo, sendo tão antiga quanto o rito. Nesse particular, Antonin Artaud - uma das figuras mais reveladoras para o teatro no século XX - termina por ser um dos mais importantes antecessores do campo da performance, ao reclamar para o corpo do ator suas pulsões mais primitivas e cruéis[8], e propor um retorno do teatro às suas origens rituais.

De qualquer modo, enquanto gênero artístico, tal como a conhecemos hoje, a performance desponta mesmo em fins dos anos 50 - ainda sem essa denominação - como um território híbrido e fronteiriço. Era praticada por artistas que vinham de diversas modalidades (poesia, música, teatro, dança, pintura, escultura), que passaram a utilizar ao longo das décadas seguintes suas próprias vidas como matéria e seus corpos como mídia das mais diversas experimentações e contestações[9]. No bojo da contracultura, realizavam experiências que envolviam dor, risco físico, automutilação, modificação corporal (tendência que ficaria conhecida como body art); provocavam moralmente o público; levantavam questões existenciais e políticas relacionadas a gênero, raça, sexualidade, nacionalidade; protestavam; forçavam os limites entre os campos artísticos instituídos; questionavam o mercado de arte e as instituições artísticas; problematizavam as noções de Bom e Belo e todas as convenções estéticas forjadas pelo ideário moderno, não raro, recuperando ritos e manifestações primitivas; apagavam as fronteiras entre arte e vida, etc. Em meio a isso, o que se convencionou chamar de performance art parece ser (ainda hoje) apenas uma tendência específica marcada pela influência da arte conceitual e do minimalismo, e que difere bastante de uma vasta porção de espetáculos multimídia[10] do mesmo período, não menos performáticos, ligados (mesmo em ruptura) às convenções do teatro, da música e da dança, numa radical transformação da ideia wagneriana de “Obra de Arte Total” (Gesamtkunstwerk)[11].

Num sentido amplo, a performance esteve associada em suas origens a um movimento maior de contestação filosófica e política do capitalismo e do paradigma racionalista da modernidade, cujo projeto aquela geração de artistas viu resultar em duas grandes guerras e no perigo eminente de destruição total da vida. Hoje, a performance tem se tornado ainda mais híbrida enquanto linguagem, fazendo uso das novas tecnologias, adentrando novos territórios não-artísticos, testando espaços cada vez mais inusitados e questionando sua própria história. Para Eleonora Fabião,

...a performance, por sua natureza de difícil comercialização e seu caráter marginal (margens: habita um espaço relativo entre as artes – plásticas, cênicas e fílmicas – e, entre arte e não-arte), muitas vezes abjeto (corpos desarticulados, levados a condições psicofísicas extremas, brutalidade poética) e socialmente discrepante (formas sexuais múltiplas, humor fino e grotesco, práticas existenciais e corporais [12]excêntricas e irônicas) define-se como forma de resistência, como força contestatória, como prática política. A performance gera e apresenta corpos e situações em que a normatividade ocidental contemporânea – marcadamente consumista, mecanicista, logocêntrica, racista, homofóbica, descorporalizada – é pensada.[13]


Notas:


[1] Entrevista concedida ao Caderno 3, do Diário do Nordeste. Data 09-07-2009. Disponível em: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=652907

[2] Érika Fischer-Lichte chama atenção para uma virada performativa (“performavive turn”) que abrange todas as linguagens artísticas a partir de meados do século passado, redefinindo radicalmente o papel de seus interlocutores. FISCHER-LICHTE, Erika. The Transformative Power of Performance: a new aesthetics. New York: Routledge, 2008.
  
[3] DAWSEY, John C. Sismologia da performance: Ritual, drama e play na teoria antropológica. In: Revista de Antropologia. São Paulo: ed. USP, 2007, v. 50, nº 2, p. 530 e 531.

[4] A rigor, Carlson diz tomar emprestada a afirmação de Mary Strine, Beverly Long e Mary Hopkins de que a performance é “um conceito essencialmente contestado”. CARLSON, Marvin A. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2009, p. 11.
[5] Ibidem., p. 14.

[6] DAWSEY, John C, op. cit., p.  532.

[7] GOLDBERG, Roselee. A Arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 8.

[8] Segundo Ricardo Cezar Cardoso, a despeito das abordagens vulgares que o termo possa ter, associado às ideias de perversão e violência extrema, “crueldade” em Artaud significa “antes de tudo, a desmistificação da representação como única forma válida para o pensamento.” CARDOZO, Ricardo Cezar. Antonin Artaud: por uma metafísica do cruel. Dissertação de Mestrado. UERJ: 2006. Disponível em: http://www.empiricae.com.br/artigos/a_guisa_de_introducao.pdf

[9] Dentre inúmeros nomes, destacam-se Jackson Pollock; Robert Rauschenberg; John Cage; Merce Cunningham; Grupo Gutai; Ives Klein; Piero Manzoni; Joseph Beuys; Vito Acconci; Chris Burden; Marina Abramovic; Grupo Fluxos; Günter Brus, Otto Mühl, Hermann Nitsch e Rudolf Schwarzkogler (grupo que ficou conhecido como Viennese Actionism); Claes Oldenburg; Orlan; Gilbert & George; Living Theatre;Yoko Ono; Bruce Nauman; Gina Pane; Bas Jan Ader; Ana Mendieta; Guillermo Gomez-Peña; Regina Galindo; Frank B; Ron Athey. No Brasil, Roberto Aguillar, Paulo Bruscky, Letícia Parente, Paulo Herkenhoff, Geraldo Anhaia Mello, Antônio Manuel, Guto Lacaz, Otavio Donasci, Lucio Agra, Renato Cohen, Maria Beatriz Medeiros e o Corpos Informáticos, Grupo Empreza, Brigida Baltar, Lia Chaia, Guilherme Peters, Artur Matuck, Paula Garcia, Marco Paulo Rolla, Maurício Ianês, Shima, Berna Reale. Além destes, deixaram para a performance brasileira importantes contribuições Oswald de Andrade, Flávio de Carvalho, Lygia Clark e Helio Oiticica.

[10] Robert Wilson, La Fura dels Baus, Pina Bausch, Richard Schechner, Richard Foreman e o Ontological-Hysteric Theater, Robert Lepage, Jan Fabre, Romeo Castellucci e a Societas Raffaello Sanzio, e boa parte daquilo que Hans-Thies Lehmann tem chamado de Teatro Pós-dramático (LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007). No Brasil, o Teat(r)o Oficina, sob direção de José Celso Martinez Corrêa, e o Teatro da Vertigem podem ser considerados, sob diversos aspectos, performativos.

[11] Segundo Cohen, a performance é muitas vezes uma espécie de Anti-Gestamsuntwerk, pois seu sentido de totalidade é fragmentário, desarmônico, regido por justaposições, tendo a collage como estrutura. COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2002.

[13] Entrevista com Eleonora Fabião in Relâche: Revista eletrônica da Casa Hoffmann – Centro de Estudos do Movimento. Por Cristiane Bouger. Curitiba: 2004.



A sérvia Marina Abramovic é hoje uma das artistas de performance mais populares do mundo. (Rhytm 0, 1974)

O artista baiano Jayme Fygura é conhecido pelo uso constante de armaduras e por não mostrar o rosto há mais de três décadas.

A body modification é hoje uma tendência estética mundial, nascida da performance, particularmente, da chamada body art. Nesse contexto, a prática da suspensão corporal (suspension) através de ganchos que atravessam a pele, quase sempre, não tem nenhuma relação com o sistema artístico instituído, sendo tratada como entretenimento ou mesmo prática meditativa.


Cena do espetáculo "Macumba Antropófaga", do Tea(r)o Oficina. São Paulo, 2012. Foto: Claire Jean.

Regina José Galindo é uma artista guatemalteca que tem se destacado com performances que radicalizam na reflexão sobre a violência contra as minorias em seu país. Limpieza social, 2006. Foto: Hugo Muñoz.
O brasileiro Flávio de Carvalho realizou já nos anos 30 performances em espaços urbanos, sendo no entanto totalmente ignorado por certa história mundial da performance, de viés europeu e norte-americano. Na foto, o artista vestindo seu "traje tropical", no Experimento Nº 3, de 1956.

O experimento relacional Ânima, realizado em São Paulo, em julho de 2012, é um exemplo atual da performance como campo expandido e linguagem híbrida, que mescla dança, teatro, video e performance art. Direção: Marcos Bulhões. Foto: Eduardo Bernardino.

Um comentário:

  1. poderia ser ampliado no que se refee as citações faltam refeencias em video, falta texto conclusivo, aguardamos nova postagem

    ResponderExcluir