segunda-feira, 29 de julho de 2013

Verbete: EXPERIÊNCIA
por Rita Pisano – 2013

A ideia de desenvolver esse verbete parte da minha pesquisa sobre o estudo que os autores John Dewey e Jorge Bondía Larrossa fazem sobre a noção de experiência e as relações que estabeleço a partir desses pensamentos com o fazer artístico e o exercício teatral (principalmente quando trabalhado em instituições educacionais com não atores), colocando a experiência como um conceito chave para a compreensão dos processos criativos.
Para começar desenvolvendo a reflexão sobre o verbete escolhido acredito ser importante apresentar algumas definições da palavra em si. Das definições de experiência encontradas no dicionário Michaelis temos: 1- Ato ou efeito de experimentar. 2- Conhecimento adquirido graças aos dados fornecidos pela própria vida. 3- Ensaio prático para descobrir ou determinar um fenômeno, um fato ou uma teoria; experimento, prova. 4- Conhecimento das coisas pela prática ou observação. 5- Uso cauteloso e provisório. 6- Tentativa. 7- Perícia, habilidade que se adquirem pela prática.
A partir do conhecimento etimológico da palavra experiência podemos entrar na discussão sobre sua existência no fazer artístico. O filósofo John Dewey  no  livro A Arte como Experiência - obra  que é fruto de dez conferências ministradas pelo autor com o propósito de falar sobre arte - distinguiu um tipo especial de experiência, diferente das experiências comuns. Segundo ele, passamos o tempo todo por diversas experiências mas a maioria delas são superficiais e incompletas. Dewey, fala que ter uma experiência singular, significa vivenciar determinado acontecimento até a sua consumação. Ele afirma que a verdadeira experiência produz uma transformação, torna-se uma referência e busca outras experiências semelhantes.
Dewey coloca que na experiência artística há dois fatores importantes a ser considerados. Primeiro: o prazer e a satisfação envolvidos no fazer; segundo: o total engajamento do artista em relação ao “produto” que produz, assim como a consciência sobre o seu processo pessoal no fazer artístico.
Jorge Bondía Larrosa, no artigo Notas sobre experiência ou o saber da experiência,   diz que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”, explicitando que a experiência é um processo pessoal que depende de uma elaboração subjetiva e não de um conhecimento sistemático. 
Por experiência no teatro e principalmente no teatro feito em instituições educacionais, entendo que o fazer teatral significa o ato de participar de um processo dinâmico que promove movimentos de ressignificação, recriação para que cada um possa ‘se dar conta’ que é agente integrante de um processo criativo, corresponsável e por que não dizer artista.  Os alunos que participam de uma aula de teatro assim como os atores num processo de ensaio, precisam, apesar do diretor/professor/orientador, gerenciar seus próprios caminhos e fazer suas escolhas; para que possam no coletivo, e também individualmente, elaborar sua própria experiência.
O trabalho com o outro, com o coletivo, a observação e construção de referências são no teatro instrumentos para vivenciar a experiência individual. Podemos listar alguns dos possíveis procedimentos utilizados no trabalho coletivo de teatro: Improviso, jogo dramático, intervenções no espaço, saídas ao teatro, criação de cenas, leituras dramáticas, montagens, escrita dramatúrgica, observação e discussão de exercícios, ocupação do espaço e tantos outros.  Todos esses procedimentos podem ser ferramentas para permitir a vivencia individual de um processo coletivo e assim permitir que a trajetória de cada participante seja uma experiência singular.
Nesse sentido, ao pensar que a experiência parte de um processo subjetivo podemos inclusive nos questionar: como se aprende teatro? Que saberes são necessários para a construção de um saber teatral? Eugênio Barba diz que “O ofício do ator é arte que não se ensina, apenas se aprende”; e como aprender algo que não se ensina? Experienciando,  fazendo teatro e  relacionando todos os elementos que compõe sua linguagem. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem sentido do que nos acontece. E esse saber da experiência tem algumas características essenciais que o opõem, ponto por ponto, ao que entendemos como conhecimento.  (Larrossa 2002)

Larrosa lembra que a  experiência é a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque e isso só é possível se pudermos parar:

[...] parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar,  escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.” (Larrossa 2002)

Na pesquisa que faço sobre a experiência no fazer artístico, especialmente sobre o fazer teatral na escola com não atores, me deparei com o documentário Sonhos em Movimento, que conta o processo de remontagem do espetáculo Kontkthof. A companhia estreou esse espetáculo em 1978 e dez anos depois o remontou com senhores e senhoras idosas de mais de 60 anos. Em 2008 a companhia de Pina Bauch Tanztheater escolhe trabalhar com adolescentes de 14 a 18 anos das escolas da cidade de Wuppertal que nunca tinham subido em um palco nem dançado antes. O documentário retrata esse processo de ensaio.
É muito bonito perceber no documentário, como os adolescentes vão se apropriando da linguagem da dança e como vão criando um repertório pessoal a partir do que vivenciam nos ensaios. Os discursos, as ações e as relações com o grupo e com a observação de si mesmo mudam muito no decorrer do processo. Acredito que o filme seja um exemplo concreto de não atores vivenciando uma experiência artística, entendendo os processos descritos acima de autonomia, percepção e criação. Nesse sentido Dewey coloca a experiência como o encadeamento das situações vividas, considerando o caráter emocional envolvido na ação, a organização e o reconhecimento do percurso vivenciado tornando esse ‘evento’  uma experiência singular e portanto uma experiência estética.
Na experiência estética, segundo ele, há um fluxo que vai de um acontecimento para outro que preserva, apesar dessa continuidade, o valor  de cada parte da vivência. Entre um acontecimento e outro não há buracos, nem junções mecânicas, mas momentos de pausas e repouso de definem a qualidade do movimento.
A qualidade estética que arredonda e unifica uma experiência é emocional. “Quando significativas, as emoções são qualidades de uma experiência complexa que se movimenta e se altera. Digo quando significativas porque, de outro modo, elas não passam de explosões e irrupções de um bebê perturbado. (...) A natureza íntima da emoção manifesta-se na experiência de quem assiste a uma peça no palco ou lê um romance. É concomitante ao desenvolvimento da trama; e a trama requer um palco, um espaço para se desenvolver e tempo para se desdobrar. A experiência é afetiva, mas nela não existem coisas separadas, chamadas emoções.”
O documentário Sonhos em Movimento revela esse movimento de fluxo de experiências no processo de construção de uma coreografia já existente. A maneira como os adolescentes se apropriam dos desenhos de cena, como interagem uns com os outros, como se relacionam com seus corpos e com os dos outros nos evidenciam esse percurso de significação de uma ação artística.
No meu trabalho de teatro com adolescentes do Ensino Médio que participam de um curso que culmina numa montagem final o processo de construção de uma experiência pessoal também é bastante evidente e desafiador para o professor, visto que proporcionar movimentos e espaços para a criação dos alunos não é algo simples, exige uma entrega verdadeira e um olhar atento e artístico para o que está sendo produzido e experimentado. Percebo que muitos momentos do percurso são, apesar de intensos, pouco claros quanto a sua significação. O sentido de cada etapa do processo vai sendo descoberto quando olhamos o percurso inteiro. Muitas vezes apenas depois de uma apresentação ou da finalização de um trabalho é que o grupo entende as etapas que foram passadas e posteriormente, num novo trabalho, lidam com essas mesmas etapas (que muitas vezes trazem inseguranças, dúvidas e canseiras) com mais propriedade. A propriedade de quem já viveu essa experiência e sabe que existem momentos diferentes na criação artística, alguns bastante caóticos e outros de muito prazer, e podem dessa forma contribuir mais significativamente com todo o processo, tranquilizando os alunos novos e sendo  o esteio do coletivo. A Experiência também pode aparecer quando assistimos a uma apresentação artística, lemos um livro ou vivenciamos algo marcante.
Na disciplina Encenações em Jogo: Experimentos de Criação e Aprendizagem do Teatro Contemporâneo, nos foi proposto como trabalho final do curso a criação de um vídeo a partir de uma ação performativa na cidade de São Paulo. O meu trabalho tinha como objetivo colocar uma figura estranha na cidade e observar como seria a interação dos transeuntes. Escolhi a figura de um bode para ser essa figura.  A escolha dessa imagem específica deu-se pela complexa simbologia que ela carrega. O bode foi utilizado em sacrifícios religiosos em muitas tradições do mundo, e tinha um significado divino de libido e fecundação. Os bodes eram  identificados então ora com os homens ora com os deuses. Foi um animal por excelência sacrificado nas festas do deus Dionísio, sendo identificado nesse sentido com o próprio Deus.  Apesar de mencionados na Bíblia e utilizados pelos Hebreus também nos seus sacrifícios, os bodes foram depois utilizados pelas autoridades eclesiásticas cristãs da Idade Média como representações do diabo e do mal. O bode passou então a ser associado às práticas de bruxaria e à própria luxúria, tornando-se impuro e maléfico.
Imbuída de todo essa simbologia com uma máscara simples e uma roupa preta fiz algumas andanças por um ponto da cidade de São Paulo, fui a  ponto de ônibus, metro e percebi como cada pessoa se relacionava de maneira diversa com a figura estranha ali apresentada. A experiência que eu vivia e a daqueles que interagiam comigo, ora com palavras, gestos, sustos, suspiros, risadas e principalmente olhares, formou uma conversa muito rica entre nós que participávamos daquela ação; posteriormente com a edição do vídeo pude perceber como esse movimento foi uma experiência significativa para mim e talvez para algum daqueles que cruzei no caminho.


Bibliografia:

DEWEY, John. Arte como Experiência. São Paulo, Martins Fontes, 2010.

____________. Vida e Educação. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1952

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade – teatro performativo. Trad. Lígia Borges. Revista Sala Preta, São Paulo, v.1, n.8, pp. 197-210, 2008.

LARROSSA, Jorge Bondía. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. (Conferência proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas, traduzida e publicada, em julho de 2001, por Leituras SME; Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das unidades da Rede Municipal de Educação de Campinas/FUMEC. A Comissão Editorial agradece Corinta Grisolia Geraldi, respon- sável por Leituras SME, a autorização para sua publicação na Re- vista Brasileira de Educação.)

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

PUPO, Maria Lúcia. O lúdico e a construção do sentido. Revista Sala Preta. Departamento de Artes Cênicas, ECA-USP, pp. 181- 187.


RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar  - práticas dramáticas e formação. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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