terça-feira, 30 de julho de 2013

Adolescentes no Teatro Contemporâneo


ADOLESCENTES NO TEATRO CONTEMPORÂNEO
Autora: Alice Nogueira
            
           A imagem de crianças e adolescentes participando de processos teatrais de igual para igual com adultos nos remete às trupes de teatro da Idade Média, aos grupos de circo andarilhos, às companhias de circo-teatro brasileiras e a diversos outros coletivos nos quais a inserção do jovem dentro da companhia se dava por hereditariedade. O aprendizado da linguagem teatral era feito no cotidiano e passado através da árvore genealógica. Durante a ascensão do teatro burguês essa prática ficou renegada a segundo plano e hoje, no século XXI, a inserção de crianças e adolescentes em cena vem ocorrendo mais e mais, dessa vez dentro de um novo contexto. Esse verbete se propõe a analisar a relação dessa prática com o teatro performático através de três exemplos práticos.
A década de 1960 vem sendo tratada como um ponto de mudança da linguagem teatral. Vários teóricos fazem leituras possíveis das origens e das consequências dessas modificações que fundaram o que vem sendo chamado de teatro contemporâneo, teatro performático, teatro de risco ou teatro pós-dramático. Todas elas, de qualquer forma, olham para a mudança radical na forma como as artes cênicas passam a se organizar, substituindo o legado do texto por uma nova estrutura, que se constitui diferentemente do teatro burguês.
Adotaremos nesse verbete a definição dada pela teórica alemã ÉrikaFischer-Lichte, teatro performativo, pois se encaixa melhor ao tema abordado e às instâncias do real, na qual entraremos para tratar do assunto em questão. Ainda segundo a autora de The Transformative Power of Performance, os anos 1960 inauguram um movimento que se iniciou na verdade na década de 1910/1920, com as vanguardas históricas, quando a performance art começa a se estabelecer como linguagem. Esse momento pode ser chamado de performance turn e estabelece dois novos parâmetros para as artes cênicas que serão fundadores de todas as modificações subsequentes, a saber, a inversão dos papéis espectador/ator e a liberdade adquirida pelo significante em relação ao significado.
            A explicação de Érika Fischer-Lichte para esses, que seriam dois pontos nevrálgicos, do teatro contemporâneo, partem do princípio que o que antes era mera espetacularidade começa agora a assumir características de ritual. Quando a performance surge, o espectador passa a se ver em um duplo lugar, já que ele não está mais assistindo uma representação, e sim uma ação. O performer não representa, ele age, gerando um transformação tanto nele quanto em quem está assistindo. O espectador, portanto, está em uma situação estética, pois está vivenciando a espetacularidade do ato, e ao mesmo tempo ética, já que o que está acontecendo é real. É o estado de liminaridade, conceito emprestado de Victor Turner. Assim, a performance passa a assumir características de ritual e passa a ser impossível analisá-la pela hermenêutica, ou seja, como obra de arte. Também já não é possível analisá-la pela semiótica, já que ao tentar interpretar os símbolos você vai abandonar a experiência da performance e, caso venha a interepretá-los depois, já não terá clareza sobre os mesmos, posto que se envolveu e, automaticamente, perdeu o distanciamento necessário para a análise. A ação é o significado, não existe distância entre os dois.
            Serão muitas as consequências desses dois fatos para o teatro e, um dos mais intrigantes, é a contaminação da cena e dos procedimentos de criação teatral pelo que Maryvonne Saison chama de “teatros do real”.

            A forma como os encenadores e grupos se relacionam com o real é muito distinta de caso a caso. Uma das mais evidentes no Brasil é o envolvimento com o ambiente em que o grupo cria. Podemos citar como exemplo dessa prática a peça As Bastianas da Cia. São Jorge, criada dentro de um abrigo de moradores de rua, ou a peça BR-3, em que o Teatro da Vertigem usou a relação com três localidades bradileiras, a saber, a Brasilândia (bairro da periferia de São Paulo), Brasília e Brasileia (pequena cidade na fronteira do Acre com a Bolívia), para utilizar a situação pública de locais em que a ideia de país é posta em xeque como mote para o processo de criação do espetáculo. Outra forma explorar o real como substantivo para a cena, é a utilização de espaços não convencionais a partir de sua práorpia materialidade, ou seja, trabalhando como o espaço a partir do que ele apresenta e não a partir do que ele pode representar. O grupo alemão Rimini-Protokoll possui vários audios-tours em diferentes cidades européias. Nesses trabalhos o espectador é colocado como protagonista de uma história enquanto se move pela sua cidade executando ações e desvendando mistérios guiado por um audio que ele escuta. Uma outra forma de desvelamento do real em cena é a partir da utilização do material pessoal dos atores como ponto de partida dramatúrgico. Um caso exemplar são os seis monólogos da Cia. Hiato que formam a peça Ficções.
            É dentro desse panorama de explicitação do real na cena ou no processo criativo, que alguns grupos e encenadores trouxeram adolescentes e crianças para suas composições. A inserção desses atores-mirins dentro desses processos e espetáculos, independentemente de seus motivos, traz o dado da realidade objetiva para a cena, já que não são atores representando crianças ou adolescentes, mas são eles próprio sendo em cena, e sem a necessidade da representação. Serão desenvolvidos neste verbete três exemplos dessa prática, para que possam ser levantadas semelhanças e diferenças no que concerne aos objetivos e às intenções de cada um deles ao optar por esse dispositivo. É importante ressaltar que os casos que serão aqui trabalhados não utilizam esses atores-mirins em cena com um propósito pedagógico a priori, mas antes por necessidade éticas ou estéticas.
            Dentro desse panorama, a primeira experiência que se quer relatar, é a do grupo Socìetas Raffaello Sanzio. O grupo italiano começou a trabalhar com crianças em cena quando nasceram os filhos de Romeo Castellucci, o diretor da companhia, e Chiara Guidi, uma das integrantes da companhia. A utilização das crianças geralmente está associada a cenas fortes em que, por exemplo, a criança acabou de ser morta pela mãe (TragediaEndogonidia P#06, outubro de 2003),, a criança recebe um banho de sangue de um sacerdote (Tragedia Endogonidia BN#05, maio de 2003), ou a clássica cena em que um bebê é deixado em cena sozinho (Tragedia Endogonidia BR#04, maio de 2003), cena essa que provocou ondas de revolta em Bruxelas onde a peça foi apresentada. A opção de Romeo sempre está associada a uma necessidade estética, já que a forma como o grupo trabalha é muito clara. Eles discutem um texto ou um tema e então Romeo traça figuras que materializem aquilo que ele quer dizer conceitualmente. Por isso também em muitas das peças da Raffaelo Sanzio são usados não atores e pessoas com fisicalidades incomuns, como um obeso mórbido, um senhor muito idoso, duas meninas anoréxicas, um rapaz com um braço maior que o outro e assim por diante. São o que Roemo chama de “presenças objetivas”, ou seja, figuras que signifiquem a partir do que são e não a partir de um significado prévio. Elas estão ali como materilização de um pensamento, mas só significam quando chegam ao espectador. Não possuem sentidos prévios. Melissa da Silva Ferreira, que acompanhou o grupo e acaba de se qualificar para o doutoramento na UDESC, escreve em um dos capítulos de sua qualificação sobre esse pensamento do diretor:
“Do ponto de vista do diretor, as ‘presenças objetivas’ em seus espetáculos devem ser analisadas do ponto de vista estético, pois crianças, anoréxicos, velhos e obesos não são colocados em cena para serem exibidos, mas para se satisfazer escolhas estéticas que partem da interpretação de um tema ou texto abordado, que os transformam em dispositivos geradores de sentidos” (FERREIRA, 2013)

Todas essas encenações sempre criaram grande polêmica ainda que o encenador afirme que nenhum tipo de violência é praticado contra nenhuma criança. E de fato, no livro The Theatre of Raffaello Sanzio, relata-se que na cena em que o bebê fica em cena sozinho, a instrução de Romeo era que no instante que ele começasse a se sentir incomodado ou a chorar, as cortinas seriam fechadas, ele retirado pela sua mãe e a peça teria prosseguimento. Nesse relato podemos perceber o poder dessas presenças objetivas em cena e como o sentido é realizado a partir do imaginário do espectador e não pelo que está de fato ocorrendo, já que o bebê não está passando por nenhum tipo de tortura, mas a plateia vê isso. No mesmo livro, encontra-se um paralelo com a fala de Jean-Luc Godard que, ao ouvir de alguém que em seu filme havia muito sangue, teria respondido: “Sangue não, vermelho”. Quem vê sangue é quem lê a cena. O artista vê vermelho. A criança banhada por sangue cenográfico sente o cheiro da groselha, não o cheiro do sangue. Este é reservado para o olfato apurado do espectador. Ainda segundo Melissa da Silva Ferreira:
“Uma das questões fundamentais dessas experiências diz respeito à proposição de novas formas de participação na cena. Tanto nas práticas pedagógicas quanto nos espetáculos da companhia, uma série de procedimentos são propostos para que a experiência estética, física e sensorial, estejam em primeiro plano. [...] No caso dos espetáculos, o corpo do espectador é considerado como o ambiente onde ocorre a experiência cênica, e aos atore não é pedido profissionalismo, nem técnica, mas sim a disponibilidade de colocar seu corpo a serviço da ficção. Não para representar um outro, mas para apenas “ser” em cena. A trasfiguração dessa pessoa em figura, em personagem, depende da participação ativa do espectador”(FERREIRA, 2013)

Paralelamente à prática artística da companhia, Chiara Guidi e Claudia Castellucci mantêm práticas pedagógicas que dialogam com o trabalho da Raffaello Sanzio. No ano de 1995, Chiara criou a Scuola Sperimentale di Teatro Infantile. Essa escola teve três módulos nos quais ela e os outros atores da companhia experimentaram novas formas de proporcionar a experiência teatral para crianças. Essa Scuola foi uma das grandes influências no desejo do grupo de investigar a infância, o grande tema sobre o qual eles trabalham.

                                                       (Tragedia Endogonidia BR#04)
Muito do que foi dito sobre a Raffaello Sanzio pode ser dito sobre os outros dois exemplos que serão dados aqui, mas a forma como se chegou à utilização de adolescentes em cena difere.
            O segundo caso que pode ser levantado aqui é o grupo P14 Jungendtheater, um grupo de jovens que trabalha dentro do Volksbühne em Berlim. O teatro é dirigido pelo encenador Frank Castorf que, em 1993, juntamente com o dramaturgo  Matthias Lilienthal, convidou alguns jovens para trabalhar dentro do teatro, incentivando que eles fizessem seu próprio trabalho e almejando que aquela presença renovassem os ares do Volksbühne. O grupo P14 é formado por pessoas que tenham a partir de 14 anos e que estejam interessadas no fazer teatral, seja em cena ou fora de cena. Eles próprios dizem que refletem as questões que são prospectadas pelos encenadores no “palco grande” e, ao mesmo tempo, participam dessas produções quando assim se faz necessário. É possível ver uma grande influência estética do trabalho de Frank Castorf nas montagens do grupo. Desde que se formou, o P14 já fez diversos trabalhos, dirigidos por diferentes pessoas e atualmente estão sobre a coordenação de Vanessa Unzalu Troya. Vale destacar nesse exemplo o duplo caráter desse grupo que, assim como tem a oportunidde de desenvolver um trabalho próprio, com os temas e a linguagem que desejarem, têm também a oportunidade de acompanhar os processos criativos dos diretores do Volksbühne, desenvolvendo um teatro feito por jovens e um teatro com jovens.
                                                              (P14 Jungendtheater)
            O terceiro caso é a encenação dos Os Sertões pelo encenador José Celso Martinez Corrêa com a participação dos jovens do MovimentoBixigão. O movimento surgiu em 2002 como “resposta prática para a transformação pacífica da marginalização nascente no bairro do Bixiga e a descaracterização dos gens mestiços do bairro” e foram muitas as ações realizadas com os jovens integrantes, sendo um deles a participação na montagem dos Sertões. Aqui vale um paralelo com a Raffaello Sanzio, já que nas encenações do Oficina é muito comum ver cenas consideradas “impróprias para menores” e, devido à natureza da presença dos atores-mirins em cena e da forma como eles são incluídos na história, a preseça que poderia ser uma agressão torna-se poesia. Aqui podemos ver um caso em que a relação com o entrono trouxe novas possibilidades estéticas para o grupo, ou seja, de uma escolha ética, a ação efetiva sobre a realidade, um novo dispositivo cênico foi criado, a utlização desses jovens em cena.
                                                                       (Os Sertões)
Nos três casos acima descritos podemos perceber diferentes motivos que levam os encenadores a trabalhar com adolescentes e/ou crianças, mas o efeito que se causa em cena para o espectador possui um denominador comum, a percepção multi-estável, efeito descrito por Érika Fischer-Lichte e que é resultado da contaminação da cena pelo real. Segundo a teórica, inserções como as de crianças de Castellucci em cena direcionam a atenção do espectador para o corpo do ator enquanto corpo fenomenológico, ou seja, como um dado absoluto que deve ser apreendido como tal e não como um dado que deve ser interpretado para se chegar à “verdade”. Os corpos não são percebidos como signos de uma figura, mas apenas como corpos sendo no mundo.  A esse corpo fenomenológico a autora vai dar o nome de “corpo real”. Trabalhar com esse dispositivo gera uma percepção multi-estável no espectador que ora enxerga o corpo real do ator, ora enxerga o personagem que ele “representa”, como nas imagensde fundo-figura.           
A causa da percepção multi estável seria deixar o espectador entre duas formas de apreensão, a order of representation e a order of presence. Ambas compoem a percepção multi-estável, mas podem ser entendidas separadamente para auxiliar na compreensão. A primeira se refere às “performances” em que “tudo que é percebido carrega referências de um personagem fictício específico”. Nessa ordem de percepção, tudo aquilo que não disser respeito ao mundo ficcional será automaticamente descartado pela nossa percepção e serão interpretados apenas os elementos que dizem respeito àquele personagem e àquele universo.
            A segunda ordem de percepção é a ordem da presença, na qual o corpo do ator é visto como dado fenomenológico que induz o espectador a inúmeras associações que estão desconectadas da ficção, colocando em jogo a própria memória e imaginação individuais de cada um. Nesse caso, para usar as palavras da autora, “o processo de percepção e elaboração de significados se torna totalmente imprevisível e, nesse sentido, caótico[...] O processo de percepção acaba sendo um processo inteiramente emergente sobre o qual o sujeito que o percebe não tem controle ”.
            A multi-estabilidade aconteceria, então, no momento que mudamos da ordem da representação para a ordem da presença e vice-versa. Esse momento de instabilidade de ordens cria no sujeito que assiste um estado de “in-between-ness” (o estado de liminaridade de Turner), ele está dentro, mas ao mesmo tempo está na fronteira do espetáculo com a realidade. Não está nem dentro nem fora. Ele está no limiar. Quando essa tranferência de percepção ocorre repetidamente, o espectador passa a focar na própria ruptura, tornando-se consciente de que não pode controlar o seu modo de percepção e, desta forma, ele se torna um “andarilho entre dois mundos”.
             Nesses três exemplos, vê-se que a experiência estética, física e sensorial, bem como a vivência do processo criativo em detrimento ao cotidiano da rua, está acima de um objetivo pedagógico no sentido extrito de ensinar as convenções e técnicas do teatro. O adolescente não está inserido em um contexto escolar que parte do pressuposto de que existe um mestre que vai sanar a falta de luz do aluno, mas está em ação, em jogo, juntamente com os outros criadores. O aprendizado da linguagem teatral ocorre como experiência, dentro de um contexto processual, em que o fazer teatral está associado a uma linguagem, a um tema, a um trabalho específico e não a dogmas da educação. Essas práticas estão em diálogo com as modificações que vem ocorrendo no teatro desde os anos 1960 e indicam novos caminhos para uma pedagogia teatral baseada não em métodos engessados, como é o caso da leitura que as escolas fazem do que seria o método Stanislavski, mas no que o teatro contemporâneo traz de mais interessante, o hibridismo e a possibilidade de uma formação múltipla pela experiência. Assim, temos uma via de mão dupla, novas metodologias que são criadas por esses encenadores e, paralelamente, novas formulações pedagógicas para esses jovens. No artigo Teatro híbrido, estilhaçado e múltiplo: um enfoque pedagógico, Beatrice Picon-Vallin fala sobre a situação do ensino de teatro dentro desse contexto do teatro performativo/pós-dramático. Dentre os apontamentos, ela cita como uma das vias de aprendizagem justamente o ensino dentro da trupe, como acontece no Théâtre du Soleil, em que os mais velhos passam o conhecimento para os mais novos e quando estes forem os mais velhos, passarão para os então mais jovens. Segundo Picon-Vallin:
Com Ariane Mnouchkine, por exemplo, não há aulas; tudo se faz na pesquisa. Voltamos, então, àquilo que vocês disseram no início da entrevista, isto é, que o encenador-pedagogo era um pesquisador, que os atores e o encenador procuravam juntos. Gosto muito de uma frase do encenador russo Piotr Fomenko: “Nesse processo, não se sabe verdadeiramente quem é o mestre e quem é o aluno. É o futuro que dirá”. Isso é algo específico ao trabalho teatral, e à formação artística em que a formação é também pesquisa e que acontece de fato na troca, na troca permanente. (PICON-VALLIN, 2011)
Dentro da minha pesquisa de mestrado tem sido realizada uma pratica com elenco misto, composto por quatro atores “profissionais” e três adolescentes a fim de prospectar novas metodologias de encenação e novos horizontes pedagógicos a partir da experiência. A intervenção urbana feita para a disciplina “Encenações em jogo” teve como integrantes dois adultos e dois adolescentes, como forma de explorar esse mesmo conceito dentro da proposta da disciplina. O video chamado Twister no Jardim pode ser visto abaixo:





BIBLIOGRAFIA:

CASTELLUCCI, Claudia; CASTELLUCCI, Romeo; GUIDI, Chiara; KELEHER, Joe; RIDOUT, Nicholas. The Theater of Socìetas Raffaello Sanzio. Nova Iorque: Routledge, 2007.

FERREIRA, Melissa da Silva. Ceci n’esta pas un acteur: corpo, experiência e percepção na cena e na pedagogia da Socìetas Raffaello Sanzio. Exame de Qualificação. UDESC, Florianópolis. 2013.

FISCHER-LICHTE, Érika. The Transformative Power of Performance. London and New York: Routledge, 2008.

FISCHER-LICHTE, Érika. Reality and Fiction inContemporary Theatre. In: Ficcional Realities/Real Fictions, edited by Mateusz Borowski and Malgorzata Sugiera. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2007.

LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro Pós-Dramático. Trad. Pedro Sussekind. São Paulo, Cosac Naify, 2007.

PICON-VALLIN, Beatrice. Teatro híbrido, estilhaçado e múltiplo: um enfoque pedagógico. In: Sala Preta (USP). n.1, v. 11, p.193-211, 2011.

SAISON, Maryvonne. Les Théâtres du réel. Paris: L’Harmatan. 1998.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Verbete: EXPERIÊNCIA
por Rita Pisano – 2013

A ideia de desenvolver esse verbete parte da minha pesquisa sobre o estudo que os autores John Dewey e Jorge Bondía Larrossa fazem sobre a noção de experiência e as relações que estabeleço a partir desses pensamentos com o fazer artístico e o exercício teatral (principalmente quando trabalhado em instituições educacionais com não atores), colocando a experiência como um conceito chave para a compreensão dos processos criativos.
Para começar desenvolvendo a reflexão sobre o verbete escolhido acredito ser importante apresentar algumas definições da palavra em si. Das definições de experiência encontradas no dicionário Michaelis temos: 1- Ato ou efeito de experimentar. 2- Conhecimento adquirido graças aos dados fornecidos pela própria vida. 3- Ensaio prático para descobrir ou determinar um fenômeno, um fato ou uma teoria; experimento, prova. 4- Conhecimento das coisas pela prática ou observação. 5- Uso cauteloso e provisório. 6- Tentativa. 7- Perícia, habilidade que se adquirem pela prática.
A partir do conhecimento etimológico da palavra experiência podemos entrar na discussão sobre sua existência no fazer artístico. O filósofo John Dewey  no  livro A Arte como Experiência - obra  que é fruto de dez conferências ministradas pelo autor com o propósito de falar sobre arte - distinguiu um tipo especial de experiência, diferente das experiências comuns. Segundo ele, passamos o tempo todo por diversas experiências mas a maioria delas são superficiais e incompletas. Dewey, fala que ter uma experiência singular, significa vivenciar determinado acontecimento até a sua consumação. Ele afirma que a verdadeira experiência produz uma transformação, torna-se uma referência e busca outras experiências semelhantes.
Dewey coloca que na experiência artística há dois fatores importantes a ser considerados. Primeiro: o prazer e a satisfação envolvidos no fazer; segundo: o total engajamento do artista em relação ao “produto” que produz, assim como a consciência sobre o seu processo pessoal no fazer artístico.
Jorge Bondía Larrosa, no artigo Notas sobre experiência ou o saber da experiência,   diz que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”, explicitando que a experiência é um processo pessoal que depende de uma elaboração subjetiva e não de um conhecimento sistemático. 
Por experiência no teatro e principalmente no teatro feito em instituições educacionais, entendo que o fazer teatral significa o ato de participar de um processo dinâmico que promove movimentos de ressignificação, recriação para que cada um possa ‘se dar conta’ que é agente integrante de um processo criativo, corresponsável e por que não dizer artista.  Os alunos que participam de uma aula de teatro assim como os atores num processo de ensaio, precisam, apesar do diretor/professor/orientador, gerenciar seus próprios caminhos e fazer suas escolhas; para que possam no coletivo, e também individualmente, elaborar sua própria experiência.
O trabalho com o outro, com o coletivo, a observação e construção de referências são no teatro instrumentos para vivenciar a experiência individual. Podemos listar alguns dos possíveis procedimentos utilizados no trabalho coletivo de teatro: Improviso, jogo dramático, intervenções no espaço, saídas ao teatro, criação de cenas, leituras dramáticas, montagens, escrita dramatúrgica, observação e discussão de exercícios, ocupação do espaço e tantos outros.  Todos esses procedimentos podem ser ferramentas para permitir a vivencia individual de um processo coletivo e assim permitir que a trajetória de cada participante seja uma experiência singular.
Nesse sentido, ao pensar que a experiência parte de um processo subjetivo podemos inclusive nos questionar: como se aprende teatro? Que saberes são necessários para a construção de um saber teatral? Eugênio Barba diz que “O ofício do ator é arte que não se ensina, apenas se aprende”; e como aprender algo que não se ensina? Experienciando,  fazendo teatro e  relacionando todos os elementos que compõe sua linguagem. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem sentido do que nos acontece. E esse saber da experiência tem algumas características essenciais que o opõem, ponto por ponto, ao que entendemos como conhecimento.  (Larrossa 2002)

Larrosa lembra que a  experiência é a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque e isso só é possível se pudermos parar:

[...] parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar,  escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.” (Larrossa 2002)

Na pesquisa que faço sobre a experiência no fazer artístico, especialmente sobre o fazer teatral na escola com não atores, me deparei com o documentário Sonhos em Movimento, que conta o processo de remontagem do espetáculo Kontkthof. A companhia estreou esse espetáculo em 1978 e dez anos depois o remontou com senhores e senhoras idosas de mais de 60 anos. Em 2008 a companhia de Pina Bauch Tanztheater escolhe trabalhar com adolescentes de 14 a 18 anos das escolas da cidade de Wuppertal que nunca tinham subido em um palco nem dançado antes. O documentário retrata esse processo de ensaio.
É muito bonito perceber no documentário, como os adolescentes vão se apropriando da linguagem da dança e como vão criando um repertório pessoal a partir do que vivenciam nos ensaios. Os discursos, as ações e as relações com o grupo e com a observação de si mesmo mudam muito no decorrer do processo. Acredito que o filme seja um exemplo concreto de não atores vivenciando uma experiência artística, entendendo os processos descritos acima de autonomia, percepção e criação. Nesse sentido Dewey coloca a experiência como o encadeamento das situações vividas, considerando o caráter emocional envolvido na ação, a organização e o reconhecimento do percurso vivenciado tornando esse ‘evento’  uma experiência singular e portanto uma experiência estética.
Na experiência estética, segundo ele, há um fluxo que vai de um acontecimento para outro que preserva, apesar dessa continuidade, o valor  de cada parte da vivência. Entre um acontecimento e outro não há buracos, nem junções mecânicas, mas momentos de pausas e repouso de definem a qualidade do movimento.
A qualidade estética que arredonda e unifica uma experiência é emocional. “Quando significativas, as emoções são qualidades de uma experiência complexa que se movimenta e se altera. Digo quando significativas porque, de outro modo, elas não passam de explosões e irrupções de um bebê perturbado. (...) A natureza íntima da emoção manifesta-se na experiência de quem assiste a uma peça no palco ou lê um romance. É concomitante ao desenvolvimento da trama; e a trama requer um palco, um espaço para se desenvolver e tempo para se desdobrar. A experiência é afetiva, mas nela não existem coisas separadas, chamadas emoções.”
O documentário Sonhos em Movimento revela esse movimento de fluxo de experiências no processo de construção de uma coreografia já existente. A maneira como os adolescentes se apropriam dos desenhos de cena, como interagem uns com os outros, como se relacionam com seus corpos e com os dos outros nos evidenciam esse percurso de significação de uma ação artística.
No meu trabalho de teatro com adolescentes do Ensino Médio que participam de um curso que culmina numa montagem final o processo de construção de uma experiência pessoal também é bastante evidente e desafiador para o professor, visto que proporcionar movimentos e espaços para a criação dos alunos não é algo simples, exige uma entrega verdadeira e um olhar atento e artístico para o que está sendo produzido e experimentado. Percebo que muitos momentos do percurso são, apesar de intensos, pouco claros quanto a sua significação. O sentido de cada etapa do processo vai sendo descoberto quando olhamos o percurso inteiro. Muitas vezes apenas depois de uma apresentação ou da finalização de um trabalho é que o grupo entende as etapas que foram passadas e posteriormente, num novo trabalho, lidam com essas mesmas etapas (que muitas vezes trazem inseguranças, dúvidas e canseiras) com mais propriedade. A propriedade de quem já viveu essa experiência e sabe que existem momentos diferentes na criação artística, alguns bastante caóticos e outros de muito prazer, e podem dessa forma contribuir mais significativamente com todo o processo, tranquilizando os alunos novos e sendo  o esteio do coletivo. A Experiência também pode aparecer quando assistimos a uma apresentação artística, lemos um livro ou vivenciamos algo marcante.
Na disciplina Encenações em Jogo: Experimentos de Criação e Aprendizagem do Teatro Contemporâneo, nos foi proposto como trabalho final do curso a criação de um vídeo a partir de uma ação performativa na cidade de São Paulo. O meu trabalho tinha como objetivo colocar uma figura estranha na cidade e observar como seria a interação dos transeuntes. Escolhi a figura de um bode para ser essa figura.  A escolha dessa imagem específica deu-se pela complexa simbologia que ela carrega. O bode foi utilizado em sacrifícios religiosos em muitas tradições do mundo, e tinha um significado divino de libido e fecundação. Os bodes eram  identificados então ora com os homens ora com os deuses. Foi um animal por excelência sacrificado nas festas do deus Dionísio, sendo identificado nesse sentido com o próprio Deus.  Apesar de mencionados na Bíblia e utilizados pelos Hebreus também nos seus sacrifícios, os bodes foram depois utilizados pelas autoridades eclesiásticas cristãs da Idade Média como representações do diabo e do mal. O bode passou então a ser associado às práticas de bruxaria e à própria luxúria, tornando-se impuro e maléfico.
Imbuída de todo essa simbologia com uma máscara simples e uma roupa preta fiz algumas andanças por um ponto da cidade de São Paulo, fui a  ponto de ônibus, metro e percebi como cada pessoa se relacionava de maneira diversa com a figura estranha ali apresentada. A experiência que eu vivia e a daqueles que interagiam comigo, ora com palavras, gestos, sustos, suspiros, risadas e principalmente olhares, formou uma conversa muito rica entre nós que participávamos daquela ação; posteriormente com a edição do vídeo pude perceber como esse movimento foi uma experiência significativa para mim e talvez para algum daqueles que cruzei no caminho.


Bibliografia:

DEWEY, John. Arte como Experiência. São Paulo, Martins Fontes, 2010.

____________. Vida e Educação. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1952

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade – teatro performativo. Trad. Lígia Borges. Revista Sala Preta, São Paulo, v.1, n.8, pp. 197-210, 2008.

LARROSSA, Jorge Bondía. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. (Conferência proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas, traduzida e publicada, em julho de 2001, por Leituras SME; Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das unidades da Rede Municipal de Educação de Campinas/FUMEC. A Comissão Editorial agradece Corinta Grisolia Geraldi, respon- sável por Leituras SME, a autorização para sua publicação na Re- vista Brasileira de Educação.)

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

PUPO, Maria Lúcia. O lúdico e a construção do sentido. Revista Sala Preta. Departamento de Artes Cênicas, ECA-USP, pp. 181- 187.


RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar  - práticas dramáticas e formação. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

PRESENÇA

 Por Rodrigo Severo

Quando falamos em presença, présence, presence, presencia no teatro, geralmente usamos como uma única acepção, a de corpo alerta, um corpo em estado de prontidão, um corpo aberto para o jogo com o outro, no entanto esse conceito em algumas experiências do teatro brasileiro atual, plural, complexo, aberto a muitas interpretações que precisa ser sempre problematizado a partir da intencionalidade pretendida pelo atuador, pois até na não representação existe presença sendo processada em cena, tomando como ponto de partida os conceitos estéticos e filosóficos heiggeriano. Abordando a presença, no campo do teatro, associada ao corpo do ator, Pavis diz que:
Segundo a opinião corrente entre a gente de teatro, a presença seria o bem supremo a ser possuído pelo ator e sentido pelo espectador. A presença estaria ligada a uma comunicação corporal “direta” com o ator que está sendo objeto da percepção (PAVIS, 2008, p. 305). 

A presença em Pavis, relacionada à dimensão do teatro, parece que se configura como identificação, verossimilhança do espectador com o atuador, ou seja, o conceito de presença citada por Pavis está associado à ideia de simulacro, de ilusão, ficcionalização do corpo do atuador em situação de representação (personagem). Uma vez que, o autor definira representação como tudo aquilo que é visível e audível em cena, mas ainda não foi recebido e decodificado pelo espectador.
“Ter presença”, é, no jargão teatral, saber cativar a atenção do público e impor-se; é, também, ser dotado de um “quê” que provoca imediatamente a identificação* do espectador, dando-lhe a impressão de viver em outro lugar, num eterno presente (PAVIS, 2008, p. 305).  
Ainda segundo ele, “cada ator amina o eu de sua personagem, que é confrontada com as outras (os tu, você). A fim de constituir-se em eu, ela deve apelar para um tu, você, ao qual emprestamos, por identificação (isto é, por identidade de visão), nosso próprio eu” (PAVIS, 2008, p. 307). Mas, na cena contemporânea atual quando não existe atmosfera de ilusão, identificação do espectador com o atuador (como no drama burguês), também quando não há reconhecimento, nem máscara representativa, tampouco a encenação pretende ser uma fatia da vida real, pelo menos nos moldes realistas, isso que dizer que não existe presença sendo processada no presente do acontecimento? Então o corpo sendo a materialidade de nossa existência no mundo, a presença não seria algo consubstancial (mesma natureza, constituição) do sujeito? 
Diante disso, evidencia-se, então, que quando se fala de presença associada ao trabalho do ator, geralmente, ela está relacionada a um corpo pronto para as necessidades da cena, com tônus muscular que modifica o olhar do espectador. É uma “fagulha da vida” que se mantém acesa durante o evento cênico. Em algumas pesquisas teatrais contemporâneas, a presença também pode ser geradora de inúmeros deslocamentos como acontece nas obras de Romeo Castelucci, Frank Castorf, Bob Wilson, Pina Bausch, Taudez Kantor, Jan Lauwers, Robert Lepage, Richard Foreman, Renato Cohen, José Celso Martinez Corrêa, Denise Stokles e Antonio Januzelli
A partir disso, podemos entender a presença como algo material e imaterial, ou melhor, como a junção entre substância material e substância imaterial, na qual o público consegue sentir quando existe alguém em estado de presença, seja na presença representacional, performativa ou pura presença. Na primeira cena do espetáculo Pulsão da Rede de criadores Desvio Coletivo, a simples ação dos atuadores caminharem em direção ao público, faz a plateia perceber que algo está acontecendo e todo o barulho e as conversas feitas pelos espectadores cessam, silenciam a partir da presença pura dos atuadores e a ação de caminhar. Pois não é apenas um corpo que caminha, mas um corpo vivo e tonificado sem tensão desnecessária, mas pronto para o jogo relacional. Então presença pode ser um conceito que está diretamente associado à ação e que a perpassa. O conceito de presença humana ligada à existência é fortemente discutido por Martin Heidegger como veremos logo mais.
A filosofia existencialista Heideggeriana (1991) dirige-se no sentido de superar a tradição clássica, hermenêutica e metafísica propondo um conceito de mundo como fenômeno em constante dinâmica e que se atualiza nas relações instauradas junto à presença (ente).  Ou melhor, ao abdicar a concepção de mundo como substância (res extensas=objeto) que se contrapõe ao mundo (sujeito), porém evidenciando o mundo na sua relação de co-pertenciamento com a presença.
Diante disso, o método fenomenológico utilizado por Heidegger concebe o ser como forma e presença. A filosofia heideggeriana ao elaborar a questão sobre o sentido do Ser (concebido como presença) elege como o ente que será questionado em seu ser. A constituição fundamental da presença é denominada por Heidegger ser-no-mundo (constituição fundamental da presença) que se projeta na existência. Nesse sentido, para Heidegger, não há ser humano destituído de sua presença, pois a substância e a essência do homem é a existência.
Assim, a essência da presença é existência que no seu momento fundamental, ser-no-mundo, seria o homem se relacionando com as coisas (instrumentos), com os outros (demais presenças) e consigo mesmo. E nesta tríade (coisas, outros e a si mesmo), ao se ocupar, seria o primeiro e o principal modo à presença (cotidiana), como existencialidade, projetar-se. Então a presença estaria associada tanto ao conceito heideggeriano de “ocupação” quanto o de ação.
Nesta perspectiva, as ideias de Heidegger parecem decantar nas questões sobre presença levantadas por Gumbrecht, pois ele compreende a possibilidade de uma relação com o mundo fundado na presença (GUMBRECHT, 2010, p. 13), apoiando nas concepções do homem heideggeriano. Gumbrecht na obra Produção da presença: o que o sentido não consegue transmitir (2010), aborda a possibilidade de nos relacionamos com o mundo considerando a materialidade dos objetos sem fundamentalmente conferir-lhes sentido. Nesse sentido, para o autor, “presença refere-se, em primeiro lugar, às coisas (res extensae) que, estando à nossa frente, ocupam espaço, são tangíveis aos nossos corpos e não são apreensíveis, exclusiva e necessariamente, por uma relação de sentido” (GUMBRECHT, 2010, p. 9).
A presença para Gumbrecht é “o que é ‘presente’ para nós”, é o que nos toca, “está à nossa frente”, “ao alcance e tangível para nós” (Idem, p.38), “diante dos olhos e no contato com o corpo” (Idem, p.10), reverberando em efeitos de produção de uma intensa presença. Essa produção de presença caminha para o território da vivência como um fenômeno privilegiado que por meio de experiências estéticas podem nos dar a sensação do estar-no- mundo, atuando e interagindo com ele. Pois a “produção da presença” aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto dos objetos “presentes” sobre corpos humanos (Idem, p.13). Essa perspectiva parece ser uma chave epistemológica para se entender a presença no território das artes, principalmente na esfera do teatro. Assim, neste momento, os “teatros” se apropriam do conceito de presença criando vários subconceitos para ela partir do estudo e da especificidade de cada produção artística teatral: presença pura, presença representacional, presença performativa, presença cênica. 
Todas essas aproximações têm como denominador comum uma concepção filosófica, idealista, mística, ritualística, concreta e até mesmo indefinível seja relacionada à presença como algo existencial ou como energia que emana do corpo do artista que é sentida pelo espectador. Será que se pode explicar o inexplicável, mas se ela é sentida, talvez caminhos possam ser trilhados para se fomentar uma ciência da presença do atuador?
Tendo participado das pesquisas desenvolvidas por Jerry Grotowski, entre 1961 e 1963, Eugenio Barba, 1979, sistematizou a Escola Internacional de Antropologia Teatral (ISTA), a qual estuda o homem em situação organizada de representação. A Antropologia Teatral pode ser compreendida como o estudo do “corpo dilatado” (BURNIER, 2001, p.111), ou como o “estudo do comportamento cênico pré-expressivo que se encontra na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis e das tradições pessoais e coletivas” (BARBA, 1994, p.23).
Deste modo, essa ciência tem como mote investigativo o desenvolvimento do comportamento do ator-bailarino em situação de representação não organizada, centrando suas pesquisas nos elementos que tornam a presença cênica dilatada. Para isso, o estudo da Antropologia Teatral se fundamenta na raiz de diversas técnicas de representação em nível transcultural, buscando princípios técnicos para despertar a presença cênica do intérprete o e seu dinamismo.  Barba defende uma nova corporeidade do ator ao pesquisar os fundamentos de intensificação da presença corporal do ator, buscando um “corpo dilatado”, um “corpo-em-vida”, que pode ser entendido como a presença do ator. É interessante observar que nas concepções de Barba sobre presença cênica, ela parece ser a construção de um corpo fictício produzido a partir de princípios pré-expressivos e energéticos que alimentam a vida do ator-bailarino em estado de representação. Assim, presença para o estudo da Antropologia teatral pode ser compreendida como energia dilatada que emana do corpo ator-bailarino e se projeta no espectador. Neste sentido, a presença é corpo vivo e se ela é corpo vivo, é substância pensante e substância corpórea coexistindo no mesmo instante. Como podemos perceber no trabalho do ator desenvolvido por Antonio Januzelli.
 Antonio Januzelli quando fala “da presença de si” coloca que “é preciso que estejamos sempre ‘presente’ em nosso corpo” (Januzelli, 1992, p.17). Ele remete a uma presença fenomenológica existencial onde o “Ser da Cena” está presente em sua totalidade, resultando no “Estar em Cena”. É o ator centrado em si mesmo, despojado, como afirma Januzelli (1992, p.78). É a presença como corpo que não nega sua existencialidade, mas que estar pleno e aberto para as situações da cena, aceitando suas idiossincrasias, singularidades, descobrindo e atingindo o "si mesmo". 
Se não estivermos inteiros no que fazemos, em cada coisa, a percepção mais profunda da existência não se configura, não se firma, não de torna uma substancia mágica. Viver a vida começa com a comunhão que estabelecemos com cada coisa que fazemos (Januzelli, 1992, p. 18).

            Para Januzelli, somos energia em perpétuo movimento. Então se somos matéria/energia se processando no mesmo instante, é o refinamento da materialidade de energia (o nosso corpo) que se deve trabalhar para que o artista esteja sempre disponível e presente na cena, pois a qualidade deste trabalho, pode também refletir na materialidade da relação estabelecida pelo atuador com os sujeitos (espectadores) e a experiência estética (evento cênico). Considerando o corpo não como um dispositivo mecânico, mas um dispositivo vivo que se reconfigura a partir de sua interação com outros corpos e com o mundo.

 O ator precisa preparar-se primeiro para o “Estar em cena”: gestar um corpo iluminado, elétrico, que interaja com outro e que possua carga para se projetar até a plateia, provocando e prendendo a atenção de cada espectador, formando um campo magnetizado de trocas (Januzelli, 1992, p. 78).

A presença então, também pode ser entendida como choque como colisão que provoca alterações concretas no real, como acontece nos trabalhos desenvolvidos por Marina Abramovic e por Antonio Januzelli. A ideia de presença como algo perturbador pode ser entendida nos estudos do ator desenvolvido por Grotowski e Artaurd. Pavis afirma que em Eugenio Barba e Moriaki Watanabe fazem da presença contradição e o oxímoro do ator: Ser marcadamente presente e, no entanto, nada apresentar, é, para um ator, um oxímoro, uma verdadeira contradição, [...] o ator de pura presença [é um] ator representado sua própria ausência (Bouffonneries apud Pavis, 2008, p. 305).
Desse modo, a experiência corpórea do atuador está intimamente ligada à sua capacidade geradora de estado-presença que se modifica e se atualiza a partir de sua relação com os objetivos presentes no acontecimento. Ela nem sempre se processa exclusivamente por meio de características físicas do indivíduo, pois alguns atuadores apresentam uma energia tão irradiante, cujos efeitos sentimos antes mesmo que o ator tenha agido, no vigor de estar ali (PAVIS, 2004). Sendo assim, a presença como existencialidade real no acontecimento cênico faz com que estejamos sempre em fluxo, em “produção de presença” que acontece pela interação como coloca Gumbrecht. Assim, podemos também entender presença próxima do conceito de “metafísica em atividade” como é colocado no teatro artudiano, que abre novos modos de percepção e outras dimensões de realidade (QUILICI, 2004):
A palavra “metafísica”, utilizada aqui numa acepção muito particular, tende a dissipar essa conotação meramente utilitária associada à magia. Ao mesmo tempo, a expressão “em atividade” é colocada para burlar nossa identificação imediata entre metafísica e abstração (Idem, 2004, p. 39).

A presença é provocadora de múltiplas dimensões de experiência. Ela não está só ligada à subjetividade e à virtualidade, mas também a presença-presente do corpo vivo, carnal do atuador e em constante fluxo no aqui agora da cena, que é vista e sentida pelo espectador, pois a presença é existência. Então se ela é existência, ela existe até quando a intenção é não ter presença. Pois o que pode ser mensurado é a qualidade da presença e não se ela existe ou não.
          A presença, no teatro, não está apenas ligada à característica inata do indivíduo, ao dom, ao talento, à magia, pois já que presença é algo que está associado à ação, como declara Heidegger, pode ser trabalhada e construída, como um elemento ritualístico (teatro artaudiano). E, procurando sempre manter a totalidade corpórea com suas idiossincrasias mesmo quando a cena apresenta uma pluralidade fragmentária, uma pulverização de códigos e signos abertos, uma multiplicidade de formas e referencias como é observado na cena contemporânea atual, nos “teatros do real” (FERNANDES, 2011).
Assim podemos compreender a presença do atuador sem estar ligada à construção de uma máscara representativa, pois ela pode se efetivar sem existir transformação simbólica, sem ter metamorfose do ator em personagem, ou seja, o atuador não representa e não interpreta nada, entretanto o estado de presença sempre existirá no aqui agora da cena, com corpos vivos e presentificados que podem gerar identificação, distanciamento ou estranhamento pelo simples fato de estar no espaço, com “centelha da vida”. Esse corpo pode não expressar nenhum sentimento, nenhuma reação, contudo está “presente” e aberto para ação e reação do público. Pode ser um corpo de até na tentativa de sua ausência gera “presenças”. Nesse sentido, não podemos falar em presença como um termo singular, mas “presenças” que se dimensionam e se redefinem a partir do contato com o público.
Essa presença, seja na identificação, no distanciamento ou estranhamento pode tocar em categorias perceptivas e territórios emocionais no público, pois latências estão sendo processadas no corpo do atuador e percebidas pelo espectador. Então, ela é físico, crível e visível, pois ela é também a materialidade corpórea exacerbadamente real. Assim a presença não é uma operação metafísica de valorização substancial, algo etéreo, transcendental por mais que tenha um halo de misticismo.
Portanto, a presença é literal, pois ela é substância pensante e substância corpórea, física e mental atuando no mesmo instante até mesmo sem mediação, pois ela se realiza a partir da corporeidade do atuador.  Então, entendemos a presença, como real e concretus que designa a existência humana em oposição à abstração. "concreto é o homem neste mundo" (Sartre), talvez no “teatros” contemporâneo não podemos falar de presença, mas de "presenças" como termo plural e multifacetado que é determinada a partir do processo criativo de cada artista, gerando no espectador uma “percepção multi-estável” como coloca Érika Fischer-Lichte(2007).

 REDE DE CRIADORES DESVIO COLETIVO
ESPETÁCULO "PULSÃO" (2013)  

"THE ARTIST IS PRESENT" (2010)
MARINA ABRAMOVIĆ 

PERPLEXIDADE (2013)
COM RODRIGO SEVERO, GIL DUARTE E PATRICIA BERTUCCI

ESPETÁCULO O PORCO (2004) 
COM DIREÇÃO DE ANTONIO JANUZELLI E ATUAÇÃO DE HENRIQUE SACHFER


Referencias

BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: Dicionário de Antropologia Teatral. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
BROOK, Peter. A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.
FERNANDES, Silvia. Teatralidade e Performatividade na cena contemporânea. In Revista Repertório nº 16, p. 11-23, 2011.
FISCHER-LICHTE, Erika. Reality and Fiction in Contemporary Theatre. In: BOROWSKI, Mateusz; SUGIERA, Malgorzata (org). Fictional Realities/Real Fictions: Contemporary Theatre in Search of a New Mimetic Paradigm. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2007.
JANUZELLI, Antonio. A aprendizagem do ator. São Paulo, Editora Ática, 1992.
______________. O caminho do homem ao ator e o retorno. InRevista OlharesSão PauloEscola Superior de ArtesCélia Helena, n. 1, p. 35-38, 2009.
______________. Práticas do ator (uma ciência do corpo sutil): Brasil e América Latina. Sala Preta (USP), São Paulo, v. 2, p. 39-45, 2002.
GUMBRECHT, H.U. Produção da presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto Editora PUC-Rio, 2010.
HEIDEGGER, Martin. Conferencias e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2006.

QUILICI, Cassiano Sydom. Antonin Artaud: Teatro e Ritual. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004.